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TEXTOS SELECIONADOS Como Escrever Histórias em Quadrinhos - Parte II Por Alan Moore Percebi que nos esboços originais de Steve (Bissete) e John (Totleben) para o tratamento proposto ao personagem, os caninos eram mais pronunciados e a boca tinha um leve formato felino, com uma fissura no lábio superior. Isto sugeria que a voz do personagem pudesse ser levemente malformada, a fala dificultada pela deformação no lábio e dentes. Munido com todas essas informações, fechei as cortinas do meu escritório para que os vizinhos não me se preocupassem e enviassem um assistente social ou algo assim, e tentei então imaginar qual seria realmente a sensação de ser o personagem. Imaginei o imenso peso do seu corpo, que era agora muito menor, e vi que isso poderia dar aos movimentos do seu corpo um tipo de momentum terrível. Com a natureza selvagem sugerida pelos caninos proeminentes em mente, coloquei a prova a sensação de arquear-me como Quasímodo e agachava-me levemente enquanto caminhava. Após sentir que tinha captado a sensação física do personagem, experimentei então a voz, empurrando meus dentes superiores para fora e enrolando meu lábio superior até eu sentir dificuldade de falar claramente. Fez algum sentido, afinal, parecer necessário falar muito devagar, o que sugeria uma espécie de qualidade de som-de-gramofone-tocado-em-baixa-rotação na voz, muito profunda e muito gutural. Eventualmente, imaginei que a voz exata que eu estava procurando era um tipo de versão de tratamento eletrônico da voz de Charles Laughton em Mutiny on the Bounty. Tendo intuído a voz e a postura do personagem, você pode fixar a impressão em sua mente para utilizá-la quando chegar a hora de colocar os personagens em ação e produzir um diálogo realista para eles interpretarem. Uma conclusão a qual cheguei é que quase todo mundo tem um número praticamente infinito de facetas em sua personalidade, mas que preferem focalizar em apenas um punhados delas na maior parte do tempo. Temos áreas em nosso interior que são cruéis, impetuosas, covardes, libidinosas, violentas, mesquinhas... Se pudermos descrever um personagem com estes atributos, poderemos estar preparados para encarar áreas de nossa personalidade que sentimos menos confortáveis à nossa vista e fazer uma avaliação honesta de o que vemos. Reciprocamente, todos temos facetas que são nobres, heróicas, altruístas ou carinhosas, se nos importar admiti-las ou não. Ao criar um personagem nobre, você deve primeiro tentar enxergar qualquer fagulha de nobreza que possa haver em você, mesmo que seja improvável a possibilidade de sua existência durante seus momentos de exposição. Quanto mais você experimentar na caracterização, mais confiante você se torna para eliminar alguns dos mais específicos e complicados da arte. Com escritor masculino, por exemplo, heterossexual assumido, como posso escrever sobre personagens homossexuais, ou personagens negros, ou personagens femininos? Teoricamente, claro, deve ser mais fácil escrever pessoas de outra raça, gênero ou inclinação sexual do que escrever sobre vegetais conscientes, ubermenschen alienados ou criaturas das profundezas. Quando isso ocorrer, se você errar na caracterização do seu vegetal ambulante, você não vai ofender, machucar ou desrespeitar ninguém que exista de verdade. Relacionar os vários tipos diferentes de personagens que você provavelmente irá criar ao longo de sua carreira é, ao mesmo tempo, absorver e processar informações. Um dia você será uma criança assassina em Nova York, no outro, um criatura cristalina sapiente em Altair 4, e em outro, uma freira de setenta anos trabalhando com os sobreviventes da Segunda Peste em Londres durante o ano de 2237. Você será forçado a levar em conta pessoas que são política e moralmente ofensivas para você e tentar entendê-las. Isso pode as vezes ser pessoalmente e profissionalmente recompensador, mas o resultado principal é que, ao escrever sobre personagens durante o curso do seu trabalho, você atingirá o nível certo de cuidado e aspiração requerido para um grau de autenticidade e estilização com completa compreensão dos princípios envolvidos. Lembre-se de que tudo na história é um personagem, mesmo que aconteça dele apenas passear pelo cenário sem dizer uma palavra e jamais venha a ser visto novamente. Toda vez que começar um história, você estará criando um mundo e o povoando. Mesmo se você não disponha de tempo para gastar os costumeiros sete dias por semana para isso, você deve ao menos estar ciente de que deu a isso tanta reflexão quanto foi necessária. INÍCIO ------------- VOLTAR ------------- PARTE III
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