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Cesário Verde José Joaquim Cesário Verde
(Lisboa, 1855 - Paço do Lumiar, 1886)

Poeta português, cuja obra completa coube em apenas um único volume póstumo, intitulado O Livro de Cesário Verde, publicado em 1887, pelo amigo Silva Pinto. Não obstante, Cesário Verde, depois de Camões, pode ser considerado o mais brilhante poeta da língua portuguesa, só comparável ao seu similar francês Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), na modernidade da construção de imagens oníricas e na descrição de uma atmosfera melancólica. Escreveu alguns poemas de tons satíricos e outros de escola romântica, mas logo livrou-se desse mal intelectual para adotar o estilo de tendência realista e expressionista. Soube como poucos perceber a importância da contribuição lusitana na formação do sentimento de um ocidental, à beira do cais, tendo em seu interior o passado medieval e à frente o mar Tenebroso da era moderna.


Discursus

“Nas nossas ruas, ao noitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás estravassado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, no mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça aregam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se pos arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam as canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!”

(VERDE, J.J.C. O Sentimento Dum Ocidental, I "Ave Maria").

Direito Autoral

Imagem: Cesário Verde. Fonte: Editora Tecnoprint.

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