Kitsune

(parte três)

por Sanae

 

 

 

“Pensei que te perderia...”.

“Não seja tolo Kuronue, não me derrotariam tão facilmente”.

“Não disse sobre o roubo de ontem, mas sobre nós”.

Um momento de silêncio. O Youko fitou seu parceiro sem compreender, estava confuso, nem com sua capacidade de persuasão era capaz de fazê-lo refletir sobre o que acabara de ouvir. Não teve outra alternativa a não ser mostrar que estava perfeitamente perdido sobre o assunto.

“Como?”.

“Eu percebi que você gostou do líder daquele bando, e ele então, era capaz de te devorar inteiro, se não fosse por seu chicote, e por ser o ladrão que ousou rouba-lo” – fez uma pausa para encará-lo. “Vocês trocaram olhares nem um pouco ameaçadores. Para falar a verdade, estavam se flertando”.

“Flertando? Kuronue, de onde tirou essa idéia?” – retrucou sem levar em conta o motivo da repreensão. “Mesmo que sim, e daí?”.

Kuronue não disse mais nada, levantou-se de onde estava e tratou de se retirar da presença da raposa. Afinal, o Youko tinha razão, não era de sua conta saber de quem o amigo se interessava, muito menos querer tomar satisfações.

“Aonde vai?”.

“Ficar sozinho...” – foi a resposta, sem ao menos fitá-lo.

“Qual é Kuronue! Vai ficar assim só porque reparei que o cara era até interessante? Nem toquei nele!”.

Não conseguiu se segurar, e teve de desabafar.

“Mas queria não é?” – sorriu de lado. “Por que não ficou com ele então?”.

Kurama fechou a mão, já estava passando dos limites, brigar por uma coisa boba.

“Eu não devo satisfações pra você!!”.

Aguardou com a respiração alterada pelo nervosismo. Finalmente Kuronue o encarou, mas sua feição fora totalmente diferente do que esperava ver. Estava triste, os lábios trêmulos.

Respirando fundo tentou abafar o remorso por ter gritado com ele, só de vê-lo nesse estado ficava magoado consigo mesmo.

“Por que está zangado comigo?”.

“Ainda não percebeu?...” – sua voz soou baixo.

“Sei que se preocupa, somos amigos, mas...”.

“Te amo Kurama...”.

Como um choque, a raposa permaneceu estática, enquanto via o parceiro desaparecer pelas ramagens.

 

 

Hiei posicionou a mão em direção da mata de bambuzais, não tinha como vencer a armadilha, precisava usar o seu poder para transpassá-la de qualquer jeito, mas antes que lançasse seu poderoso Dragão Negro desistiu. Certamente a floresta ficaria em chamas rapidamente, acabando por atingir seu amante que se encontrava em algum lugar ali dentro.

 

 

Caminhando silenciosamente Kurama encontrou Kuronue sentado num tronco caído, parecia muito abatido. Aproximou-se mais e tocou-lhe os cabelos que desciam presos num rabo de cavalo. O Youkai permaneceu imóvel.

“Estava te procurando...” – disse baixinho, se acomodando ao lado do demônio alado.

Mas este virou o rosto para o outro lado, não queria encará-lo, não depois de confessar seu amor, como havia feito horas atrás. E do jeito que a raposa era, não tinha certeza de sua reação.

“Não vai falar comigo Kuronue?”.

Com um suspiro ele virou para o Youko, e antes que falasse, foi surpreendido por um beijo. Kurama se prendeu em sua cintura, ainda insistindo em ser correspondido, mas nada. Parou de beija-lo abrindo os olhos dourados, sem desprender o abraço.

“Se me ama, porque não me beija?”.

Foi a vez de Kuronue o envolver com os braços e beija-lo, estava tão feliz que tudo parecia irreal, o beijo perdurou até quase ficarem sem ar.

“Também te amo Kuronue...” – um toque suave com a ponta dos dedos ao rosto que sempre gostou. “Mas achava que nunca ficaria comigo...”.

“Se me ama, promete que nunca vai me esquecer? Vai me amar até o fim?”.

“Prometo...”.

 

 

Um grito desesperado foi ouvido de dentro da floresta, Hiei ficou incrédulo ao constatar que era seu amante. Com toda sua fúria, tomado pelo desespero, avançou em direção da entrada, mas foi surpreendido por uma forte energia, parando assustado, viu a sombra de alguém se aproximar. Sem perder tempo, desembainhou sua espada e ficou a espera do dono daquele terrível youki.

Para sua surpresa, dentre as folhagens surgiu Kurama, mas em sua original forma de Youko.

“Kurama! Você está bem?” – não escondeu o sorriso.

Mas a raposa não deu resposta, e o poder que dele emanava era completamente diferente do que sentia anteriormente, tinha agora um ar mais pesado, uma mistura de rancor e ódio, tão parecido com o qual manifestava de si mesmo, quando não tinha um sentimento de afeto, o qual a própria raposa havia lhe ensinado...

O Youko abriu lentamente os olhos, demonstrando suas esferas douradas, num brilho estranhamente furioso. Seria este a sua frente o verdadeiro ladrão das trevas, o que não se importava nem com a própria vida?

“Kurama...”.

Não sabendo o que afinal havia acontecida, Hiei ficou imóvel, sem saber como reagir, mas teve de tomar qualquer atitude que lhe viesse pela mente, pois a raposa num ato, já transformara sua rosa em chicote e estava a encará-lo, como estranhos, prestes a lhe atacar.

“Saia do meu caminho, youkai de gelo”.

Rude e direto... Nunca Kurama falara daquele jeito, nem mesmo com os inimigos.

“Não” – Hiei se posicionou em defesa. “Você não vai sair daqui até me dizer quem é você afinal! E onde está Kurama!”.

Os finos olhos se estreitaram ainda mais, com ar de superioridade, o Youko gargalhou debochando da coragem do outro. Foi uma risada sarcástica, mas ficou sério como antes, continuando a encarar o demônio de fogo.

“Não brinque comigo, seu insignificante! Não devo satisfação para alguém como você!”.

O som estridente cortou o ar em segundos, e sem se dar conta, o Youko havia desaparecido. Rapidamente Hiei procurou e o avistou atrás de si, indo embora calmamente.

“Espere!” – gritou saindo em direção ao ladrão.

Mas seu corpo fraquejou, o obrigando a apoiar o joelho direito ao chão. Foi aí que se deu conta de que estava sangrando, percorreu o olhar em seu corpo, para ver de onde vinha o ferimento, e se viu todo cortado. Seu coração de demônio quase parou... Mais por ser atacado pelo amado, do que pelos ferimentos em si. Aquilo não era verdade, não estava acontecendo, e aquele que logo à frente, andava indiferente, não podia ser sua raposa...

Mesmo com a dor dos ferimentos, se ergueu e tirou a faixa da testa, abrindo o terceiro olho. Precisava constatar de que se tratava de um impostor, e que Kurama estava dentro da floresta. Concentrou-se e a realidade foi mais dura do que o esperado, o youki daquele demônio prateado era mesmo de Kurama, porém, só um pouco de amor podia sentir, um amor fraco, escondido no interior do Youko, e que certamente pertence ao ruivo, mas o resto do sentimento que podia constatar era de ódio, característico de todos do Makai. Aconteceu algo muito grave no interior de seu amante, para que o lado das trevas o dominasse quase que por completo.

Resolveu então segui-lo, pois um confronto com o Ladrão Lendário seria impossível, tanto para atacá-lo, como para se defender.

O Youko, por sua vez, preferiu ignorar o fato do Koorime estar o seguindo, seu peito doía, e algo parecia querer surtir de seu íntimo, algo que tentava a todo custo não se submeter, sentia a necessidade de voltar a ser como sempre foi, um ser frio, calculista e extremamente cruel... Pouco de sua consciência de ningen lhe causava leves tonturas, sentimentos que a muito lutava para tê-las, ou abominá-las... Não sabia ao certo. Mas agora, como Youko, teria de cumprir sua palavra com relação a primeira pessoa que se importou e amou, a única pessoa que amaria na vida, mesmo estando morta.

Essa determinação o condenou durante séculos, o perturbando por toda a vida, o fazendo rejeitar qualquer tipo de relacionamento, de aproximação, e se via obrigado a tomar distância do demônio de fogo, o qual de um modo indefinido, o fazia perder a razão de Youko, e o tornava vulnerável como um ningen...

“Se presa por sua vida, deixe-me em paz” – soletrou ameaçador.

Hiei estreitou os olhos, e continuou atrás da raposa, seu corpo frágil, por ser fruto do País do Gelo, ainda sangrava com as feridas, e hora ou outra suas pernas vacilavam em derrubá-lo, mas não desistiu continuou frente ao seu objetivo... Saber a todo custo, o que afinal havia acontecido.

“Por que não matá-lo de vez?” – pensou o Youko.

Mas seu lado humano lhe embaçava a mente de youkai, no fundo, mesmo que insignificantemente, sentia algo muito especial por aquele demônio, mesmo estando como raposa. Pensou, então, em desaparecer da vista, saltando por entre as árvores e correndo na escuridão. Mas a persistência de Hiei não o deixou que escapasse de vista, o seguindo habilmente com sua espetacular velocidade.

“Maldito garoto de gelo...” – parando repentinamente num galho, voltou-se para seu perseguidor. “Não estou com paciência de te aturar!”.

“Então diga! O que aconteceu para que mudasse tanto?”.

Com um gesto, o Youko sentou tranqüilamente, passando a respirar fundo, calmo e estratégico.

“Não mudei, caro Koorime... Apenas voltei a ser o que realmente sou... E que nunca deveria deixar de ser”.

“Kurama não é assim!”.

“O Kurama que você conheceu, é uma farsa, não existe outro a não ser eu... Um dia ele teria de ir, você sabe disso, ou se sucumbia a mim, sua verdadeira personalidade e forma, ou à morte, pois ningens não vivem muito tempo...”.

Silêncio. O olhar da raposa percorreu a figura levemente atordoada do youkai de fogo, sentiu a dor no peito aumentar, junto com um sentimento de arrependimento, não sabia como, mas era um simples demônio, que o fascinava. No íntimo, um conflito era travado entre sua consciência de Ladrão das Trevas, e o sentimento adquirido quando humano, e estava sofrendo consideravelmente com isso.

Hiei apenas ficou observando a expressão do Youko, atento a qualquer reação. Seus olhos insistiam em procurar os dele, mas não conseguia prende-los, a raposa desviava o olhar, numa insinuação de desdém. Após um tempo o observando, seu terceiro olho capitou uma certa insegurança no ladrão lendário, e percebeu, mesmo que vagamente, que um pouco do kitsune que conviveu, e se apaixonou, ainda estava lá, bem no fundo, querendo sair, querendo tomar controle da situação. Pensou, então, em trazer de volta, a consciência do ruivo, que quase desaparecera com a mudança.

“Lute comigo Youko” – um olhar divertido o fitou, assim como viu nos lábio de Kurama um sorriso de deboche.

“Está brincando...”.

“O que foi? Está com medo de me matar? Se for tão seguro de si mesmo, por que teme tanto?” – cada palavra dita confiante. “Ou você me mata, ou nunca se verá livre do tormento de ningen... A escolha é sua”.

Num impulso, o Youko estava no chão, andando em direção do youkai.

“Já que insiste tanto, vou provar que você não significa nada para mim...”.

Hiei se abalou com aquelas palavras, mesmo sendo ditas pelo Youko, o que o surpreendeu, não imaginava que seu sentimento pelo ruivo fosse tão grande assim, a ponto de magoar-se com o que ouvira, mas era o seu amante que estava a sua frente, aquele que tudo ensinou, que o protegeu, que o amparou quando estava preste a morrer envenenado, que derramara tantas lágrimas por um traste como ele, sim, se achava um lixo em comparação a beleza de seu kitsune, e que sobreviveu, apenas para estar ao seu lado...

Kurama passou os dedos pelos cabelos, tirando uma pequena semente, não se importava em demorar, pelo contrário, fazia tudo em gestos lentos, sensuais, contemplando a firmeza e a coragem daquele Koorime, e com um pouco de concentração de youki, uma enorme ramagem de vegetais surgiu, para manipular a morte do youkai.

“Espero que esteja preparado... Cuidarei para que não reste um vestígio seu... meu querido itoshi...”.

Um sorriu se fez em Hiei, como esperava, o Youko utilizou uma de suas plantas das trevas, e esta se prendia em seu braço direito, para que com o youki, a pudesse controlar mentalmente, se tiver chance, na primeira brecha, avançará em direção ao seu alvo, que não poderá se defender, já que está literalmente amarrado o movimento aos cipós que ele próprio criou...

Não teve muito tempo para analisar o ataque que faria, pois a planta, o atacava em diversas direções, não tinha como acabar com ela por inteiro, utilizando o Dragão Negro para despedaçar as mais rápidas, e se mantinha fora do alcance se esquivando com sua velocidade, mas sua concentração estava direcionada ao Youko, que atento a seus movimentos manuseava calmamente seu vegetal. Duraria muito tempo o confronto entre os dois, pois tinham poderes quase que equivalentes, mas seu objetivo não era a luta e sim a raposa, precisava faze-lo perder um pouco a guarda, mesmo que por uma fração de segundos, então, quando se viu cercado por ambos os lados, se voltou para a cabeça do vegetal que mais avançava e despejou seu youki.

Kurama, vendo que poderia atacar com a defesa do youkai comprometida, aumentou seu youki na mão direita, fazendo com que a planta lhe consumisse mais poder, crescendo os cipós que o envolveu até a cintura, e atacando tão mais rápido que o demônio de fogo pudesse escapar, devorando-o por completo. Essa fração de tempo fez o Youko perder parcialmente os movimentos do corpo e desgastando-o mais que o imaginado, mas julgando-se vitorioso, não se preocupou em diminuir o vegetal, para que pudesse se ver mais livre. Foi nesse tempo que Hiei, de dentro da planta ácida, a despedaçou com sua espada e lançou-se em cima da raposa, pegando-o desprevenido.

Ao invés de ataca-lo, o Koorime soltou sua espada e abraçou o pescoço do Youko, o derrubando e numa total explosão de youki, lançou em si próprio o seu poder supremo, fulminando ambos com o choque devastador das trevas. O grito do Youko penetrou seus ouvidos, e se sentiu culpado em machucá-lo, aliás, sempre soube que o íntimo do ruivo era perturbado por seu lado negro do Makai, que vivia constantemente lutando para que não sucumbisse ao biorritmo, acabando por sofrer cada vez que seu corpo mudava de forma... Como foi tolo... Sempre soube, mas por sua estúpida mania de querer esperar que seu amante lhe contasse por si só, sem obrigá-lo, não teve como ajudá-lo antes, deixando assim, que se tornasse àquilo que nunca mais queria ser... O Ladrão das Trevas...

Sentiu uma dor profunda no peito, que desapareceu devagar, conforme sua consciência se esvaia, mal sentia o corpo, já não ouvia nada além do grito amado que lhe ecoava na mente, e sua vista aos poucos embaçava, para trazer-lhe a escuridão e a total perda dos sentidos...

 

 

O som do vento contra as folhas, e entre as árvores, dois corpos unidos, sangue e pedaços de plantas mortas...

 

 

“Kuronue! Não!!”.

O choque em ver o corpo amado perfurado por várias estacas de bambu, sangue... O vermelho que dele fluía e banhava o solo escuro...

“Kuronue... Fala comigo!!” – desesperadamente tentou se aproximar, mas a voz amada o deteve.

“Vá embora... Fuja, Kurama...”.

“Não vou te abandonar assim! Nunca!”.

“Viva por mim... E Prometa... Que... Nunca vai esquecer que me amou...”.

“Kuronue!!”.

Não teve escolha à não ser cumprir o que lhe pediu, correu, correu sem rumo, sem saber o que faria, sem ter noção de como viveria daqui para frente, passava pelas árvores, machucando-se com os galhos, e não se importava, as gotas que vertiam escorriam e se lançavam ao ar, e junto com elas, gotas cristalinas, que jamais pensou que derramaria... Sofria tanto... Apenas pensava que nunca mais amaria outro, que seria ele, o único... E que jamais voltaria a sentir emoção alguma com as pessoas... Seria de agora em diante, frio e calculista... Viveria por ele, assim como pedira, mas acabaria com todo seu sentimento, pois só assim, conseguiria ir em frente e esquecer a tristeza que se instalou em seu íntimo...

Tempos depois voltou ao lugar onde o perdera para sempre, e viu ainda agoniado, machucado, o corpo de quem sempre esteve a seu lado, e lhe fez um túmulo de plantas, para guardar sua preciosa pessoa, e usou seu youki para expandir o lugar, e implantar armadilhas, onde nenhum outro, além dele, pudesse penetrar, e atrapalhar a calma e a tranqüilidade que seu amado precisava...

“Durma em paz... Prometo que de tempos em tempos, venho lhe fazer um pouco de companhia... E trazer-lhe flores, para que se lembre em mim...”.

 

 

 

 


parte 4