"JOSEF PIEPER: O ELEMENTO
NEGATIVO NA FILOSOFIA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO"
O conceito de criação e suas implicações
para a filosofia da educação (algumas partes da dissertação
de mestrado apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1995)
Introdução
Nossa dissertação de mestrado consistiu em um estudo e notas
filosóficas relativas à tradução de uma das
principais obras de um autor, que figura entre os mais destacados filósofos alemães, contemporâneos: O elemento negativo na filosofia de Santo Tomás de Aquino, de Josef Pieper.
Conforme anúncio do jornal O Estado de São Paulo, publicado no dia 8 de novembro, três dias após a morte do autor:
SIZE=+2>Morre Pieper, o estudioso da obra de Aquino" Filósofo era considerado divulgador do pensamento de Santo Tomás de Aquino neste século
Estudioso da teologia, Pieper é considerado o principal pesquisador da obra de Santo Tomás de Aquino neste século. Também é apontado como o pensador católico mais notável do pós-guerra e um dos mestres da filosofia da religião cristã.
Autor de mais de 50 livros publicados em 15 idiomas, dedicou-se a divulgar as principais teses de Santo Tomás em linguagem acessível a todos os públicos. Algumas de suas obras foram, durante muito tempo, usadas como referência nos meios católicos.
O filósofo lecionou por mais de 50 anos na Universidade de Münzter e formou centenas de discípulos. Sua tese de doutorado serviu de base para fundamentar sua doutrina de intermediação entre a filosofia clássica de Platão e Aristóteles e a teologia cristã.Nos anos 30, Pieper, que se definia como um cristão de esquerda próximo do socialismo, foi perseguido pelo regime nazista. Algumas de suas obras foram proibidas e suas atividades docentes, limitadas. Ele atuou como professor convidade em universidades do Canadá, nos Estados Unidos e na Espanha." (A14)
A importância da obra "Unaustrinkbares Licht" no corpus de obras do autor é explicitada pelo próprio
Pieper, que considera Unaustrinkbares Licht - ou Luz Inexaurível,
LI, obra em que a parte mais importante é precisamente O elemento
negativo na filosofia de Santo Tomás de Aquino - livro primordial
para o estudo do seu pensamentoo. De fato, tanto a possibilidade do conhecimento,
quanto suas necessárias limitações (o elemento negativo),
são tratadas por Pieper-Tomás, a partir dos conceitos centrais
de Criação e criaturalidade (Kreatürlichkeit), que analisaremos
em nossos comentários. Nosso trabalho pretende, assim, apresentar
ao leitor brasileiro uma das mais importantes obras filosóficas
de nosso tempo e extrair dela - por comentários e notas - implicações
que consideramos fundamentais para a filosofia da educação.
Embora o pensamento de Pieper seja objeto de muito interesse e estudo em
todo o mundo (somente nos Estados Unidos e Inglaterra há cerca de
cinqüenta livros seus traduzidos!) inexplicavelmente, o Über
das negative Element der Philosophie des heiligen Thomas von Aquin, permanece
ainda somente no original alemão e não tinha sido ainda traduzido
para nenhuma outra língua. Antes de entrarmos em maiores detalhes
a respeito, impõe-se uma breve apresentação do autor
e de seu filosofar.
1.2 Nota sobre Josef Pieper
"Josef Pieper nasceu a 4 de maio de 1904 em Elte (Westfália).
Cursou Filosofia, Sociologia e Direito nas Universidades de Berlim e Münster.
Doutorou-se em Filosofia em 1928 pela Universidade de Münster com
a tese Die ontische Grundlage des Sittlichen nach Thomas von Aquin, depois
publicada com o título Die Wirklichkeit und das Gute nach Thomas
von Aquin. De 1928 a 1932 foi assistente no Forschungsinstitut für
Organisationslehre und Soziologie. De 1932 a 1940, anos em que atua como
escritor free-lancer, publicou muitos livros (diversos deles proibidos
e apreendidos pelo governo totalitário). A apreensão de Grundformen
sozialer Spielregeln (1933), por ser um livro antitotalitário; a
selvageria do expurgo de 1934, bem como a destituição do
pai, injustamente desligado do magistério, produziram em Pieper,
já desde o primeiro momento, 'uma certeza definitiva: com esse regime
não há compactuação possível'. Suas
convicções antinazistas possibilitaram que fosse um dos primeiros
alemães a visitar, pouco depois da guerra, a Inglaterra (convidado
pelo British Council) e os convites para lecionar em universidades americanas.
Lecionou em diversas universidades, sobretudo na de Münster, onde
ensina há quase cinqüenta anos e ainda hoje - aos 90 anos -
ministra seus cursos e seminários, como catedrático emérito.
É doutor honoris causa em Teologia pelas Universidades de Munique
e Münster e em Filosofia pela Universidade de Eichstaett. Foi também
professor visitante em diversas universidades dos Estados Unidos (Stanford
e Notre Dame), Índia, Japão e Canadá (Centennial Professor
em Toronto). Entre outras distinções, destacam-se a 'Aquinas
Medal' da American Catholic Philosophical Association (1968) e o prêmio
Balzan de 1982 (primeiro alemão a receber este prêmio internacional
considerado o Nobel das Ciências Humanas). É membro da Rheinisch-Westfaelischer
Akademie der Wissenschaften, da Deutsche Akademie für Sprache und
Dichtung (Darmstadt) e da Pontificia Accademia Romana di S. Tommaso d'Aquino"
Em 1987 recebe os Prêmio Ingersoll (wissenschaftliche Prosa) e o
Staatspreis des Landes Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf. Naturalmente,
neste ano de 1994, celebração de seu 90o. aniversário,
tem sido objeto de diversas homenagens em todo o mundo. Entre nós,
o DLO-FFLCHUSP publicou Filosofia e Arte (estudos em homenagem a Josef
Pieper), no qual pude colaborar com duas pequenas traduções
e introdução: "Dois modos de ser crítico"
e "O Dilema de uma Filosofia não-cristã". Pelos
dados que extraímos do Schriftenverzeichnis de 1989, vê-se
que a difusão de seus livros é invulgar para um filósofo
(sobretudo quando se tem em conta que, aos 90 anos, sua atividade continua
constante). Quanto às traduções, por exemplo, há
mais de cem livros de Pieper estavam publicados em uma dúzia de
línguas (inglês, português, francês, holandês,
italiano, japonês, norueguês, polonês, sueco, castelhano,
tcheco e húngaro)."
1.3. O posicionamento filosófico de Josef Pieper
Neste tópico, optamos por apresentar, como resumo do posicionamento
filosófico de Josef Pieper, um texto, particularmente interessante
para meu trabalho, por tratar-se de um auto-retrato intelectual, breve,
em que o próprio Pieper destaca, como temas essenciais de seu pensamento,
pontos diretamente ligados aos que privilegiamos nesta dissertação.
Assim, oferecemos ao leitor o Selbstdarstellung encomendado pela editora
Felix Meiner Verlag (e publicado em Philosophie in Selbstdarstellungen,
Hamburg, 1974).
1.4. Auto-retrato filosófico Josef Pieper
Indagar-me a respeito de "minha" filosofia (o que acontece
de vez em quando) representa, para mim, algo um tanto constrangedor. Naturalmente,
apenas um pouco, porque, no fundo, não me acanho em declarar sem
rodeios que precisamente não considero filosofante, alguém
que tenha, com sucesso, conseguido elaborar uma visão-de-mundo perfeitamente
acabada, mas, sim, aquele que se empenha por manter viva uma certa questão:
a questão sobre o significado da razão última da totalidade
do real - uma questão para a qual poderá certamente encontrar
uma série de respostas provisórias, contudo, nunca, a resposta.
Qualquer esforço seu por apreender the complete fact (A. N. Whitehead),
permanece necessariamente um empreendimento inacabável. O que se
dá na morte de um ser um humano, não apenas do ponto de vista
biológico ou biográfico, mas com vistas à totalidade?
O que propriamente se passa no ato de conhecimento? O que é isto:
algo real? Ninguém nunca estará em condições
de responder a estas questões de modo adequado e exaustivo. Mas
se é precisamente esta a tarefa da filosofia: manter aberta a atenção
para o inapreensível "fato total" e, assim, despertar
suspeita contra qualquer pretensão à descoberta da "fórmula
do mundo" ! Nisto se encontra uma das fundamentais diferenças
entre a ciência e a filosofia, que representa também a razão,
pela qual não pode haver uma "filosofia científica".
Naturalmente não há qualquer objeção contra
a análise lingüística, nem tampouco contra a "teoria
científica crítico-social"; àquele que filosofa
nem mesmo é permitido formalmente excluir, do âmbito de sua
consideração, os eventuais frutos de tais ciências,
nem de qualquer outro esforço científico; nenhuma destas
disciplinas, porém, já é, no sentido estrito, a filosofia
em si. Esta denominação reserva-se àquele empreendimento,
que consiste em considerar a totalidade do mundo e da existência.
E quem se envolve com um empreendimento como esse, estará, com isso,
ingressando por um caminho, cujo fim não pretende ser concluído
na presente existência. Já a ciência - segundo sua natureza
própria - nem sequer se propõe questões, que não
sejam claramente respondíveis; nenhuma ciência indaga pela
relação total que integra o mundo . Mas quando, por outro
lado, a scientific philosophy declara tais indagações como
"sem sentido", então aquele que filosofa tem a objetar
contra isso, que o questionamento vivamente realizado - não estamos
nos referindo absolutamente à problematização desregrada
e caótica - é, possivelmente, o único modo que ainda
nos resta para nos mantermos abertos para o objeto - infinito - do conhecimento
humano. O único meio de permanecermos, por assim dizer, em seu encalço.
Naturalmente, deve-se acrescentar a isto, que, afinal, também a
existência humana significa um "estar a caminho", em constante
realização, que, além disto, pauta-se pela mesma estrutura
de esperança que determina também o filosofar. Por outro
lado, precisamente esta convicção da impossibilidade de uma
realização infra-histórica do homem (e da sociedade),
é certamente também a condição existencial
que se impõe à atualização de um conceito de
filosofia, que compreenda a impossibilidade de resposta definitiva às
questões filosóficas.
Quanto à orientação filosófica, no sentido
de "filiação" é preciso considerar, em primeiro
lugar, que, de acordo com a sua autobiografia, Pieper nunca se identificou
com nenhuma "escola" propriamente dita, conquanto os meios acadêmicos
do pós-guerra muitas vezes pretendessem exigir um posicionamento
deste tipo. Também não segue nenhum método "prêt-à-porter",
embora defenda a postura metodológica de Tomás. Nesse sentido,
Pieper pode ser considerado avançado para o seu tempo, sem, ao mesmo
tempo, ter-se alienado das discussões sobre as tendências
e tendenciosidades próprias de sua época e cultura. Particularmente
importante no livro que traduzimos é a questão do "tomismo".
Como se verá, Pieper investe freqüentemente contra os epígonos
e seus compêndios escolares sistematizadores que pretendem encerrar
a grandeza de Tomás em um "ismo" . Por isso, Pieper remete-se
diretamente ao pensamento de Tomás, e também ao de Aristóteles,
e, ainda, ao de outros autores antigos, estabelecendo sempre, a partir
disso, vínculos para o diálogo e discussão, também
com pensadores modernos e contemporâneos como Kant e Heidegger. Pieper
discute, por exemplo, aquele conceito fundamental, que teria "despertado"
Kant do "sono dogmático" que afligia o pensamento alemão
da época, predominantemente idealista e essencialista, ou seja,
que tinha por em si mesmas essenciais, meras manifestações
da essência. Trata-se do conceito de objeto , que era para Kant o
princípio primeiro de todo conhecimento humano, e único meio
de união entre duas coisas radicalmente separadas: a manifestação
da essência - que não é considerada algo real, mas
apenas um fenômeno - é a própria essência, que
é, em princípio, incognoscível ao homem . A partir
deste novo conceito, criado para salvaguardar o valor da ciência,
ameaçada pelo tipo de "metafísica" praticada na
época. , Kant encerra definitivamente a era do pensamento ocidental,
que, de alguma forma, ainda tendia a partir do pressuposto, mais ou menos
explícito, de que há uma correspondência entre a coisa
real e sua manifestação cognoscível. Isola-se, assim,
o conceito de ser, que passa a ser remetido ao âmbito transcendental
e metafísico. O que interessa à ciência, agora, limita-se
a suas formas de manifestação. O conhecimento, ao invés
de tomar por objeto a realidade ou a verdade das coisas, passa a ter por
objeto como as coisas de manifestam , pelo que se pretendia garantir, contra
o ceticismo anti-científico predominante, a mera possibilidade de
um conhecimento, "descontaminado" limitado ao âmbito do
fenômeno, ou seja, a como a coisa se apresenta "para mim":
"Toda a tentativa kantiana se reduz a isso: analisar as condições
do conhecimento científico nas ciências existentes e que obtiveram
triunfos, como as matemáticas e a física de Newton. Depois,
aplicar essas condições às questões da metafísica,
para decidir se sobre elas pode haver ciência. Porém é
preciso esclarecer que, na própria colocação kantiana,
já está implícita a resposta. Essa colocação
se resume no seguinte: não são as coisas que mandam, mas
a razão. É o que, metaforicamente, o próprio Kant
chamou sua 'revolução copernicana'". Assim, Kant desarraiga
a metafísica de seus pressupostos teológicos e realistas,
inaugurando a era da subjetividade, ou seja, da separação
entre o real e a sua representação, entre a matéria
e sua forma. Pois, a afirmação da objetividade, por outro
lado, depende, como se verá do conceito de criaturalidade, que forma
também seu pressuposto. Entre as várias tentativas posteriores,
nos sentido de reaproximação do conceito de objetividade,
Pieper dá especial atenção aos existencialistas .
E com eles discute, por sua vez, o conceito de Vorhandenheit, freqüentemente
traduzido também como "existência", "disponibilidade"
ou simples "presença" visível, o estar aí
de algo dado. Enquanto para Kant transcender significava "projetar
a essência das coisas nas coisas", para os existencialistas,
trata-se de "superar os limites do estar aí" , em direção
a um novo homem que se forma a si mesmo . Heidegger acusa Kant de reduzir
a existência a algo a ser meramente adicionado à coisa. Como
se o existir fosse algo descartável, meramente acrescido ao fato
(projetado pela mente humana) de ser. Enquanto para Kant tudo são
possibilidades que poderão ou não manifestar-se, para Heidegger
o ser-aí faz as suas próprias possibilidades. De sua parte,
Pieper, afirmará, contra ambos, a absoluta unidade do ser (que aí
está aí, mas também tem potencialidades ainda não
desenvolvidas), entendido como composto de matéria e forma, unificado
pelo Pensamento criacional divino. Este pensamento unificador também
permitiu a Tomás conceber surpreendentes formulações
como "verdade das coisas" (veritas rerum, Wahrheit der Dinge
- formulação adotada como título de uma de suas obras
fundamentais), "bem e realidade" (Die Wirklichkeit und das Gute,
é o título de sua dissertação de mestrado),
"ser e nada", etc.. E a Pieper tais formulações
permitiram notar que, tanto a metafísica kantiana (pela negação
de pressupostos teológicos para a ciência), quanto o existencialismo
(pela negação da existência de uma pensamento que possa
ter projetado o homem ) deixam em aberto o abismo entre o essencial e o
existente, vadeado apenas pelo conceito unificador da existência,
enquanto ato de ser da doutrina da criação de Tomás
.
|