Não Estou Bêbado, Tenho Ataxia
Reportagem do jornal Tribuna de Alagoas (Emília Bezerra)
Maceió - AL (09/04/2006)Problema pode ser adquirido ao longo da vida ou ter origem em alteração genética
Comunidades no orkut – rede mundial de relacionamentos – vêm chamando a atenção para uma doença que, não raras vezes, tem seus sintomas confundidos com o excesso de bebida alcoólica: a ataxia, uma disfunção no sistema nervoso central (cerebelo) que provoca a perda do equilíbrio, alteração do andar, prejuízo na coordenação motora e alteração na articulação das palavras.
Segundo o neurologista Fernando Gameleira, do Hospital Universitário (HU) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), as ataxias podem ser classificadas em dois grupos: as adquiridas e as hereditárias ou espinocerebelares. No primeiro caso, são aquelas causadas por problemas adquiridos ao longo da vida, como tumores do cerebelo ou derrames.
No segundo, o paciente tem uma alteração genética que leva à morte precoce dos neurônios do cerebelo e à atrofia deste órgão. "Os pacientes já nascem portando a alteração genética que herdou dos pais, mas as manifestações começam a aparecer ao fim da infância, adolescência ou começo da idade adulta", explica ele, acrescentando que já foram identificados pelo menos 20 tipos diferentes de alterações genéticas.
"Não há tratamento curativo para a maior parte das ataxias hereditárias", destaca o especialista. "Há tratamento apenas para um tipo, a que é causada pela falta de vitamina E, onde é feita a reposição desta vitamina", esclarece.
As adquiridas, de acordo com Fernando Gameleira, podem ter melhora com o tratamento – como, por exemplo, uma cirurgia para a retirada de um tumor. Existem formas de tratamentos medicamentoso e não-medicamentoso que são usadas para melhorar os sintomas. "A doença não causa mortalidade, diretamente, mas altera bastante a qualidade de vida dos afetados, podendo ocorrer complicações graves", alerta o neurologista.
Sintomas
Os portadores da doença apresentam os seguintes sintomas: ataxia (alteração do equilíbrio), disartria (dificuldade na articulação das palavras), dismetria (dificuldade em realizar movimentos para atingir um alvo), alterações na voz, na escrita e na coordenação motora.
Estes sintomas geralmente se manifestam na segunda ou terceira década de vida e resultam em total incoordenação motora e incapacidade física. No entanto, a idade de início dos sintomas, a velocidade de progressão da doença e a intensidade do quadro clínico podem variar bastante entre diferentes famílias e entre pessoas de uma mesma família.
Na SCA (ataxia espinocerebelar) também ocorre o fenômeno da antecipação, que consiste na manifestação mais grave e mais precoce da doença com o passar das gerações.
Todas as formas de SCA conhecidas têm como padrão de herança autossômico dominante, no qual indivíduos de ambos os sexos são igualmente afetados e o risco de que um filho ou filha de um afetado apresente a mesma doença é de 50%.
Melhoras
Os especialistas destacam que, para melhorar a qualidade de vida dos atáxicos, é fundamental a realização de fisioterapia e fonoaudiologia.
Segundo eles, na população brasileira, a forma mais comum de SCA é a SCA3 – também conhecida como SCA3/DMJ, que causa a doença de Machado-Joseph (MJD). A mutação responsável pela doença está localizada no cromossomo 14.
Esta doença foi descrita inicialmente em famílias com ancestralidade portuguesa, mas hoje sabe-se que famílias com outras origens raciais também apresentam esta mutação.
Avanço
A perspectiva de avanço silencioso da doença, ao mesmo tempo que provoca tristeza, também estimula o paciente a vencê-la.
"A cada limitação que vai surgindo, choro depois vou me adaptando às mudanças. Você sabe que o futuro para nós, atáxicos , será difícil. Mas não perdemos as esperanças e a doença acaba provocando mudança de valores, e passamos a rever o que é essencial para o ser humano. O sentimento de auxílio ao próximo aumenta muito e você começa ver que o seu problema é pequeno", comenta a revisora de textos Priscila Fonseca, de 29 anos, presidente da Associação Brasileira de Ataxias Hereditárias (ABAHE).
Ela, que desde os 20 anos sofre de ataxia, também já foi vítima de preconceito. "Eu fui ao banco e uma pessoa achou que eu estava drogada por causa da minha fala. Me interpelou e perguntou o que eu havia tomado. Comecei a chorar e disse que tinha um problema neurológico", pondera Priscila, considerando que o preconceito é fruto do desconhecimento.
"Por isso a ABAHE foi criada, para estimular o debate e a divulgação de informações sobre a ataxia", ressalta.
Tratamento
Os médicos reforçam a idéia de que o fato de uma doença não ter cura não significa que não exista tratamento. Na ataxia, várias terapias podem contribuir para tornar melhor a vida dos doentes. "Pode ser utilizado todo o arsenal terapêutico, desde medicamentos até terapias coadjuvantes, como o botox, nos casos de distonia (alteração na tonicidade muscular), e fisioterapia e fonoterapia, na busca de qualidade de vida desses pacientes", explica o neurologista do HU.
Ele complementa ainda que é fundamental incentivar os pacientes a continuarem independentes. "É bom trabalhar enquanto é seguro ou possível", enfatiza Fernando Gameleira.
Saiba quem é mais suscetível a apresentar o problema
Quem é mais suscetível de ter ataxia? Em uma resposta simples pode-se dizer que qualquer pessoa pode ter ataxia, independentemente de sexo, idade ou raça. Uma resposta mais completa requer, entretanto, que sejam definidas duas categorias opostas de ataxia.
A primeira, a ataxia hereditária, refere-se a certo grupo de degenerações espinocerebelares (medula espinhal e cérebro). Inclui uma grande variedade de mudanças físicas, ocorrendo com o sistema nervoso, tornando muitas vezes difícil uma classificação precisa. As ataxias hereditárias são subdivididas em dominantes e recessivas.
A outra, a ataxia esporádica, ocorre em indivíduos que não têm histórico familiar da doença. Entre as doenças médicas e neurológicas que podem causar ou ser associadas com as ataxias esporádicas estão o câncer (particularmente o de pulmão e de ovário), certas deficiências de vitaminas (por exemplo, B12 e E), hipotiroidismo, certas drogas (por exemplo, para tratamento de epilepsia).
Derrames cerebrais, tumores ou cistos no cerebelo, efeitos residuais de encefalite ou sufocação, exposição drogas tóxicas (por exemplo, metais pesados, tais como chumbo e tálio), desordens enzimáticas ou metabólicas raras, esclerose múltipla, vários tipos de neuropatia periférica também fazem parte da lista.
Transmissão
Embora existam algumas exceções, os dois modos de transmissão – dominante ou recessiva – cobrem a maioria das ataxias hereditárias.
Se um particular tipo de ataxia é descrito como sendo dominante (herança autossômica dominante), então significa que é transmitida na família. Como os cromossomOs humanos são em pares, há duas cópias de cada gene, herdados de cada um dos pais. Nas doenças dominantes, como a SCA1, uma única cópia herdada de um dos pais é suficiente para transmitir a doença. A outra cópia pode ser normal, mas na presença de um só gene SCA1, a pessoa apresentará os sintomas da doença.
Se apenas um dos pais te uma doença dominante, um filho tanto pode herdar uma cópia normal do gene como a cópia defeituosa, dando então origem à desordem genética. Assim, há uma igual probabilidade para o gene herdado, portanto o risco de desenvolver os sintomas é de 50%.
Herança recessiva
Na herança recessiva (herança autossômica recessiva), uma única cópia de um gene defeituoso não é suficiente para a transmissão da doença; uma só cópia do gene do gene é o bastante para realizar a função adequadamente. Isto significa que há muitas pessoas que são portadoras de cópias defeituosas mas, porque elas também tem uma cópia normal do gene, não desenvolvem nenhum sintoma. Este é o caso da ataxia de Friedreich.
Alguns raros tipos de ataxias ocorrem devido a mutações no código DNA produzido no momento da concepção. Não se trata de herança dos pais e são freqüentemente tomadas como sendo ataxias esporádicas. Algumas dessas novas mutações no DNA podem então ser repassadas como dominantes.