É PRECISO MAIS DO
QUE ARREPENDIMENTO, DELFIM
José Pascoal Vaz
(*)
Assisti, há alguns dias, palestra do economista Delfim Netto intitulada “Mecanismos de redução da exclusão social”. O ex-ministro fora convidado pelas entidades IBS – Instituto de Políticas Públicas da Baixada Santista e GRUHBAS Projetos Educacionais e Culturais para marcar o lançamento de Prêmio Universitário, por sinal muito bem vindo, forte estímulo que é à produção acadêmica sobre tema importantíssimo, “Redução da exclusão social na Baixada Santista” (ver www.premioibsgruhbas.com.br).
O evento me intrigou desde o momento em que dele soube, não pelo tema em si, apropriado ao objetivo do prêmio, mas pela pessoa que sobre ele iria discorrer: Delfim propugnando o combate à desigualdade social! Pode? Também estranhava a origem do convite ao ministro mais poderoso da ditadura imposta em 1964. De fato, Delfim exercera, em treze dos vinte anos daquele regime, a chefia dos ministérios da fazenda, do planejamento e da agricultura, bem como o cargo de embaixador do Brasil na França. E, afinal, quem o convidava era um instituto cuja diretoria é em parte petista, inclusive sendo sua presidenta Telma de Souza, fundadora e militante aguerrida do PT. Pelo que transpareceu durante o evento, a idéia de convidar Delfim era demonstrar o propósito do IBS de atuar de modo supra-partidário, postura que considero de fato indispensável para que o instituto tenha sucesso. Não me refiro ao GRUBHAS por não saber das vinculações partidárias de seus dirigentes.
Confesso que minha estranheza derivava mais de eu ter na cabeça o Delfim da ditadura, de signatário do escabroso AI-5, do que aquele que vem apoiando o atual governo desde o primeiro mandato de Lula. Apoio que ficou explícito por mais de uma vez durante a palestra, tendo o Presidente sido classificado pelo orador como inteligentíssimo (com o que concordo) e portador de grande intuição inspiradora de programas sociais (com o que eu concordaria, se Lula os promovesse concomitantemente a uma macroeconomia libertadora/transformadora e não opressora/conservadora, dominada que está pelo sistema financeiro especulativo).
Bem, foi com tais condicionamentos que assisti atentamente à palestra de Delfim. E, pasmo, fui me perguntando se Delfim havia mudado. Não a ponto de se tornar socialista, concepção política que defendo, mas um crítico reformador do capitalismo, cujos defeitos a globalização tem exacerbado. Ressaltou a necessidade de combate à desigualdade social e explicitou sua opinião de que o mercado é em si produtor de desigualdades. Faltou neste ponto ser mais didático e explicar que o viés concentrador do mercado é tanto mais pernicioso quanto maior seja a desigualdade social, numa infernal causação circular cumulativa, fatal no caso do Brasil, dado ser “campeão mundial” naquela modalidade. E faltou também enunciar que não há democracia política sem democracia econômica ou, no dizer de Amartya Sen, prêmio Nobel de economia de 1998, que a liberdade formal é apenas uma parte da liberdade verdadeira, real, de fato, a liberdade substantiva. Esta só existe quando cada pessoa tem condições efetivas de acesso a um conjunto de bens e serviços que garantam o exercício da liberdade formal.
Se a mudança de fato ocorreu, não basta confessá-la a platéias restritas. Delfim deve à imensa maioria de pobres da sociedade brasileira uma verdadeira cruzada nacional contra a desigualdade social. Diante de nossas elites egoístas e burras, ninguém tem mais credibilidade do que ele. Afinal, foi em sua longa gestão que se consolidaram as condições de despudorada apropriação, por essa elite, de renda, riqueza e outros atributos componentes da liberdade substantiva. E, na outra ponta, que se deram as condições de aprisionamento daqueles pobres à sua situação miserável. O Brasil já tem PIB per capita e IDH suficientes para dar bom padrão de vida para todos, desde que sob distribuição adequada. É preciso arrebentar as portas dessa prisão.
No entorno da
ditadura,
Estes dados de crescimento e de concentração têm uma só interpretação: o Povo brasileiro trabalhou muito durante o período Delfim, mas trabalhou para o benefício de poucos. É chegada a hora de fazer o bolo crescer acentuadamente outra vez, mas com distribuição inversa: quem no passado ficou com pouco do crescimento, agora deve ficar com muito; quem se apropriou de muito no passado, agora deve ficar com pouco.
Ao
final da palestra, nos debates, argumentei em poucas palavras o que agora desenvolvo
neste artigo e disse a Delfim que ficava feliz por ver a mudança de seu
discurso; mas que lamentava demais que o Delfim da ditadura não tivesse
aplicado o discurso do Delfim de hoje. O ex-ministro, mais uma vez de modo
surpreendente, concordou com minha argumentação, confessando que, à época em
que foi ministro, a desigualdade não era sequer considerada pelo governo e que
se pensava que o crescimento por si só traria o bem-estar para todos (esse
pensamento, hoje completamente desacreditado, ficou conhecido como “teoria do
derrame”: o capitalismo seria tão eficiente que faria o copo se
encher rapidamente, e seu transbordamento beneficiaria a todos). Disse Delfim
também, numa postura anti-neo-liberal,
que o mundo havia compreendido a importância do Estado para a concepção e
operacionalização de políticas públicas que compensem o forte viés concentrador
do mercado (eu entendo que o Estado do Bem-Estar vem retomando forças, mas
muito lentamente). E que ele, Delfim, havia mudado com o mundo.
Mas esta sua “mea-culpa” não basta. Permaneceria impune. Delfim deve ser condenado a, exaustivamente, trabalhar para convencer as elites (que não se comovem com a argumentação ética), bem como os governos, de que o grande custo Brasil é o que decorre da desigualdade social e que do combate a esta depende o aumento da produtividade social-sistêmica. E Delfim deve reconhecer perante os mais pobres que Celso Furtado, Milton Santos, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e outros que tais precisam ser revisitados. Delfim está condenado à pena perpétua de colocar como eixo de suas aparições em tv, rádio, internet, jornais, revistas, palestras, o combate à desigualdade social. Não sei se, por mais que se esforce, Delfim será merecedor de um pedido de redução de pena por parte dos atingidos pelas conseqüências da desigualdade social aprofundada na ditadura à qual deu suporte teórico e operacional.
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(*) José Pascoal
Vaz é economista pela UNISANTOS, doutor