Ataxia de Friedreich: Novos Desenvolvimentos e Perspectivas

Dr Massimo Pandolfo
(publicado em Generations/NAF - Summer/1999)

Desde 1996 o Dr Massimo Pandolfo é Professor Adjunto do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia e também Professor em Pesquisa Associada do Departamento de Medicina da Universidade McGill, Montreal - Canadá. O Dr Pandolfo, em colaboração com outros pesquisadores, descobriu o gene da ataxia de Friedreich em 1996.

Tentarei resumir aonde nós estamos hoje na compreensão da causa da ataxia de Friedreich e dar algumas idéias dos rumos futuros, e o que nós esperamos aprender nos próximos anos.
Nicholas Friedreich, professor de medicina em Heidelberg, Alemanha, foi o primeiro a descrever a doença em 1863. Pesquisadores e clínicos tinham uma descrição detalhada do quadro clínico da doença, mas não sabiam sua causa, a não ser que era hereditária e recessiva. Não tínhamos nenhuma idéia de que gene era, de que proteína o gene codificava e da razão porque as pessoas desenvolviam sintomas. Finalmente, em 1996, identificamos o gene da ataxia de Friedreich, o segmento do DNA contendo a informação genética alterada em pessoas que tem a doença.
O gene situa-se no cromossomo 9 e codifica uma proteína denominada frataxina. A função da frataxina não pôde ser determinada na época em que o gene foi clonado. A primeira descoberta, depois da identificação do gene, foi o entendimento da anormalidade ao nível de DNA. Verificamos que a maioria das pessoas que tem ataxia de Friedreich possuem uma expansão instável da repetição de trinucleotídeos, um número excessivo de repetições de uma seqüência de DNA composta de três unidades (GAA). GAA, ao invés de ser repetido menos do que 40 vezes, como em um cromossomo normal, é repetido de cerca de 100 até 700 vezes, e em alguns casos mais de 1.000 vezes. Desde então, aprendemos que o excessivo número de repetições não causa a produção de uma proteína anômala, como ocorre em todas as ataxias dominantes, mas causa a deficiência de uma proteína normal. O excesso de repetições faz com que os pacientes de ataxia de Friedreich produzam uma pequena quantidade de algo que eles necessitam em maior quantidade. O tamanho e a seqüência de aminoácidos de frataxina é perfeitamente normal nos pacientes, apenas eles tem muito pouco dela. Esta é a conseqüência da expansão.
Nos três anos seguintes à identificação do gene, também observamos que a mutação da expansão de trinucleotídeos explica pelo menos parte da variabilidade que verificamos no quadro clínico da ataxia de Friedreich. A idade de início, o grau de progressão, a severidade e a extensão de envolvimento do sistema nervoso pela ataxia de Friedreich podem ser variáveis. Algumas pessoas podem ter uma severa cardiomiopatia, outras podem não ter nenhum sintoma de cardiomiopatia, algumas podem ter problemas de visão ou audição e outras não. Nitidamente, indivíduos com grandes expansões (mais repetições GAA no gene frataxina) tendem a desenvolver a doença mais cedo e com uma progressão mais rápida, e também a terem afetados outros sistemas. Indivíduos com maiores expansões tendem a ter atrofia ótica, decréscimo de visão, perda de audição, cardiomiopatia severa e diabetes. Esta correlação é altamente significativa quando se fazem cálculos estatísticos, mas ela não permite predizer o curso da doença em um determinado paciente, porque há muita variabilidade. Se fizermos um teste genético e encontrarmos de 700 a 900 repetições, não podemos prever a doença aos 12 anos de idade e cadeira de rodas aos 25. Isto é absolutamente impossível, porque pacientes com o mesmo número de repetições podem ter de 10 a 15 anos de diferença na idade de início e podem desenvolver doenças completamente diferentes em severidade. Se olharmos para 200 ou 300 pacientes pode-se encontrar uma correlação, mas individualmente não podemos fazer nenhuma predição. Saber e compreender isto é muito importante.
No momento, achamos que o tamanho da expansão pode explicar 50% das variações observadas na doença. Os outros 50% devem ser explicados por outros fatores genéticos (outros genes que interagem), fatores ambientais ainda não identificados, e o acaso, que produz efeito em tudo o mais.
As características clínicas da ataxia de Friedreich são mesmo muito variáveis. Já vimos indivíduos que se tornaram atáxicos aos 40 ou 50 anos de idade, e tinham ataxia de Friedreich. Costumamos pensar nesta doença como sendo uma doença de crianças e adolescentes. Existem pessoas com muitos sintomas clínicos raros, como a retenção de reflexos com espasticidade, etc. Isto tem nos conduzido a estender o diagnóstico para casos em que não se suspeitava ser ataxia de Friedreich.
Outra possível origem de variação é o fato de que um pequeno número de pacientes com ataxia de Friedreich, menos do que 5%, tem um ponto de mutação, uma alteração no código DNA que causa uma mudança na própria proteína. Eles têm sintomas que são usualmente típicos da ataxia de Friedreich. Está claro que pacientes com um ponto de mutação têm menos da proteína, porque em um cromossomo eles tem a expansão de trinucleotídeos. Eles têm também alguma proteína anormal por causa do ponto de mutação. Eles são diferentes dos outros pacientes da ataxia de Friedreich a este respeito, mas a conseqüência final é a mesma
Também aprendemos que o gene da ataxia de Friedreich não é igualmente necessário ou utilizado em todas as células do corpo. As células afetadas pela doença necessitam frataxina em maiores quantidades do que as outras células. Isto é muito expressivo na medula espinhal e nos gânglios espinhais, onde os neurônios mais severamente afetados estão localizados. Estes são os mesmos neurônios sensoriais responsáveis pelo senso de posição, o qual é muito afetado. O coração é afetado pela doença porque normalmente produz uma quantidade maior de frataxina do que as outras células e tecidos do corpo. Temos de ter isso em mente quando tentamos compreender as conseqüências da deficiência de frataxina. As células produzem diferentes quantidades de frataxina, pois são diferentemente sensíveis à deficiência de frataxina.
Outra grande descoberta, foi o que denominamos localização sub-celular da frataxina, que significa em que estrutura interior da célula a frataxina está localizada. Nós e outros temos realizado um grande número de experiências que confirmam que a proteína frataxina é produzida nas mitocôndrias.
O que são mitocôndrias? São milhares de pequenas estruturas existentes no interior das células do nosso corpo. Elas são as casas de força das células. Mitocôndrias são as estruturas no interior da célula onde uma importante reação química ocorre, chamada respiração celular. É onde os compostos químicos dos alimentos que ingerimos são queimados para produzir energia. As moléculas dos alimentos e o oxigênio são combinados para produzir energia nas mitocôndrias. A frataxina está localizada no interior das estruturas que produzem energia e essencialmente queimam alimentos para produzir energia.
Qual é a função da frataxina no interior das mitocôndrias? Este era o maior desafio a ser compreendido. Ela não se parece com nenhuma proteína de função conhecida que tenha sido identificada em algum organismo vivo. Contudo, o que ajudou foi o fato de que percebemos que todas as coisas vivas produzem uma proteína semelhante à frataxina: camundongos, moscas de frutas, vermes e lêvedo. O fermento de panificação produz uma proteína que é quase idêntica à frataxina humana, e está localizada no interior das mitocôndrias do lêvedo. O fato do lêvedo produzir uma proteína idêntica à frataxina representa uma grande vantagem, por ser fácil manipulá-lo geneticamente, mais fácil do que camundongos.
Células de lêvedo foram produzidas sem nenhuma frataxina por alguns laboratórios, um dos quais o do Dr Jerry Kaplan, na Universidade de Utah. A coisa mais surpreendente que ocorre com as células de lêvedo sem frataxina é o metabolismo de ferro profundamente anormal. As células de lêvedo incorporam muito mais ferro do que as células normais de lêvedo e o ferro extra incorporado pelas células acaba nas mitocôndrias. Como conseqüência do excesso de ferro nas mitocôndrias, as células tornam-se altamente sensíveis ao estresse oxidativo. Nas mitocôndrias, o oxigênio flui através de proteínas complexas denominadas cadeias complexas de respiração. Uma pequena quantidade de oxigênio fluindo através destas cadeias, nas membranas das mitocôndrias, pode formar os chamados radicais livres. Isto pode conduzir a formação de H2O2 dentro das mitocôndrias, e H2O2 reage com o ferro para formar o radical hidroxila. O radical hidroxila é uma substância conhecida por danificar as membranas mitocondriais das proteínas e o DNA. Excesso de ferro nas mitocôndrias é justamente o que não desejamos. Após os estudos iniciais em lêvedo, tornou-se extremamente importante verificar se podemos encontrar uma situação similar na doença humana. As evidências atuais indicam que a situação é provavelmente a mesma. A primeira indicação é a existência de depósitos de ferro em tecidos do coração de um paciente com ataxia de Friedreich. Isto foi descoberto cerca de 20 anos atrás por um neuropatologista canadense. Mas, naquele tempo não havia como interpretar a descoberta. Em tecidos afetados, como os do coração, observamos depósitos de ferro como aqueles observados no modelo de lêvedo. Estes depósitos de ferro são encontrados no coração de um paciente com ataxia de Friedreich, mas não no coração de um paciente com qualquer outro tipo de doença cordíaca. É uma descoberta bastante específica. Temos então uma distribuição anormal de ferro, muito ferro nas mitocôndrias e provavelmente pouco ferro fora das mitocôndrias.
Um antigo estudo de um neurologista húngaro, realizado nos anos 60, basicamente injetava ferro radioativo em pacientes com uma variedade de doenças neurológicas. Eles observaram que o ferro era retido em maiores quantidades no cérebro de pacientes com ataxia de Friedreich do que em pacientes com outras doenças ou em indivíduos normais. Esta era outra pista que estava escondida na literatura médica. Alguma coisa anormal acontece com o metabolismo do ferro na ataxia de Friedreich. Tecidos não afetados, como o músculo esquelético, não mostram nenhuma evidência de acumulação de ferro nesta doença. Isto significa que existe um processo específico afetando o tecido. Estará o ferro realmente acumulado nas mitocôndrias? Existem recentes e instigantes dados indicando que no coração de pacientes com ataxia de Friedreich existe uma acumulação de material com todas as características de ferro nas mitocôndrias, mas nós não vemos isto nas mitocôndrias do coração de outras pessoas com qualquer outra doença cardíaca. Isto é exclusivo da ataxia de Friedreich. Começamos a ter evidências de que o ferro acumulado nas mitocôndrias ocorre em tecidos afetados de pacientes com ataxia de Friedreich. Estamos agora estendendo este estudo para amostras do sistema nervoso.
Um crescimento insignificante de ferro nas mitocôndrias pode ser encontrado em células que não são afetadas pela doença, como as células da pele. Quais são as conseqüências do excesso de ferro nas mitocôndrias? Uma conseqüência em especial é a de que algumas enzimas mitocondriais contendo núcleos de ferro e enxofre são inativadas pelo excesso de ferro. Isto conduz a um mal funcionamento da cadeia do sistema respiratório e perda de energia. Além disso, a célula torna-se hipersensível a oxidantes. As células começam a morrer. O que nós estamos imaginando é que a deficiência de frataxina conduz ao acúmulo de ferro mitocondrial e isso conduz a um crescimento na geração de radicais livres e ao dano mitocondrial. Por um lado, isto conduz a privação de energia, as células não tem energia suficiente. Isto pode conduzir a morte de fibras nervosas, tanto nos nervos periféricos como na medula espinhal. Por outro lado, o dano mitocondrial pode disparar um processo denominado morte programada da célula, ou suicídio da célula. Isto pode explicar a perda celular verificada no coração e outras partes do sistema nervoso central. É importante salientar que temos evidências deste processo em culturas de células em laboratórios, mas não temos comprovação em pacientes vivos. Isto é um objetivo de futuras pesquisas.
Gostaríamos de ter um modelo de animal para a ataxia de Friedreich; atualmente existem 7 ou 8 diferentes aproximações que estão sendo testadas para gerar um modelo de rato (mouse model). Esperamos que dentro de poucos meses ou daqui a um ano isto seja possível.
Por outro lado, a idéia de excesso de ferro nas mitocôndrias sugere a possibilidade de tratamentos a serem testados para diminuir o curso da doença. Remover o excesso de ferro será muito difícil, porque o ferro situa-se em estruturas onde atualmente os queladores disponíveis não penetram com eficiência. Podemos testar os chamados antioxidantes para desativar alguns dos radicais livres que são produzidos na doença. Entre os antioxidantes utilizados em tubos de ensaio, os derivados de coenzima Q parecem ser o mais eficazes na limitação da toxicidade do ferro nas estruturas mitocondrias. Alguns grupos de pesquisas, como por exemplo na França, estão testando estas substâncias em um estudo controlado de pacientes e nós estamos planejando um estudo similar em Montreal. Esperamos alguma diminuição no curso da doença como sugerem os dados preliminares, os quais podem ser limitados e transitórios, assim não esperemos demais. O importante é que mesmo que o primeiro tratamento testado não resolva a situação, nós começamos a conquistar uma melhor compreensão do processo da doença, o que no futuro nos permitirá identificar possíveis medicamentos a serem testados em pacientes. Este é o mais importante avanço desde que o gene foi identificado.


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