Desafiando a Ciência e os Preconceitos Sociais
Reportagem do jornal Meio Norte (Rita Lúcia)
Teresina - PI (24/09/2000)Kátia Cristina
Desafiando a ciência e os preconceitos sociais
A imagem que se tem de uma pessoa que anda de cadeira de rodas é de uma figura triste e pessimista. A estudante de Direito, Kátia Cristina Santana Gomes, 21 anos, é exatamente o contrário. Bonita e com um sorriso quase permanente no rosto, a estudante nem de longe demonstra sofrimento por estar presa a uma cadeira de rodas. Ela carrega um problema sério de saúde que a impede de caminhar.
Kátia Cristina é portadora de Ataxia, uma desordem neurológica degenerativa de origem genética que afeta o equilíbrio e a coordenação muscular. Com a evolução, a doença pode também dar origem a complicações de fala, audição, visão e coração, não afetando, porém, a inteligência. "Eu fui diagnosticada aos 16 anos. Mas apresentei esse problema ainda criança, só que não sabia", explica.
Kátia teve a doença mascarada devido um problema de coluna (escoliose) onde precisou usar um colete ortopédico durante quatro anos. "Comecei a perder o equilíbrio na adolescência, mas só fui levada ao neurologista quando disse ao ortopedista que não conseguia ficar em pé. No início achei que fosse provocado pelo colete, mas outras colegas que usavam não sentiam a mesma coisa", comenta.
A dificuldade de caminhar levou Kátia a sofrer alguns preconceitos sociais, mas também lhe ensinou a valorizar outras coisas. "Foi uma das fases mais difíceis, porque eu estava num período de transição (adolescência) e não conseguia andar como todo mundo. Isso me inibia de ir fazer muitas coisas, na escola eu evitava ir ao quadro porque os colegas ficavam sorrindo, era como se eu estivesse bêbada", revela. A Ataxia é como estar preso a um corpo que não responde aos seus comandos. Cada dia é um teste de coragem, com novos desafios diários por causa da progressão da doença.
FUTURO - A estudante conta que sente um pouco de medo quando pensa no futuro. "Os sintomas são muitos. Eu não sei como vai ser amanhã, porque é uma doença progressiva. Tenho medo de ter problemas na fala, porque logo se pensa que quem tem problema na fala, tem problema mental. E não é o caso dos portadores de Ataxia, a inteligência não é afetada".
Uma pessoa com esse problema tem que lutar o tempo inteiro contra a progressão da doença e todos os tipos de preconceitos da sociedade. A dificuldade de andar tem transformado Kátia Cristina numa grande lutadora, que tenta se superar a cada dia. "Eu aprendi a não desistir nunca. Hoje, tudo que sei sobre Ataxia eu aprendi na Internet". Ela participa de três grupos: Ataxianet, Internaf e ListaVital, que é um grupo de discussão dos deficientes do Brasil.
Kátia chegou a ir aos Estados Unidos, só para participar do Encontro Anual da NAF (Fundação Nacional da Ataxia), onde reuniu mais de 300 portadores da doença, a estudante piauiense foi a única representante do Brasil. "Foi uma troca de experiência fantástica, serviu para ver o que podemos fazer para facilitar nossas vidas, como defender nossos direitos", relata.
A garota diz que busca viver o hoje, porque o amanhã não sabe como vai ser. Kátia Cristina revela ainda que o que mais mais lhe conforta é o apoio que recebe da família e de alguns amigos. "Eu tiro essa força do apoio da minha família e dos amigos, mas não tenho muito aquela coisa de sair, devido a dificuldade de locomoção".
Kátia disse que a cadeira de rodas trouxe mais independência para fazer certas coisas. "Antes dependia totalmente das outras pessoas para fazer a tarefa mais simples; na cadeira, faço tudo sozinha". A estudante disse que até o mês de junho ia para a Faculdade caminhando com a ajuda dos pais, ela usava um andador, mas quando precisou adotar a cadeira de rodas não teve nenhuma resistência.
Quanto a lazer, Kátia Cristina diz que adora ir ao Teresina Shopping porque é o único local da cidade que tem rampas de acesso. "Como moro numa cidade que não tem muitos acessos, então minhas opções ficam limitadas. Vou sempre ao cinema". Outro divertimento é passar horas no computador, é uma forma de não se sentir isolada do mundo. Para ela, é reconfortante saber que não é a única com essa doença.
"Tenho muitos amigos internautas e também gosto de pesquisar. A internet é um mundo fascinante", comenta. Quanto à sua carreira profissional, Kátia Cristina disse que não costuma pensar muito. "Queria ser médica, mas devido a falta de equilíbrio, desisti. Optei por Direito e vou fazer o que for mais adequado para mim. Não sei o que me espera amanhã", conclui.Sem aviso antecipado
Os sintomas podem variar desde desequilíbrio, maneira inadequada de andar (como se estivesse embriagado), fala arrastada até a dificuldade para as tarefas mais simples. Estamos falando da Ataxia, um distúrbio da coordenação dos movimentos voluntários, problema que atinge milhares de pessoas em todo o mundo, sem escolher raça, sexo ou classe social, podendo manifestar-se em qualquer idade.
"A Ataxia é um sinal que pode representar meia centena de doenças diferentes", explica o médico Reinaldo Mendes de Carvalho Júnior, 47 anos, neurocirurgião. Segundo ele, a ataxia pode ser confundida com várias outras doenças, como por exemplo, o mal de Parkinson. Quem também fala do assunto é o neurologista Raimundo Nonato Campos Sousa, 48 anos.
"É um distúrbio que pode ser confundido também com tumor na cabeça, infecções como sífilis, intoxicação. O alcoolismo (crônico) também leva essa doença, porque destrói os nervos". Raimundo Nonato afirma que outros órgãos também são afetados por esse distúrbio. "As ataxias heredodegenerativas acometem primariamente o cerebelo (área do cérebro responsável pela coordenação) e o tronco cerebral.
No que se refere às causas, ele disse que são múltiplas, porém, a mais freqüente é a ataxia de Friedreich. Ele disse que várias doenças podem levar à ataxia de Friedreich, algumas são hereditárias e outras são espontâneas. Enquanto isso, Reinaldo Mendes diz que os fatores emocionais podem agravar suas manifestações. "A emoção piora qualquer manifestação da coordenação do movimento", declara, categórico.
Indagado se é uma doença que tem cura, o médico fala que em geral são doenças progressivas. "Pode chegar até 50 anos", completa Raimundo Campos.
DIAGNÓSTICO - Campos argumenta que distinguir uma ataxia de outra doença não é uma tarefa muito fácil. "É difícil, principalmente distinguir a ataxia degenerativa entre si. Hoje em dia (a partir da década de 90), foram desenvolvidos testes genéticos que proporcionaram um salto muito grande no diagnóstico e nas individualizações da ataxias, destacando o cromossomo número nove, cuja alteração é responsável pela doença de Friedreich, a mais comum", explica.
Já o médico Reinaldo Mendes destaca o tratamento das ataxias tratáveis, sobretudo no Nordeste, região onde esse mal é bastante freqüente. Segundo ele, o problema é provocado por um defeito no desenvolvimento fetal ligado a um traço característico do nordestino. "Isso provoca o encurtamento do pescoço e achatamento da cabeça, defeito esse chamado impressão basilar. Esse defeito consiste na invaginação da coluna vertebral para dentro do crânio levando à compressão do tronco do cérebro e do cerebelo, causando a ataxia. Essa condição é tratável cirurgicamente.
O neurocirurgião diz que todas essas cirurgias podem ser realizadas aqui em Teresina, com cobertura do SUS. "O tratamento da ataxia vai depender da sua causa. As ataxias hereditárias somente dispõem de tratamento sintomático, aí se incluindo a fisioterapia", completa Reinaldo.
Quanto ao método mais fácil de diagnosticar a ataxia, Raimundo Campos é quem responde. "O diagnóstico felizmente pode ser detectado por testes genéticos. O básico é um bom exame neurológico clínico. No entanto, todo paciente com ataxia termina se submetendo a um exame de ressonância magnética para descartar outras passíveis de cura".
O neurocirurgião Raimundo Campos finaliza dizendo que a última palavra nesse assunto é o estudo do genoma, que já está revelando quem em uma família vai desenvolver determinada doença.A importância do diagnóstico clínico
"A ataxia é uma manifestação neurológica caracterizada pela alteração da coordenação (movimentos descordenados). Ela pode está relacionada com uma lesão na parte posterior da medula espinhal (ataxia sensitiva) ou devido a uma desordem no cérebro (ataxia motora)", a explicação é do médico Manoel Balduíno, 35 anos, especialista em neurocirurgia.
De acordo com o especialista, a ataxia sensitiva pode está relacionada com doença do metabolismo, alcoolismo, doença vascular ou trauma. Já a ataxia motora pode está relacionada com doença degenerativa, alcoolismo, doença vascular, trauma, tumores.
"A doença heredodegenerativa é muita rara. Tem implicações genéticas (há relatos de vários casos de família). Habitualmente não existe um tratamento definitivo." Segundo Manoel Balduíno, quando ela é causada por tumor, outras alterações vêm associadas como, aumento da pressão intra-craniana, dor de cabeça intensa, persistente, vômitos, visão dupla (diplopia).
Nessa caso, diz o médico, o diagnóstico é confirmado por uma tomografia ou ressonância magnética do encéfalo e o tratamento é a cirurgia. "O resultado do tratamento depende do tipo de tumor. Se benigno ou maligno. Nesse caso, a ataxia seria a conseqüência de um tumor". Na opinião do especialista, o mais importante é o diagnóstico clínico procurar a causa.Uma doença ainda subestimada
Amanhã (25 de setembro) será comemorado pela primeira vez o "Dia Internacional de Divulgação da Ataxia". A ataxia se desenvolve com mais freqüência em crianças e adultos jovens. Atualmente não existe cura definitiva para essa desordem neurológica. O objetivo dessa campanha é ajudar os pacientes de ataxia através de educação, pesquisa e apoio.
Estima-se que existem, nos Estados Unidos, aproximadamente 150 mil pessoas afetadas ou com risco de serem afetadas por algum tipo de ataxia. Obedecida a mesma proporcionalidade em relação à população, o Brasil teria cerca de 85 mil pessoas padecendo desta enfermidade e no Piauí não se sabe, por falta de dados.
Pesquisas revelam, que já foram identificados treze genes responsáveis por diferentes formas de ataxia. Uma vez identificado o gene, os pesquisadores analisam o gene para entender melhor sua função e como ele afeta o corpo humano. A partir destes estudos, experiências com medicamentos e tratamentos podem ser iniciados com objetivo final de deter o avanço da doença ou até mesmo encontrar sua cura.
"Anita Harding era a maior autoridade de ataxia no mundo. Ela chegou a estudar algumas famílias do Piauí e Ceará com ataxia hereditária. Anita foi a responsável pela identificação genética da doença e pela última classificação internacional das ataxias", revela o médico Raimundo Campos, que chegou a dividir alguns trabalhos com a pesquisadora, falecida aos 47 anos.
Já a estudante Kátia Cristina fala que o objetivo principal de declarar o 25 de Setembro de 2000 como o "Dia Internacional de Divulgação da Ataxia" é informar a sociedade sobre a ataxia e ajudar mais famílias com pacientes de ataxia a encontrar o apoio médico e emocional de que eles necessitam. "Muita coisa pode ser aprendida e melhorada quando se conhecem as características do problema", enfatiza.
Para saber um pouco mais sobre ataxia - através da internet - visite o site http://www.oocities.org/br/ataxianet, onde podem ser encontrados algumas informações e muitos links de grupos e organizações que tratam do assunto. E para manter contatos com Kátia Gomes o e-mail é: decs@webone.com.br.