orelha

a moça

Ela tem uma ruptura no menisco interno da perna direita. É manca assim. Trabalha na Padaria Grande Avenida Getúlio Vargas e pela manhã, bem cedo, me acorda com o barulho das sandálias. É manca, ganha pouco pra tão grande esforço o dono só pensa em sacanagem não respeita nem o joelho tortinho o safado me belisca na entrada e na saída pensa que sou o quê pensa que sou o quê?

Fico sentado na varanda e imaginando uma forma de ajudá-la. É manca, a coitada. E me acorda todo santo dia. As sandálias desiguais. Chupo laranjas e cuspo o bagaço na calçada: sim, vou matá-la -- a coitada é manca -- com esta faca e poupá-la de existência tão miserável.

o apanhador no canto do correio

Ficava por ali: meio pato, meio baiacu. Olhava cinco vezes a exposição de selos e sorria, sorria. vinte e três passos, voltar; agora mais quinze para a direita, parar. Dorso da mão espremendo espinha pontuda, sacolinha de pus.

Canto esquerdo -- o mais escuro -- lugar preferido do ciclope (fechava o olhão direito para observar melhor).

A bem da verdade, incauto leitor: ele ficava no canto mais canto do correio, olho arregalado, comendo as línguas imaculadas das meninas, na hora do cuspe e do selo. Juro.

às vezes pensava em ir embora

Tinha um marido gordo e suarento que a possuía e arranhava com a barba curta. E roncava, o porco. Levantava-se então e, chorando baixinho, masturbava-se. E ficava imaginando-se rainha sentada na privada. Chorava bainho. Às vezes pensava em ir embora e voltava e rolava e tentava dormir. Lurdes, Lurdes. Trinta e um anos. Chorava baixinho para o anjo-da-guarda não escutar.

o fantasma cagão ataca novamente com o consentimento da mocinha

A sala de dona Cleusa fica distante da minha. mas não há de ser nada: o fantasma Cagão não conhece e muito menos respeita distâncias. A solenidade impera no andar de Dona Cleusam, espanta mosquitos. Mas não há de ser nada: a impetuosidade do Fantasma Cagão vence procelas agitadas dos sete mares nunca dantescamente navegados. Dona Cleusa, ai.

Fim da tarde, Deus esmaga -- acho que sem querer -- o restinho mais bonito do dia, com aquelas sandálias enormes. É a hora predileta dos funcionários públicos. Menos eu, conhecido no submundo da repartição como o Fantasma Cagão, Grande, terror; eu e Dona Cleusa, a potranca, a chapuda, a perseguida. Faço que fico fico perambulando pelo banheiro, aguardo a hora do bote. Lavo a cara redonda, as orelhas pendentes e o piu-piu (Grande, Terror, Ruim, Demolidor).

Na sala de dona Cleusa o paletó teima me grudar indiferente ao suor das costas, mas agora já é tarde demais: meu Deus assim não vale é pecado contra todos os santos não faz senta aqui amor Dona Cleusa ai ui iz ai o céu é por aqui levanta um pouco a perna não faz mostra a língua credo.

Depois fico filosofando que não sou besta: o sexo provoca inveja nos deuses, Dona Cleusa. Ela então me chama o mais inteligente dos homens e me sorri uns dentes estranhos. Amanhã a gente faz chup-chup? Au, au.

um gosto marrom de morte

pro marcos tavares

Acordou com aquela cara redonda, um gosto marrom de morte e dentes esquecidos pelos cantos da boca. Escovar mais tarde.

A leveza de uma tempestade, o malabarismo: os joelhos quentes e vermelhos no chão frio e cinza (enquanto cata os chinelitos brancos). Os viadinhos costumam ficar por aqui, embaixo da cama. Aqui.

Cena três: sentada na privada, a Rainha de Sabá. Nacos de carne caindo assim, fora do vaso. Banhas. Banhas.

E bocejar solitária e gorda. Agora o inevitável silêncio: hora do grande peido branco, imenso. Assim.

Mas é bem feito pra mim, fada solitária, senhora detentora dos segredos dos grandes prazeres.

Epílogo? Voltar para casa, meio despenteada, as pernocas doendo do banco da pracinha. Vinde a mim, criancinhas, vinde. Vem cá menino, vem.





caramelos

E se ele não gostasse de caramelos? Quem não gosta de caramelos no cinema? Começar chupando devagarinho e, não resistindo, morder embolando nos dentes. Caramelos nos dentes é bom. Depois o beijo melado. Quem não gosta de beijo melado no cinema. Acabou comprando pastilha forte também. Colocou dentro da bolsa (imagine se, na pressa, vou encontrar?). Foi ao banheiro e lavou a boca várias vezes, conferindo o hálito. Um gostinho, fininho, de sanduíche persistia. Lavou e gargarejou. Cuspiu. Tomou coragem e tirou o sutiã (ninguém sabe, né?). Colocou-o dentro da bolsa. Sutiã e pastilha forte, já pensou? Aflita voltou a sentar-se na sala de espera. O relógio na parede devia estar atrasado. Viu as cortinas, vermelhas e sujas, se abrirem e algumas pessoas com cara de boi saindo. Bem feito, o desgraçado. Agora os ponteiros correm como loucos. O sinal de que o filme iria começar despertou-a. Decidida, entrou na sala e pousou a mão no primeiro joelho que encontrou.



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