Boletim Mensal * Ano VII * Abril de 2009 * Número 69

           

 

   

FADO TAMBÉM É CULTURA  (27) 

Alfredo Antunes 

    

Calca no triângulo para ouvir "Minha Capa Velhinha" de Augusto Hilário

É com muita pena que vemos acabar esta colaboração pelo elevado nível da informação.

Por tudo quanto aprendemos com Alfredo Antunes, eu, Octávio Ribeiro, aqui lhe deixo os meus agradecimentos... Há sempre a esperança de continuarmos a ler os seus textos

    

          Amigos! Vou terminar minhas conversas, falando do Fado de Coimbra.  E faço-o, com toda a saudade que os vários anos de estudo, nessa “Lusa Atenas”, em mim gravaram...Aliás,

 

” Coimbra tem mais encanto

Na hora da despedida!”.

 

E hoje, é dia de despedida.

Não do Fado –que ninguém se despede de si mesmo!- mas das 27 conversas com os meus Compadres sobre:

 

Fado também é Cultura”.

            Pois, Amigos, o Fado de Coimbra, como hoje é cantado e conhecido, não é verdadeiro Fado. O nome certo é “Canção de Coimbra”. Isto é já quase uma unanimidade.

E por quê?

Porque , em toda a sua beleza e lirismo, lhe falta aquele elemento essencial da trágica fatalidade que constitui o “Fado de Lisboa”; de Lisboa  ou de  qualquer outro Fado (seja ele o nosso “fado castiço”, seja ele “fado fox”, “fado rumba”,“fado bolero”, “fado samba”ou “fado slow”, como chegou  a apelidá-lo a nossa condescendência turística, entre as duas guerras mundiais!).

O “Fado” tornou-se “Canção”, em Coimbra, sobretudo a partir da lenda viva que foi o Augusto Hilário Costa Alves, natural de Viseu (onde virá a morrer, de cirrose epática, nas férias da Páscoa de 1896, com 36 anos de idade).

Era estudante de Coimbra, há cerca de 20 anos, e não passou do 3º.ano de Medicina.

Foi “o último boêmio português”, na palavra de Camilo.

Voz belíssima de tenor, cantou (primeiro, o “Fado de Lisboa”) por todos os espaços elegantes de Portugal, e foi ele que ajudou a elitizar este mesmo Fado, no seu ambiente acadêmico coimbrão. Pouco a pouco, os estudantes de Coimbra foram substituindo a velha temática fatalista pelo simples lirismo do amor cortês, da saudade pura ou das lides e boêmia acadêmicas. Aliás, a temática da agitada e, por vezes, dolorida vida de estudante, fora tradição em quase todas as universidades medievais (Quem não se lembra dos   famosos “Carmina Burana” das universidades alemãs, na Idade Média?!). Acrescente-se a isto, o fato de que, sendo inicialmente a Universidade de Coimbra a única existente no país, a ela acorriam os jovens da classe media de todo o Portugal.

Cada um levava consigo as cantigas e as modas da sua terra as quais, ali, iam sendo estilizadas para, com elas, ao som de guitarras, curtirem as saudades da distância.

Criou-se, assim, uma espécie de lirismo folclórico o qual, paralelo ao puro lirismo amoroso “intra muros”,  foi dando corpo a um novo cantar de Coimbra. Este cantar (sempre por estudantes e professores homens, com belas vozes de tenor) estruturou-se ainda mais por influência do “Bello Canto” italiano, dos finais do Séc. XIX. Traduz-se agora em estudantinas e serenatas ao luar, pelas margens do Mondego, ou pelas ruas  e escadinhas da encosta medieval da cidade. E assim como a “praxe” regulamenta muitos dos hábitos da estudantada coimbrã, também ela regulamentará este novo cantar (uso obrigatório da capa negra, acompanhamento cadenciado de guitarras, gestualização discreta, vozes exclusivamente masculinas etc.). Grandes poetas escreveram expressamente para esta “Canção de Coimbra”, nomeadamente os contemporâneos ou companheiros do Hilário: João de Deus, António Nobre, Guerra Junqueiro,  Teixeira de Pascoaes, Gomes Leal, Augusto Gil e outros.A seguir, alguns versos que o Hilário cantava:

 

”Nossa Senhora faz meia/

Com linhas feitas de luz/

O novelo é a lua cheia/

As meias são p´ra Jesus”

(A.Nobre).

 

Teus olhos, contas escuras/

São duas Ave-Marias/

D´um rosário d´amarguras/

Que eu rezo todos os dias”

(A. Gil).

 

“ A minha capa velhinha/

Tem a cor da noite escura/

Nela quero amortalhar-me/

Quando for pr`a sepultura”

(Hilário).

 

“Eu quero que o meu caixão/

Tenha uma forma bizarra/

A forma de um coração/

A forma de uma guitarra”

(Hilário).

 

Os teus olhos negros, negros,/

São gentios da Guiné:/

Da Guiné por serem negros/

Gentios por não ter fé”

(Popular).

 

Tenho já seca a garganta/

E como é que é isto não sei/

Quem canta seu mal espanta/

Pus-me a cantar e...chorei”

(Hilário).

 

Por esta amostra se vê como o “cantar de Coimbra” é elitizado, literário e de puro lirismo.

Nada da tragédia de “faca e alguidar” de que se nutria, nesse século, o Fado lisboeta!

Em vez do ciúme, o amor; em vez da tragédia, a tristeza; em vez da desesperança, a nostalgia. Lisboa e Coimbra são complementares.

A primeira é dionisíaca; a segunda, apolínea.

E no homem português coexistem ambas. Somos o eterno “Homo duplex” de que tanto falam os místicos e os poetas... Ficaram eternas as vozes do Menano, do Bettancourt, do Paradela, do Cavalheiro, do Lucas Junot, do Luis Goes e  de tantos, tantos outros, que vêm sustentado um dos mais belos e elevados cantares de Portugal. Mas, antes de todos, e depois de todos, está o Hilário.Foi ele a ponte, o “eterno boêmio” que, tornando-se símbolo dum “jeito de todos nós”,  encontrou, em Coimbra, a “Cantiga” certa para expressar esse jeito! Assim como o Fado, também este Cantar jamais morrerá. Não morrerá, porque eternos são o amor e a saudade! O Hilário morreu, mas deixou-nos de herança a sua alma e a sua “Canção de Coimbra”!

            Que descanses em paz, Hilário! E que, juntamente com tuas irmãs, Maria Severa e Amália Rodrigues, não deixes ninguém descansar nem dormir, aí no Céu!

 

“Calem-se os sons  da guitarra

Porque  o Hilário morreu

E  foi cantar  serenatas

Pr’às virgens brancas do Céu!”.