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TEXTOS SELECIONADOS
Como Escrever Histórias em Quadrinhos
- Parte I
Por Alan Moore
N. do T.: Para esta primeira parte, é interessante que
você tenha à mão, se possível, a excelente
edição Monstro do Pântano, Volume 1, publicada
recentemente pela editora Brainstore, ou então as antigas
edições de Novos Titãs e Superamigos,
publicadas pela editora Abril, com as histórias do Monstro
do Pântano; V de Vingança, da editora Globo
ou da Via Lettera; Qualquer edição de A Piada
Mortal e edições de Love and Rockets.
A maior dificuldade de escrever sobre qualquer atividade criativa, seja
escrever sobre ela mesma até escrever sobre como consertar automóveis
é que, na maioria das vezes, os artigos ou entrevistas que surgem
parecem ser incapazes de se estenderem além de informações
técnicas óbvias e listas de instrumentos recomendados. Não
quero recair nessa mesma rotina, dizendo qual máquina de escrever
eu uso, ou qual tipo de papel carbono acho ser o melhor, já que
esta informação não fará a menor diferença
na qualidade do que você escreve. Da mesma maneira, não acho
que uma análise precisa do meu processo de trabalho seja muito
útil, já que imagino que ele varia drasticamente de história
para história, e que todo escritor tende a desenvolver sua própria
abordagem em resposta a suas próprias circunstâncias.
Além disso, não quero produzir nada que lembre, nem remotamente,
algo como O Método Alan Moore de Escrever HQs.
Ensinar gerações de novos artistas e escritores a copiar
a geração que os precedeu foi uma idéia estúpida
de uma época onde a Marvel lançou seu livro O Método
Marvel de Desenhar HQs e seria igualmente irresponsável
da minha parte instruir escritores novos ou experientes sobre como escrever
títulos idiotas e extravagantes do tipo "O Alvorecer Transformou
O Céu num Matadouro" ou algo assim. John Buscema
foi um grande artista, mas a indústria não precisa de cinqüenta
pessoas desenhando como ele, e menos ainda de outros cinqüenta escrevendo
como eu.
Com tudo isso em mente, gostaria de tentar expor algo que acrescente
a este extenso capítulo sobre como podemos realmente pensar sobre
a arte de escrever quadrinhos, que é melhor do que uma lista de
detalhes específicos. Gostaria de falar sobre abordagens e processos
mentais que dão suporte a escrita como um todo, ao invés
de falar sobre o modo como esses processos são finalmente colocados
no papel. Da forma que vejo a situação, o modo como pensamos
ser o ato de escrever inevitavelmente moldará os trabalhos que
produzimos. Analisando a maior parte da produção corrente
das principais companhias de quadrinhos, me parece que um fator que contribui
enormemente ao desânimo geral sejam os estagnados processos de pensamento
promovidos por elas. Seguramente, em termos das convenções
gerais de escrever quadrinhos atualmente, minha tendência é
ver as mesmas como mecânicas estruturas de enredo e a mesma abordagem
funcional de caracterização sendo usada várias e
várias vezes, até o ponto em que as pessoas encontram uma
grande dificuldade em imaginar onde poderiam estar maneiras diferentes
de fazer as coisas.
Como nossos pressupostos básicos sobre a nossa profissão
vêm se tornando cada vez mais obsoletos, achamos que isso se refere
mais a um problema de criar trabalhos de alguma relevância para
um mundo que se altera rapidamente, no qual a indústria e os leitores
que a sustentam realmente sejam considerados. Por relevância, já
que toquei no assunto, não falo de histórias sobre relações
raciais e poluição, ainda que elas certamente sejam boa
parte disso. Falo de histórias que realmente tenham algum tipo
de significado em relação ao mundo ao nosso redor, histórias
que reflitam a natureza e a textura da vida nestes últimos anos
do século vinte. Histórias que sejam úteis de alguma
maneira. Reconhecidamente, seria muito fácil para a indústria
viver confortavelmente por um tempo se aproveitando das fraquezas de leitores
que acompanham os quadrinhos devido a nostalgia ou por simples escapismo,
mas a industria que trabalha exclusivamente dessa forma é, no meu
entender, impotente e digna apenas de um pouco mais de consideração
ou interesse do que a indústria de cartões comemorativos.
O motivo pelo qual escrever para os quadrinhos seja talvez até
mesmo mais interessante que desenhá-los é que escrever acaba
sendo o estopim de todo o processo. Se o que for pensado antes de escrever
for inadequado, o enredo é inadequado. Desse modo, até mesmo
sob as mãos dos melhores artistas do mundo, a história finalizada
vai lamentar a falta daquilo que nenhuma soma de imagens coloridas e impressão
poderia substituir ou compensar. Para mudar os quadrinhos, nós
precisamos mudar a maneira de pensar sobre sua criação,
e a investigação a seguir deve ser vista apenas como os
primeiros e toscos degraus para este fim.
Ao buscar um melhor lugar para começar, talvez seja interessante
começar por uma extensa consideração sobre os quadrinhos
e suas possibilidades, e daí extrair nosso método. Ao pensar
sobre quadrinhos, você tem que ter alguma idéia sobre o que
é o assunto que está sendo considerado. É aqui que
começa a nossa primeira dificuldade: no esforço de definir
os quadrinhos, muitos autores têm arriscado pouco mais do que rascunhar
comparações entre uma técnica e outra, mais amplamente
aceitáveis como formas de artes. Quadrinhos são descritos
em termos de cinema e, com efeito, muito do vocabulário que emprego
todo o dia nas descrições das cenas para qualquer artista
provém inteiramente do cinema. Falo em termos de close-ups,
long-shots, zooms e panorâmicas; é uma útil
linguagem convencionada de instruções visuais precisas,
mas ela também nos leva a definir os valores quadrinhísticos
como sendo virtualmente indistingüíveis dos valores cinematográficos.
Enquanto o pensamento cinematográfico tem, sem sombra de dúvida,
produzido muitos dos melhores trabalhos em quadrinhos dos últimos
trinta anos, eu o vejo, quando modelo para basear nosso próprio
meio, como sendo eventualmente limitante e restringente. Por sua vez,
qualquer imitação das técnicas dos filmes pelos quadrinhos
faz com que acabem perdendo, inevitavelmente, na comparação.
É claro, você pode usar seqüências de cenas de
forma cinematográfica para tornar seu trabalho mais envolvente
e animado que o de quadrinhistas que não dominam este truque ainda,
mas em última análise, você acaba ficando com um filme
sem som nem movimento. O uso de técnicas de cinema pode ser um
avanço para os padrões de escrever e desenhar quadrinhos
mas, se estas técnicas forem encaradas como o ponto máximo
ao qual a arte dos quadrinhos possa aspirar, nosso meio está condenado
a ser eternamente um primo pobre da indústria cinematográfica.
Isso não é bom o bastante.
Quadrinhos também são vistos em termos literários,
ambicionando traçar comparações entre seqüências
quadrinhizadas e formas literárias convencionais. Assim, as "histórias
curtas" dos quadrinhos seriam aproximadamente baseadas em fórmulas
clássicas de escritores como O. Henry e Saki (escritores
populares norte americanos da virada do século, que praticamente
"inauguraram" esta forma de conto contemporâneo), com
o desfecho surpresa no último quadrinho. Com "menos inteligência
ainda", uma HQ com mais de quarenta páginas é automaticamente
comparada a um romance, uma vez mais perdendo terrivelmente com a comparação.
Com toda a boa vontade do mundo, se você tentar descrever a Graphic
Novel da Cristal nos mesmos termos em que descreveria Moby Dick,
então você está simplesmente procurando por encrenca.
Opondo-se à idéia de filmes sem som nem movimento, teremos
romances sem extensão, profundidade ou sentido. Isso também
não é bom o suficiente.
Para piorar as coisas, toda vez que se usam técnicas de outras
linguagens, há uma tendência dos criadores de quadrinhos
em permanecerem firmemente presos ao passado. Olhando o que vem sendo
descrito como trabalhos cinematográficos nos quadrinhos, normalmente
encontramos alguém falando que tirou suas idéias sobre cinema
quase que inteiramente do trabalho de Will Eisner, ou mais precisamente,
do que ele fazia há trinta ou quarenta anos atrás. Não
é um mal começo, eu admito, exceto que a maioria das pessoas
parece se contentar apenas com aquilo. Eisner, no auge de The
Spirit, utilizou as técnicas cinematográficas de pessoas
como Orson Welles, com resultados brilhantes. Seus imitadores também
usam as técnicas cinematográficas de Orson Welles,
mas de segunda-mão, esquecendo que Eisner estava aprendendo
com a cultura que o cercava naquele tempo. Cinema nos quadrinhos eqüivalem
a Welles, Alfred Hitchcock, e talvez alguns outros mais,
tendo todos eles realizado seus melhores trabalhos há trinta anos
atrás. Por que não se tenta entender e adaptar o trabalho
de pioneiros contemporâneos como Nicolas Roeg ou Altman
ou Coppola, se o que estamos procurando é uma abordagem
verdadeiramente cinematográfica? Por que os valores literários
nos quadrinhos devem ser determinados pelos valores dos velhos pulp fictions
de trinta ou quarenta anos atrás, independentemente do valor que
estes pulp fictions possam ter?
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