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DUVIDAS
DE ERÊ
Cristielle França
Crianças iniciadas no candomblé se vêem divididas entre
assumir a religiosidade ou omitir para limitar os
preconceitos
O cenário
é uma escola. No pátio, duas crianças. O assunto: religião.
A confusão está formada. O bate-boca chama a atenção. Outras
crianças se aproximam a fim de tumultuar. De um lado, Daiane
Silva,14 anos, filha de santo. Do outro, Erivana Carvalho,
12, também filha, mas de evangélicos. O estopim para o
embate surgiu após a confissão: Sou do Candomblé.
Enquanto
Daiane se dizia orgulhosa de ser adepta da religião
africana, Erivana a repreendia. A discussão só teve fim
quando as professoras da escola, boquiabertas com a desordem
que encontraram, levaram ambas para a sala da direção, onde
foram advertidas com uma semana de suspensão.
Tudo isso
aconteceu no final de 2004, ao voltar para a escola com a
cabeça raspada. Longe de ser piolho, a falta de cabelos era
um sinal da iniciação no candomblé. Naquele dia, a menina
assistia a festa como uma mera espectadora. Ela não sabia
que aquela ocasião seria crucial para a sua vida. “Sempre
assistia as festas com minha mãe. Mas naquele dia senti
tudo girar, perdi o chão e apaguei”, relembra.
A família
foi orientada e consentiu a iniciação. “Sempre tive muita fé
nos orixás e vi tudo acontecer. Não foi por acaso que ela se
jogou no chão e ficou rolando de um lado para o outro. Alias
não foi ela, foi Iansã”, destaca Maria do Carmo, 39, mãe de
Daiane.
Daiane,
hoje na 5ª série, passou por muitos problemas ao voltar para
a escola com os cabelos curtos, depois de passar 21 dias
recolhida no terreiro. “Todo mundo me olhava como se eu
fosse um ET. Mas eu nunca dei ousadia para o que falavam.
Hoje, na escola raramente meus colegas fazem piadinhas mas
eu nem ligo”, destaca.
Porem, não
é toda criança que está pronta para assumir a religiosidade
tão cedo. Taís*11 anos, acorda todos os dias às 6h, se
arruma e vai para a escola. Retorna para casa, em Fazenda
Coutos, por volta de 13h. Faz a lição e depois vai ao
encontro das amigas para uma nova rodada de brincadeiras. Mas em
determinados dias, enquanto as amigas assistem a novela das
7, ela vai para o terreiro, afinal de contas, Taís também é
do candomblé. A garota tímida, de pele rosada e cabelos
claros, só tem isso em comum com Daiane, pois sempre omite a
religião, principalmente em locais públicos.
Iniciada
aos 10 anos, a menina é ekede (auxiliar, ajudante, que não
incorpora os orixás) e não demonstra arrependimento de ter
sido iniciada tão cedo. “Tenho vergonha de falar e
não de ser do candomblé”, ressalta. Esse “embaraço”
pode ser explicado através de alguns constrangimentos que já
passou na rua onde mora, na qual a maioria dos vizinhos é
evangélica. “A vizinha da frente me chamava de filha do
diabo, ofendendo a mim e ao meu orixá. Eu não falava nada
por que era bem mais velha que eu e minha mãe mandava eu
ficar quieta e respeitar”, relembra.
Taís já tem um ano de
iniciação, mas ainda não aprendeu como lidar com a
religiosidade e sofre muitos preconceitos. “Quando uso um
colar, vejo as pessoas ame olhando diferente. Imagina se eu
contar?”, enfatiza. Por causa disso, aos três meses de
iniciada, a menina pensou em abandonar o candomblé, e só não
prosseguiu com a idéia graças a mãe, Nilzete de Jesus
“Sempre disse a ela que não devia nada a ninguém e não tinha
por que abandonar o axé. Eu sei que quando crescer mais um
pouco vai saber se impor, sem esconder nada”, ressalta. Por
enquanto, tais omite e desabafa: “Sei que tenho que me
acostumar em ser diferente minhas das amigas, mas ainda não
sei como”, aponta.
Mãe
Carmem, iniciada há 35 anos e mãe de santo de Taís , diz
que, antes da iniciação, conversa com todos para explicar as
responsabilidades que a religião exige. Afinal, não são
todos que estão dispostos moldar a vida seguindo as
diretrizes do candomblé. “Muita gente acha que pode mandar
no orixá e acaba quebrando a cara. Entre um show de Calypso
e uma obrigação na roça, o orixá deve ser
prioridade”,adverte .
Mas, de
acordo com a psicóloga Daíse Fernandes, 34, é imprescindível
que haja uma preparação psicológica antes da iniciação. “Uma
criança ainda não está pronta para uma mudança tão radical.
Certos constrangimentos, causados pelo preconceito, podem
traumatizar uma pessoa pelo resto da vida”, ressalta.
Foi o que
aconteceu com Ednaldo Souza, 31. Ele não chegou a ser
iniciado no candomblé, mas aos 13 anos freqüentava junto com
o pai, um terreiro no bairro de Paripe. Ednaldo
até então omitia a preferência religiosa , definindo-se,
católico, como grande parte dos adeptos . Porem, ele não
contava com as astúcias do destino e num certo dia,
Jailton, um colega da escola, o viu entrando no terreiro.
O
encontro, no dia seguinte, foi inevitável e negar seria em
vão. Ednaldo foi humilhado com piadas e apelidos ofensivos.
“Diziam de tudo. Me chamavam de baiana e ficavam dizendo que
eu bebia sangue de bicho, coisa que eu nunca fiz. Minha vida
virou um inferno”, relembra. Desde
então, Ednaldo deixou de acompanhar o pai e preferiu manter
distância do terreiro. O tempo passou e hoje, veste roupas
sociais e anda pelo bairro de Paripe, com uma bíblia debaixo
do braço. “Hoje vejo que tudo foi obra do capeta que queria
me destruir. Não quero mais ser apontado e viver sem paz de
espírito. Jesus me salvou”, defende.
Para mãe Carmem, essa é uma
decisão equivocada e, ao mesmo tempo em que perigosa,
impossível àqueles que efetivamente se iniciaram no
candomblé. “Se eu fosse me abalar cada vez que ouço uma
piadinha, já teria abandonado tudo e com certeza estaria
louca. Não tem por que fugir dos orixás. Eles só querem o
nosso bem”, completa.
Para Daíse Fernandes, qualquer
religião tem uma grande responsabilidade sobre os
indivíduos, uma vez que trabalham com a mente de forma
persuasiva, podendo inclusive causar alterações na
identidade das pessoas. “Nosso cérebro é muito sensível. E
quando se trata de crianças, deve-se ter muito mais cautela,
pois a personalidade ainda está em formação”, recomenda.
Segundo ela, Ednaldo pode ter se traumatizado com tantas
discriminações que sofreu, o que gerou um sentimento de
repulsa e revolta perante o candomblé. “Hoje, ele discrimina
e reproduz o mesmo preconceito pelo qual passou um dia”,
enfatiza.
No caso de Daiane , a religião
só fez com que a menina se encontrasse, pois sempre gostou
do Grupo Ylê Ayiê e de musicas que mesclam toques africanos,
próprios do candomblé, com música popular. Sem perder a ingenuidade e os
trejeitos de menina, Daiane é vaidosa e serena, mas ao mesmo
tempo se mostra decidida ao falar do futuro. “Jamais
abandono os meus orixás. Eles é que vão me acompanhar na
escola, na faculdade, no trabalho, em tudo”. Quando pergunto
sobre casamento, a menina sorri e responde: “Sei lá. Se
encontrar alguém que me aceite como sou e não implique com
meu orixá, quem sabe?”, diverte-se.
Observações:
*TAIS É O NOME FICTÍCIO DA
MENINA QUE NÃO QUIS SER IDENTIFICADA NA MATÉRIA.
ERÊ:
TERMO EM IORUBA QUE SIGNIFICA CRIANÇA.
AXÉ:
FORÇA, ENERGIA. TAMBÉM UTILIZADO INTERNAMENTE NOS TERREIROS
COMO SINÔNIMO DE CANDOMBLÉ
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BRAÇOS DE XANGÔ
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