Portador de ataxia sofre com o preconceito e a desinformação

Reportagem do jornal Correio Popular (Rose Guglielminetti)
Campinas - SP (04/12/2005)

Muitos confundem sintomas até mesmo com o excesso de bebida e doentes acabam discriminados

"Não estou bêbado, estou apenas doente." A frase do universitário Leandro Coelho é um grito contra a discriminação e o preconceito que sofre por ser portador de ataxia, uma disfunção do sistema nervoso central (cerebelo) que provoca a perda do equilíbrio, alteração do andar, prejuízo na coordenação motora e alterações na articulação das palavras. Ele é portador da ataxia hereditária, que, lentamente, vai se desenvolvendo e leva o doente a acabar necessitando de bengalas, andadores ou mesmo cadeiras de rodas para se locomover.
"Como eu estou com dificuldade para andar, acabo perdendo o equilíbrio nos ônibus e as pessoas pensam que estou bêbado. Além de enfrentar a doença, que não tem cura e já sei que tenho 70% de chance de que terei que usar a cadeira de rodas, ainda tenho que enfrentar o preconceito e a discriminação. Isso acaba deixando a gente triste", disse. O seu pai, a avó e uma tia morreram com a mesma doença. "Como a perspectiva de vida não é muito grande, prefiro viver o momento", ressaltou o universitário, que conclui este ano o curso de Turismo. Ele tem 26 anos.
Segundo o neurologista do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcondes Cavalcante França Júnior as ataxias são classificadas em dois grupos: as adquiridas e as hereditárias ou espinocerebelares. No primeiro caso, são aquelas causadas por problemas adquiridos ao longo da vida, como tumores do cerebelo ou derrames.
No segundo, o paciente tem uma alteração genética que leva à morte precoce dos neurônios do cerebelo e à atrofia deste órgão. "Os pacientes já nascem portando o defeito genético que herdou dos pais, mas as manifestações começam a aparecer ao fim da infância, adolescência ou começo da idade adulta. Hoje, são pelo menos 20 tipos diferentes de defeitos genéticos", explicou ele, acrescentando que não há tratamento curativo para a maior parte das ataxias hereditárias. Há tratamento apenas para um tipo, a que é causada pela deficiência genética de vitamina E. "Fazemos a reposição desta vitamina", explicou.
As adquiridas, segundo ele, podem ter melhora com o tratamento, como por exemplo, uma cirurgia para a retirada de um tumor. Porém, existem formas de tratamentos medicamentoso e não-medicamentoso que são usados para melhorar os sintomas. "A doença não causa mortalidade diretamente, mas altera bastante a qualidade de vida dos afetados e podem ocorrer complicações graves, como fraturas após quedas, aspirações de alimentos para o pulmão pela perda de controle da musculatura da deglutição etc.", explicou Marcondes.
A geneticista Iscia Lopes Sandes e a neurologista Anelyssa D’Abreu, ambas do HC da Unicamp, explicam ainda que, para melhorar a qualidade de vida dos atáxicos, é fundamental a realização de fisioterapia e fonoaudiologia. Segundo elas, há 70 pacientes em tratamento no HC da Unicamp, sendo que 50 deles são portadores da doença de Machado-Joseph (hereditária) ou ataxia espinocerebelar do tipo 3, a mais comum no Brasil. A incidência da doença é de 1,8 para cada 100 mil pessoas, no caso da Machado-Joseph e de 0,2 para 100 mil para outras formas.
A perspectiva do avanço silencioso da doença ao mesmo tempo que provoca tristeza, também estimula o paciente a vencê-la. "A cada limitação que vai surgindo, choro e depois vou me adaptando às mudanças. Você sabe que o futuro, para nós, atáxicos, será difícil. Mas, não perdemos a esperança e a doença acaba provocando mudanças de valores e passamos a rever o que é essencial para o ser humano. O sentimento de auxílio ao próximo aumenta muito e você começa a ver que o seu problema é pequeno", comenta a revisora de textos Priscila Fonseca, de 29 anos, presidente da Associação Brasileira de Ataxias Hereditárias (Abahe). Ela, que desde os 20 anos sofre de ataxia, também já foi vítima de preconceito. "Eu fui ao banco e uma pessoa achou que eu estava drogada por causa da minha fala. Me interpelou e perguntou o que eu havia tomado. Comecei a chorar e disse que tinha problema neurológico. O preconceito é fruto do desconhecimento", ponderou ela, acrescentando que a associação foi criada para estimular o debate e a divulgação de informações sobre a ataxia.
O ex-auxiliar de escritório Luís Rodolfo da Silva Almeida teve que se aposentar com apenas 30 anos por causa da ataxia. Hoje, está com 34. "A doença limita muito a nossa vida. Eu gostava de fazer balada à noite e hoje não posso mais. Passei a pintar quadros para ter o que fazer", disse ele.
Alguns portadores, no entanto, precisam fazer terapia para compreender as limitações que afetam o seu organismo. É o caso do pai da estudante Talita Ribeiro. "Como ele era muito ativo, agora faz terapia para aceitar a doença. Entrei na associação para ajudar pessoas como o meu pai", disse ela.

Tratamento alivia sintomas e melhora qualidade de vida
Os médicos reforçam a idéia de que o fato de uma doença não ter cura, não significa que não há tratamento. Na ataxia, várias terapias podem contribuir para tornar melhor a vida dos doentes. "Utilizamos todo arsenal terapêutico, desde medicamento até terapias coadjuvantes, como botox nos casos de distonia (alteração da tonicidade muscular), e fisioterapia e fonoterapia, na busca de qualidade de vida destes pacientes", explicam a geneticista Iscia Lopes Sandes e a neurologista Anelyssa D’Abreu. Ambas trabalham no HC da Unicamp.
Elas disseram ainda que incentivam os pacientes a continuarem independentes. "Financeiramente, continuando a trabalhar enquanto é seguro ou possível, até o uso de bengala e cadeira de rodas, que propiciam independência na locomoção. O universitário Leandro Coelho é um exemplo de quem obedece os conselhos das médicas. "O meu chefe já ofereceu para eu trabalhar em casa, mas não quis porque quero continuar com a minha rotina. O meu tio tem pedido para alguém me trazer até aqui. Isso tem me ajudado", disse ele.

PONTO DE VISTA
Rose Guglielminetti, Jornalista

Bravos guerreiros
Como sempre faço todos os dias ao chegar na redação, checo a minha caixa de e-mail para saber se há alguma coisa importante, traduzindo: notícia. Vi uma mensagem que chamou a minha atenção: de meu sobrinho, sugerindo uma matéria. Fiquei curiosa porque ele quase nunca manda e-mails, principalmente, porque havia me encontrado com ele no fim de semana.
Abri e ao ler, chorei. Chorei porque o seu texto trazia uma mensagem desesperada de socorro de quem é vítima diária de preconceito e discriminação. Seu texto dizia: "Rosita, veja se é possível fazer uma matéria porque temos dificuldades em explicar que não estamos bêbados e sim doentes".
Desesperada, peguei o telefone e liguei para ele para saber se estava precisando de alguma coisa. Ao que me respondeu: "Não, está tudo bem! Estou aprendendo a lidar com a doença, até porque não tem cura e tenho 70% de chance de dentro de pouco tempo estar em cima de uma cadeira de rodas". A sua resposta me entristeceu, principalmente, porque no domingo anterior, durante uma reunião familiar, discutimos sobre a evolução da doença do Leandro, o meu sobrinho.
O choro pode ter ocorrido porque tenho dificuldade em falar abertamente com ele sobre o seu estado. Observar o garoto que veio do Paraná com 16 anos, que trouxe na mala vários sonhos, enfrentando essa enfermidade que avança silenciosamente, traz muita dor, principalmente, porque não há o que fazer.
No entanto, ele próprio nos dá uma lição de vida. Mesmo sofrendo desmaios e dificuldade para andar, não abandonou o curso de Turismo e continua, bravamente, indo todos os dias ao escritório para trabalhar. "Não quero me sentir inútil. Quero viver o presente", ele me disse durante as nossas várias conversas para a produção da matéria.
Em contato com os outros portadores de ataxia, percebi o quanto procuram manter a esperança, sempre com um grito que mais parece de guerra: "Há pessoas com o mesmo problema ou até pior que o meu. São produtivas e felizes. Não sou o único". A cada entrevista, aprendi a admirá-los como bravos guerreiros que não desistem de seus sonhos. Em minhas orações agradeço a Deus por ser tia de um garoto tão forte e especial como o Leandro!

SAIBA MAIS
Os atáxicos criaram uma comunidade na rede mundial de relacionamentos Orkut, a "Não estou bêbado, tenho ataxia".
Eles também têm um grupo de discussão na internet, o Ataxianet.


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