Boletim Mensal * Ano VII * Abril de 2009 * Número 69

           

 

Refluxos da historia colonial

 

mal aprendida

 

 

                        Não deve surpreender que ainda perdure alguma animosidade em muitos cidadãos dos países colonizados por Portugal, com pouca ou nenhuma formação acadêmica, ou que, possuindo elevada formação, não tenham conseguido ultrapassar aquele sentimento reativo que o lusófilo Gilberto Freyre classificava, paternalisticamente, como uma espécie de complexo "parricida" existente nos filhos ou netos dos colonizadores; exemplarmente expresso nas famigeradas diatribes antilusitanas de outro literato brasileiro seu contemporâneo, Antonio Torres (não confundir com o atual escritor Antonio Torres, por sinal também critico da colonização lusitana), num livro que deu brado em 1925 e se foi reeditando nas décadas seguintes, "As Razoes da Inconfidência".

            Semelhante perturbação também agita hoje muitos cidadãos das ex-colônias de África, que ainda não digeriram o fato, para eles insólito, de um pais tão pequeno e parco de recursos como Portugal ter ambicionado moldar o Mundo à sua imagem. "Tão pequena parte sois no mundo" ­ reconhecia Camões - mas "poucos quanto fortes, que o fraco poder vosso não pesais", certo e que ­ como também disse Pessoa - "fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal a mão que ergueu o facho que luziu" ( ••• ) "com duas mãos - o Ato e o Destino - desvendamos. ( ••• ) Foi alma a Ciência e corpo a Ousadia da mão que desvendou."

            Mas relutantes os povos "desvendados" em reconhecer a Ousadia como o resultado de uma associação de qualidades que permitiram e informaram a sua longa duração, preferem salientar os também inegáveis defeitos da "mão que ao Ocidente o véu rasgou" para justificar erros ou fraquezas que já Ihes são  próprios, remetendo as culpas para a "pesada herança colonial."

            Outros julgamentos se fizeram: refiram-se, no Brasil, os de figuras gradas da Cultura como Capistrano de Abreu, Sergio Buarque de Holanda ou Darcy Ribeiro e, em Cabo Verde, o do atual primeiro-ministro do Governo do Partido da lndependência, hoje PAICV, Jose Maria Neves, que não se coibiu de declarar, no simpósio internacional que ali se realizou em Setembro do ano passado para honrar a memória de Amilcar Cabral: "Infelizmente a África recomeçou mal. ( ••• ) Os principais responsáveis pelo descalabro são as elites africanas, que acabaram quase sempre por culpar o colonialismo e o imperialismo por todos os males do continente." Mais recentemente, no semanário "Agora", de Luanda, ironizava-se sobre se a "coscuvilhice" (vulgo mujimbo) não seria também uma "herança urbana da cultura portuguesa" •••

            Todo este arrazoado vem, especial mente, a propósito de uma desassisada afirmação feita, há tempos, a um colega português, por um famoso apresentador da televisão brasileira, responsável pela "marketingizaçao" de um programa consagrado à criminalidade violenta, de que uma das causas da grande criminalidade existente no Brasil era Portugal ter enviado para lá, enquanto colônia, bandidos e degredados.

            Ignorante, no mínimo, o famoso apresentador não teve em conta que toda a America serviu de colônia penal aos desavindos e excluídos das potencias colonizadoras, chamassem-se Portugal, Franca, Espanha ou Inglaterra, mas omitiu também que logo com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, em 1549, as naus portuguesas carregaram - alem dos condenados ao desterro e do pequeno grupo de jesuítas de que faziam parte os missionários Manuel da Nóbrega e Jose de Anchieta - funcionários civis, militares, agricultores, cirurgiões, barbeiros, sangradores, pedreiros, serradores, serralheiros, tanoeiros, pescadores e construtores de bergantins. Embora, mal chegados, tivessem pressa de regressar (ricos) ao Reino, - como lamentava Nóbrega em carta de 1552 - (mas muitos deles por lá ficaram, gerando "brasileiros" que deram bacharéis e revolucionários nacionalistas) não era tudo escoria, portadora de uma língua "obscura e atamancada", - no dizer do primeiro Torres - que serviu, pelo menos, para fixar a identidade lingüística do grande povo brasileiro e hoje serve de instrumento de comunicação a duzentos milhões de falantes nos cinco continentes.

           Negligenciando ou ignorando o fato de a colonização portuguesa ter sido, sobretudo litorânea ("arranhando as costas como caranguejos", observava frei Vicente do Salvador, no século XVII), teria sido muito útil ao famoso apresentador conhecer a opinião de um insuspeito etnólogo e historiador alemão, Georg Friederici, citado por Buarque em "Raízes do Brasil": "Os descobridores, exploradores, conquistadores do interior do Brasil não foram os portugueses, mas os brasileiros de puro sangue branco e muito especialmente brasileiros mestiços, mamelucos. E também, unidos a eles, os primitivos indígenas da terra."

            Será difícil negar que estes sejam sementes ou raízes do Brasil. Por alguma razão a Historia brasileira plasmaria no imaginário nacionais sertanejos e capitães-do-mato como Brás Cubas, Diogo Álvares "Caramuru", Jerônimo de Albuquerque, João Ramalho ou João Tibas, os quais - avocando mais uma tirada do primeiro Antonio Torres - já não eram propriamente "portugueses a relho" .

Fonte:- Reino da História