Capítulo 7 – A Despedida

Rowena contemplou desolada o amanhecer das escadas do castelo. Faziam apenas três dias que ocorrera o Hallowen, e desde então Ídris não levantara mais da cama. Estava fraca e não se alimentava. Durante todos aqueles dias, Rowena e Helga não tiveram um só minuto de paz nem de descanso, sempre à cabeceira de Ídris. Mas na noite anterior, ela entrara num profundo torpor, e o único som que emitia era a sua fraca respiração.

"- Ela está morrendo, Helga...- Rowena tocou os cabelos negros da mulher, sentindo as lágrimas escorrerem pelo seu rosto – e não há nada que possamos fazer..."

" – Eu não devia tê-la deixado beber tanto daquele chá...- Helga olhou assustada para a amiga – eu sou muito mais jovem, deveria ter feito tudo, desde o início..."

" - Você fez o que pôde... por Deus, Helga não se culpe..."

Passara a noite inteira em vigília. E quando não suportou mais a visão de Ídris mortalmente pálida na cama, seguiu para o seu quarto. Ajoelhou-se diante de sua cama e rezou, como há anos não fazia. Quase se esquecera do seu ardor cristão, mas quando vieram à sua boca as palavras sagradas que aprendera com sua mãe, chorou.

Agora observava a manhã fria, e percebeu que aos vinte anos de idade ainda não aprendera a lidar com a morte. Primeiro a avó, depois a mãe e o pai... e agora Ídris. Pessoas que ela amara e respeitara... por que? Ela se perguntava, mesmo sabendo que não iria obter resposta... "a morte é nossa única certeza..." certa vez sua avó lhe dissera. "Mas não é justo, - pensou- ...não é justo..."

Ao longe, um cavaleiro se aproximava, cavalgando lentamente. Rowena teve a impressão de que a cada passo que o cavalo dava, o homem sobre seu lombo parecia que iria cair. E estava vindo na direção de Hogwarts... segurou a respiração quando reconheceu Salazar, e desceu rapidamente as escadas. Ele saltou do cavalo e, a passos trôpegos caminhou na direção de Rowena, e finalmente abraçou-a com força, como se temesse que ela fosse embora. Ficaram assim abraçados por um tempo que lhes pareceu a eternidade, até que Rowena levantou os olhos para o rosto de Salazar e beijou-o, apertando-o contra si. O rapaz estremeceu quando Rowena tocou-lhe sem querer o braço ferido. Só então a moça tomou consciência do estado em que Salazar se encontrava.

- O que aconteceu com você?

- Só estou um pouco cansado...

- Seu braço... está sangrando...

- Eu vou ficar bem... não vou? – ele sorriu debilmente – eu estou feliz por ter voltado, Rowena...

Rowena não respondeu. Até que ponto a felicidade de Salazar iria durar, até que ele soubesse em que estado se encontrava a mãe? Mas ela não lhe disse nada, não naquele momento. Abraçou-o mais uma vez, e depois pegou-o pela mão e o levou para o castelo.

***

Salazar entrou no quarto escuro, onde estava a sua mãe. Já estava banhado e medicado, embora o ferimento no braço ainda latejasse sempre que forçava o membro. Mas perante Ídris doente, ele fingiu estar bem.

- Mãe...- ele sussurrou, ajoelhado ao lado da cama – fala comigo mãe...- o rapaz pegou a mão de Ídris, e a segurou contra o rosto – eu voltei...

- Salazar...- ela murmurou, sem contudo abrir os olhos – eu tentei...até o limite das minhas forças...

- Você precisa ser mais forte... mãe... por favor...

- Eu ainda me lembro da primeira vez que te vi... parecia um bichinho assustado... e agora você é um homem...- Ídris abriu os olhos lentamente – eu não vou conhecer seus filhos... nem os filhos de Gawen... isso me aborrece um pouco... mas eu sei que vocês vão ficar bem...

- Se houver algo... algo que eu possa fazer por você...

- Por mim já não há mais o que fazer... apenas esperar... não me olhe assim... eu não tenho medo... será como um sonho sem fim... mas... apenas uma coisa... honre Rowena... case-se com ela... e seja feliz... somente lhe peço isso...


Rowena Fala:

"Ídris morreu naquela mesma noite, e na manhã seguinte a enterramos nos jardins de Hogwarts. Mais uma vez, eu sentia que algo se quebrara dentro de mim. Eu não fora criada para sofrer. Minha família sempre me poupara da tristeza, e agora que eu estava por minha própria conta, percebia o quanto estava despreparada para a vida. Eu já não era mais uma menina, mas mesmo assim esperava que alguém me amparasse. E não foi em Salazar que eu encontrei essa pessoa, nem em ninguém que estivesse em Hogwarts.

Durante muitos dias, Salazar alternava momentos de ternura com total letargia. Ele não comentara nada a respeito da guerra, nada sobre os dias em que ele passou como refém de Ayrel Fahol. Eu sabia que alguma coisa o incomodava, além da morte de Ídris. E me atormentava o fato de não conseguir atingir sua alma e entender o que se passava com ele.

Salazar conseguia me amedrontar. Às vezes, caminhando pelos jardins ele mostrava-se calmo e colhia as últimas flores para mim, antes que as geadas freqüentes as destruíssem. Mas havia momentos em que o seu olhar tornava-se sombrio, e sem nenhuma explicação ele deixava-me sozinha. Sumia por horas, e depois aparecia, como se nada houvesse acontecido. E esses sumiços dele tornaram-se freqüentes, principalmente a noite. Se eu apenas imaginasse o que ele tramava...

Só conseguíamos realmente encontrar paz quando estávamos a sós, na cama. Depois de fazermos amor, ele conversava comigo como nos velhos tempos, antes da guerra. Fazíamos planos, ele dizia que queria se casar comigo... seria tudo mentira? Não sei, essa é a única conclusão que eu consigo tirar daquela época.

Numa manhã particularmente fria, eu cuidava do ferimento dele, no braço esquerdo. A ferida cicatrizava, e não havia mais motivos para preocupação. Me senti tentada a perguntar como ele se ferira, mas preferi ficar quieta. Até que vi a estranha marca no seu antebraço. Ele percebeu minha curiosidade e sorriu:

- Quer saber o que é isso? – ele perguntou, ainda sorrindo.

- Bem, é uma marca esquisita – eu ri – foi você quem a fez? – perguntei, imaginando o que levaria uma pessoa a tatuar um crânio com uma cobra no braço.

- Não fui eu quem fiz... todos os homens da minha família nascem com essa marca.. .é o registro de um verdadeiro Slytherin...

- E está relacionado com o fato de você se comunicar com cobras?

- Está... mas somente os primogênitos têm esse dom... os outros nascem apenas com a Marca...

Então, finalmente chegaram notícias de Godric e Gawen, e do desfecho da guerra. Alguns homens voltavam para casa, e contavam histórias desconexas, e durante alguns dias chegamos a pensar que Godric estivesse morto. Mas uma carta de Erwin nos contou realmente o que acontecera: que Godric fora gravemente ferido, e agora estava em Londres, acompanhado de Gawen. Que a guerra estava terminada, Ayrel foragida e todos os seus comparsas haviam sido mortos em batalha, ou levados para Londres, onde seriam executados. A única coisa que preocupava Erwin e a todos nós era o destino daquelas criaturas monstruosas. Nem todas haviam sido destruídas e agora estavam espalhadas por todo o país. Além disso, pedia notícias do paradeiro de Salazar.

- Você vai dizer a eles que estou aqui? – Salazar me perguntou, quando me viu de pena em punho, pronta a responder a carta.

- Por que essa pergunta, Salazar? – olhei-o intrigada – o que há?

- Não há nada...

- Isso é o que você nos diz – Helga disse, séria – mas você ainda não explicou como foi libertado... como se feriu... e porque não se juntou ao exército novamente...

- Esses fatos só dizem respeito a mim mesmo...

- Então por que Erwin quer saber onde você está?

- E eu que vou saber, Helga? Por que não pergunta a ele?

- Mas a Helga tem razão... – eu disse, pela primeira vez desafiando-o – há muito o que explicar...

- Eu já disse... isso só interessa a mim mesmo, entenderam? – ele levantou-se e bateu com força na mesa – Entenderam?! – ele repetiu, e saiu da sala. Helga e eu nos entreolhamos, mas permanecemos em silêncio. Terminei a carta e a enviei, através de uma coruja para Erwin. Naquela noite e nas seguintes, Salazar não me procurou na cama, o que em parte aliviou o meu crescente sentimento de culpa.

Mas um dia, enquanto ceávamos ouvimos o barulho de uma carruagem parando à porta do castelo, e vozes de homens. Helga foi a primeira a levantar-se e verificar quem estava chegando. Eu, mesmo sem ver, já não tinha dúvidas... Salazar e eu nos erguemos e saímos para dar as boas vindas à Godric e Gawen. E quando finalmente Salazar e Godric se viram frente a frente, eu entendi que algo iria acontecer...

***

Magro. Abatido e com olheiras profundas. Era assim que Rowena sempre se lembraria de Godric naquela noite. Era visível que ele sentia dor, mas mesmo assim ele mantia o porte digno de um cavaleiro, de armadura e com a enorme espada pendente na cintura. Ele contemplou o castelo e logo o seu olhar recaiu sobre Salazar parado a porta, com a mão no ombro de Rowena. Ao lado de Godric estava Gawen, agora de braços dados com Helga.

- Seja bem-vindo, Godric – Rowena adiantou-se e estendeu a mão para Godric, que beijou-lhe a ponta dos dedos – é bom tê-lo de volta...

- Eu cheguei a pensar que não voltaria...- ele sorriu por alguns instantes até seu olhar recair em Salazar. Então, o sorriso desvaneceu, dando lugar à uma expressão do mais profundo desagrado – o que me diz, Salazar... pensou então que eu morreria? Era isso o que você estava esperando? – Godric sibilou, ao passar por Salazar.

Entraram no castelo, àquela hora deserto. Godric encaminhou-se para a sala principal, onde normalmente faziam as refeições.

- E então, Salazar – Godric insistiu – não vai dizer aqui, diante da Helga... e da Rowena todas as barbaridades que me disse antes de fugir?

- Eu não fugi... eu parti porque não concordava com aquela guerra... desde o início... e eu não disse barbaridade alguma... isso é delírio seu.

- Meu delírio? Eu estava delirando quando você disse que me queria morto, para comandar Hogwarts ao seu modo?

Salazar permaneceu em silêncio.

- O que foi ? Agora você nega tudo o que me disse? Da maneira como escarneceu da Helga? Ou eu deveria contar... não, seria indelicado eu repetira as palavras lisonjeiras a respeito de Rowena... ou o seu desprezo por trouxas... ou como você rejeitou o seu próprio irmão... você nega tudo isso?

- Você está me julgando? Pois então eu digo tudo o que está atravessado durante esses anos... a sua nobreza irritante, Godric... o seu apego aos trouxas e sangue-ruins, querer defendê-los... eu não concordo com a admissão deles em Hogwarts, e eu juro que nenhum deles jamais se misturará aos meus outros alunos...

- Então agora tudo se explica...- a voz de Helga sobressaiu à de Salazar – só não imaginava a que ponto sua loucura chegaria... você tentou matar o Godric...

- Ora, cale-se sua sangue-ruim! – Salazar fez menção de esbofetear Helga, mas Gawen conseguiu interpor-se entre os dois, segurando o irmão firmemente pelas vestes

- Nunca mais a insulte dessa maneira...

- E você vai cometer o desvario de misturar o seu sangue ao dela.... seu sangue puro... não... eu não tentei matar o Godric... mas perguntem a ele como eu me feri... pergunte Helga... você não queria saber?

- Não me interessa mais nada que venha de você... você me enoja...

Rowena olhava a cena incrédula. Sua mente entrara num verdadeiro torpor, do qual ela lutava para conseguir sair. Não pronunciara uma só palavra, mesmo quando o seu nome fora citado.

- Acho que você já percebeu que não é mais bem vindo em Hogwarts, Salazar...

Salazar sorriu sarcasticamente.

- Como sempre, você se julga acima dos outros, porque nas suas veias corre um maldito sangue nobre... e trouxa... além de bastardo, ainda tem sangue trouxa... e consegue se orgulhar disso...

- Eu não sei o que você entende por orgulho, Salazar... eu já lhe disse... pelo menos eu sei quem foi meu pai.. .já você... – Godric olhou-o com desprezo – tem certeza que sua mãe não se deitava com trouxas também?

Para Salazar aquela fora a gota d’água. Saltou sobre Godric, acertando-lhe o rosto com um soco. Os dois rolaram no chão e Salazar, que levava vantagem sobre a fraqueza de Godric, imobilizou-o e estava pronto para esmurrá-lo novamente quando Gawen o impediu, segurando-o .

- Você passou dos limites...

- Vão todos para o inferno... – disse, e saiu da sala.

Godric sentou-se numa das poltronas, pálido. Tremia de raiva e dor, e permaneceu em silêncio ,os olhos fechados. Helga encarou Rowena, ainda estática a um canto da sala.

- Você não vai dizer nada?

- Tudo o que havia para ser dito já foi falado, Helga...me deixe me paz, por favor... – disse, e afastou-se.


Abriu a porta com cuidado, e a fechou atrás de si. Salazar estava encostado à janela, observando a neve que caía sobre Hogwarts. A primeira nevasca daquele inverno. Ele ouviu o barulho, e voltou-se para Rowena que acabara de entrar. A fisionomia dura tornou-se mais suave ao vê-la.

- Eu vou partir...logo pela manhã...

- Eu esperava por isso...

- Você viu...não há mais como ficar...

- Se você tivesse mais boa-vontade...s e não fosse tão apegado às suas idéias radicais...

- É o modo como eu encaro os fatos, Rowena... se formos falar sobre isso, passaríamos a noite inteira discutindo, e no fim você não conseguiria me demover.

Encararam-se em silêncio. Então Rowena caiu em si... ele partiria... deixaria Hogwarts... e o que seria do futuro que vinham planejando? Como se ele adivinhasse os pensamentos da moça, aproximou-se e tocou-lhe o rosto com delicadeza. A fúria passara, e agora ele só conseguia olhá-la com ternura – Você vem comigo? – Rowena fechou os olhos para evitar que ele visse as lágrimas que começavam a se formar – Vem?

Rowena hesitou. Ir embora? Deixar para trás tudo o que ajudara a construir?

- Vou...- disse sem pensar, entregando-se aos braços de Salazar, deixando que ele a levasse para a cama mais uma vez. Era melhor não pensar.

 

***

Partiram na manhã seguinte, antes mesmo que o sol nascesse. Rowena levava pouca bagagem algumas poucas roupas e as jóias mais preciosas. Cavalgavam em silêncio pelas colinas, e pouco a pouco iam deixando Hogwarts e Hogsmeade para trás. A moça seguia pensativa, deixando apenas que o cavalo a guiasse. Passara toda a noite em claro, e rezava para não cair de sono. Ainda não sabia ao certo se era isso o que queria... partir, sem destino. As palavras ditas na noite anterior latejavam em sua mente... e quando o sol finalmente nasceu, virou-se instintivamente para o nascente, para saudá-lo... ao longe, a luz fraca refletia-se sobre o lago, e iluminava os contornos do castelo, semi-oculto pela neblina da manhã. E então ela soube, que desde o início não desejava partir.

Interrompeu a marcha, e Salazar, que cavalgava pouco a frente, percebendo o silêncio atrás de si, voltou-se. Encontravam-se no alto de uma colina, o último ponto da estrada que ainda lhes permitia a visão do castelo. Rowena apeara, e contemplava a paisagem pensativa. Ele também desmontara, e tocou-lhe o cotovelo, como a guiá-la.

- Vamos, Rowena...temos muito que cavalgar ainda...

Ela sorriu, amargurada.

- Cavalgar para onde, Salazar? Você tem algum destino?

- Não... não ainda...

- Então...- ela voltou-se para o horizonte – deve haver uma forma... uma maneira de resolvermos tudo...

- Do que você está falando?

- De você e Godric e aquela briga estúpida... Salazar, você não devia ter dito tudo aquilo...

- Eu disse apenas o que eu penso, Rowena... e não me peça para retirar qualquer palavra dita, porque não sou homem que volto atrás em minhas decisões... não pense que vou voltar para aquele castelo implorando perdão... não é o meu feitio, e não irei fazê-lo.

Rowena fitou-o por alguns instantes, e sentiu as palavras que insistiam em sair. Era a sua única chance... a última...

- Nem por mim, Salazar? Se eu lhe dissesse que não seguirei com você, assim mesmo você se negaria a voltar?

Ele hesitou por instantes, que pareceram a Rowena a vitória. Mas então, a expressão do seu rosto tornou-se dura, e ela pôde perceber um misto de fúria e amargura.

- Nem por você...- ele sussurrou, tocando-lhe o rosto – eu sinto muito...

Pela primeira vez, ela viu lágrimas nos olhos dele, e sentiu-as se misturarem às suas quando suas bocas se uniram, num beijo longo e amargo. E eles sabiam que era o último...

Rowena soltou-se e montou novamente no seu cavalo. Agora, sentia os olhos arderem e não voltou o olhar uma vez sequer. À sua frente, via apenas Hogwarts... e mesmo em meio a sua dor, sabia estar fazendo a escolha certa....

Salazar acompanhou-a com o olhar até que sumisse de vista... ele sabia que nada podia fazer, a não ser lamentar...

"Perdoe-me, mãe.. .mas eu não pude cumprir a minha promessa..."

Montou novamente e seguiu o seu caminho. Para onde, ainda não sabia.


"E nossa história não estará, pelo avesso assim... sem final feliz. Teremos coisas bonitas para contar. E até lá, vamos viver... temos muito ainda por fazer. Não olhe para trás, apenas começamos. O mundo começa agora... apenas começamos..."

Legião Urbana, Metal Contra as Nuvens

 

 

Fim da Primeira Parte

Segunda Parte...

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