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TEXTOS SELECIONADOS
Como Escrever Histórias em Quadrinhos
- Parte I
Por Alan Moore
Melhor que agarrar-se nas similaridades superficiais entre quadrinhos
e filmes ou quadrinhos e livros na esperança de que a respeitabilidade
e o prestígio dessas linguagens venham purificar-nos, não
seria mais construtivo concentrar nossa atenção nas áreas
onde os quadrinhos são especiais e únicos? Não seria
melhor que, ao invés de persistir em técnicas de filmes
que os quadrinhos podem reproduzir, tentássemos talvez considerar
as técnicas de quadrinhos que os filmes não podem reproduzir?
Se, por um lado, acreditava-se que a garantia de maior liberdade criativa
ou a divisão do conhecimento desenvolvido entre os artistas e escritores
na indústria produziria um surto de uma impressionante criatividade
e invenção, por outro lado, não é esse o nosso
caso. Com muito raras e honrosas exceções, a maioria do
material de criação própria produzido pelas editoras
independentes quase não se distingue da produção
corrente que o precedeu. Me parece que isso demonstra que o problema não
é, a princípio, de condições de trabalho ou
de incentivo; o problema é de criatividade, e é num nível
criativo básico que ele poderá ser resolvido. Não
acho que esta solução virá sem uma melhoria drástica
do padrão de se escrever para os quadrinhos, uma vez que, como
disse no começo, o escritor é o estopim de todo o processo
criativo. Para este fim, então, vamos mudar de assunto, onde darei
o melhor de mim para descrever alguns dos problemas e do potencial que
vejo em vários aspectos na arte de escrever quadrinhos.
Uma vez mais, a dificuldade é saber por onde começar. A
lista de considerações a serem feitas, mesmo para a mais
simples HQ, é enorme, e ela realmente não interessa para
o que nós escolhemos examinar primeiro. Tudo está conectado,
e cada item leva ao outro. Dessa forma, podemos igualmente colocar, a
princípio, os elementos mais intangíveis e abstratos fora
de seu contexto, antes de prosseguir nos aspectos mais refinados e precisos
da arte. Um bom ponto de partida talvez seja aquele que repousa exatamente
no centro de qualquer processo criativo: a idéia.
A idéia é aquilo sobre o qual a história trata;
não é nem a trama da história, nem o desenrolar dos
eventos dentro da história, mas aquilo que a história essencialmente
é. Como exemplo do meu próprio trabalho (não porque
ele seja particularmente um bom exemplo, mas porque me sinto com mais
autoridade para falar dele do que teria se fosse o trabalho de outra pessoa),
eu poderia citar a história A Maldição. A
história trata das dificuldades suportadas pelas mulheres nas sociedades
masculinas, usando o tabu comum da menstruação como motivo
central. Isso não é a trama da história - a trama
diz respeito a uma jovem casada se mudando para uma nova casa, construída
sobre o local onde havia uma antiga choupana indígena, que se vê
possuída pelo espírito dominante que ainda residia ali,
transformando-se num lobisomem. Eu espero que aqui a distinção
entre idéia e trama tenha ficado bem clara, pois ela é importante
e é ignorada por muitos escritores. A maioria das histórias
em quadrinhos possuem tramas nas quais o único assunto é
a luta entre dois ou mais antagonistas. O resultado desse confronto, normalmente
envolvendo alguma mostra deus ex maquina de algum superpoder, é
igualmente a resolução da trama. Além de uma banalidade
extremamente vaga e sem graça do tipo o bem sempre vencerá
o mal, não há realmente idéias centrais na maioria
dos quadrinhos, fora a noção de que o conflito é
interessante por si mesmo.
De onde as idéias realmente vêm parece ser, à primeira
vista, a maior preocupação da maioria das pessoas interessadas
em aprender como escrever quadrinhos, e é, provavelmente, a única
questão que as pessoas criativas se perguntam com mais freqüência.
Sem surpreender, é também a questão que mais têm
permanecido sem resposta. Se ameaçassem me torturar para que eu
desse uma resposta concisa, provavelmente diria que as idéias parecem
germinar na fértil encruzilhada entre as influências de outros
artistas e minhas próprias experiências. O estudo do trabalho
de outras pessoas fornece indicadores úteis de como formular uma
idéia, mas o impulso primordial vem de dentro do escritor ou criador,
influenciado pelas suas próprias opiniões, seus preconceitos,
por todas as coisas que têm acontecido com eles e por todos os elementos
de suas vidas que acabam por definir o tipo de pessoa que eles são.
Não há substituto para a experiência prática,
e se você quiser escrever sobre gente, você tem o dever de
desprezar as revistas em quadrinhos e sair por aí procurando coisa
melhor que estudar o modo como Stan Lee ou Chris Claremont
descrevem pessoas.
Torna-se um problema de mudar sua percepção para notar
pequenas circunstâncias peculiares que poderiam, de outro modo,
passar despercebidas, estudando nosso próprio convívio e
o relacionamento com as pessoas e os acontecimentos que nos rodeiam até
você sentir que desenvolveu uma visão coerente sobre a vida
e a realidade, ao menos tão longe quanto ter a perspectiva sobre
situações que indiquem a vinda de idéias próprias
e originais. Eddie Campbell tem desenvolvido uma visão extraordinariamente
singular e perceptiva para a trivialidade da existência, e isso
lhe permite transformar coisas que poderiam, de outra maneira, parecerem
ordinárias e indignas de nota, em algo ao mesmo tempo revelador
e divertido. Minha tese é que você não pode ensinar
as pessoas a terem a mesma percepção e idéias que
Eddie tem... você deve apenas seguir as orientações
de sua própria cabeça, de um certo modo em direção
a como você vê a vida e você perceberá que as
idéias então virão espontaneamente, ao final, quase
sem nenhum estímulo. Um único e novo ponto de vista nunca
é reduzido a uma única e nova coisa a dizer ou sobre a qual
falar. Visto da maneira certa, tudo se transforma em uma fonte de idéias.
Abrindo o jornal na página de economia e lendo sobre a escalada
do déficit internacional, algo que poderia parecer chato e duro
de engolir à primeira vista é, na realidade, uma situação
primorosamente louca que muito provavelmente vai afetar violentamente
a vida de todos os que vivem neste planeta pelas próximas décadas
e mais além. Há um jeito disto se tornar interessante, talvez
divertido, ou talvez aterrorizante, ao leitor comum? E se você constasse
isso em termos de uma fantástica alegoria, situada num planeta
alienígena com algo absurdo do tipo pele de rato servindo de dinheiro?
A idéia de um punhado de alienígenas imbecis pondo irrevogavelmente
seu planeta em polvorosa atrás de um punhado de peles de rato talvez
seja divertida? E que tal se fizéssemos uma história implacavelmente
séria e realista, substituindo os grandes interesses nacionais
envolvidos por indivíduos, pessoas, para que o problema possa ser
sentido em pequena escala, em termos de elementos humanos, talvez com
um agente de uma companhia de empréstimos tentando cobrar os pagamentos
numa inóspita e hostil comunidade rural? Existe alguma coisa aqui
capaz de prender o interesse das pessoas por uns dez ou quinze minutos?
De outra maneira, talvez alguns incidentes do nosso próprio passado
providenciarão o germe de uma história. Quando criança,
por exemplo, se meus pais me flagrassem em algum pequeno delito que eu
estivesse convencido que eles não teriam possibilidade de saber,
algumas vezes ocorria-me que talvez os adultos pudessem ter algum poder
especial de saber de tudo, que mantinham escondido das crianças.
De fato, algumas vezes tive a impressão que talvez todo mundo tinha
tal habilidade, exceto eu, e que eu era a única pessoa excluída
dessa massiva conspiração telepática em massa (se
você continuar pensando neste tipo de coisa depois dos nove anos
de idade, você pode ser tanto um esquizofrênico paranóico
quanto um escritor de quadrinhos, assumindo que você faça
questão de manter alguma distinção).
Usando esse medo infantil irracional como trampolim, seria possível
alcançar talvez um tipo de fantasia à la Ray Bradbury
sobre o universo infantil, ou talvez uma cruel história do horror
psicológico sobre a paranóia como fenômeno em si,
talvez tendo uma criança que sofria de complexo de perseguição
que se tornou um agente da espionagem do baixo escalão, trabalhando
incógnito do lado errado do Muro de Berlim, num mundo onde todos
os seus horrores de infância tornam-se tangíveis e reais?
Por favor, tenha sempre em mente que as idéias colocadas não
são necessariamente boas idéias... elas apenas são
alguns exemplos tirados da manga das formas pelas quais as idéias
aproveitáveis podem ser conduzidas.
Eu deveria talvez assinalar que, ao construir uma história, nem
sempre é preciso começar por uma idéia. É
perfeitamente possível arrumar inspiração para uma
história pensando apenas em macetes técnicos puramente abstratos
ou numa seqüência de cenas ou em qualquer coisa parecida. Em
algum lugar do processo, de qualquer maneira, uma idéia coerente
deve começar a surgir do trabalho além dos seus simples
maneirismos. Se acontecer de você pensar primeiro numa nítida
e curta seqüência de quatro quadros, muito bem, mas você
deve então tentar explorar mais o tipo de caráter ou de
idéia que os quatro quadros melhor expressam. Como exemplo do meu
próprio material, uma idéia original que eventualmente é
elogiada dos primeiros quatro ou cinco episódios que fiz com o
Monstro do Pântano, toma forma como um punhado de idéias
desconexas para seqüências que tinham um pequeno significado,
individualmente: uma última idéia era utilizar a capacidade
de camuflagem do Monstro do Pântano... talvez ter parte de
sua perna ou de seu corpo visível no cenário de tal modo
que tanto o leitor quanto os outros personagens não percebam que
estão olhando para a criatura do pântano durante alguns segundos.
Isto acabou sendo as duas primeiras páginas da história
Possuído pelo Pântano.
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