A PARÁBOLA DO CONTEMPLATIVO
 
Era uma vez um contemplativo. Não participava, não se metia,  não  fazia, só contemplava. Na 
infância, ficava sentado vendo os outros correrem e  jogarem bola. Na adolescência, ficava 
de pé vendo as meninas passarem e nunca se aproximava. Nos bailes, ficava encostado na 
parede.
- Você não dança?
- Eu? Não. Só estou olhando.
Ia ao cinema, ia ao futebol, era um espectador. Passeava. Olhava as vitrines. Entrava nas 
livrarias e ficava folheando os livros. Nunca comprava nenhum.
- O senhor?
- Obrigado. Só estou olhando.
Divertia-se com tudo o que via. Que mundo! Olhava um mendigo.
- Uma esmolinha!
- Eu? Não, só estou olhando.
Estudava uma mulher.
- Alô, bonitão. Vamos?
- Obrigado. Só estou olhando.
Seu pai tinha lhe deixado uma renda certa e boa. Não precisava trabalhar. Viajava muito. Olhava tudo. 
Viu as maiores cidades do mundo. As maiores cataratas. Revoluções. Strip-teases. O Taj Mahal. As 
pororocas. Via muito televisão. Da janela do seu apartamento via a rua, as outras janelas, a lua.  
Uma vez viu alguém ser assaltado na sua frente.
- Me ajude! Faça alguma coisa!
- Eu? Não, só estou olhando...
Às vezes se contemplava no espelho. Notava que estava envelhecendo. Aquilo também o divertia. Não tinha 
nada a ver com aquele corpo que se  transformava por conta própria, sem a sua interferência. Um dia, 
num dos livros que folheava e nunca comprava, lera esta frase: 
"Nós não temos um corpo, nós somos um corpo." 
Achou aquilo ridículo. Ele não era o seu corpo. Apenas o habitava. Não era nem o dono. Era inquilino. 
Não se importava com a sua  deterioração. Ele lá e eu aqui. Quando perguntavam por que ele nunca  tinha  
casado, nunca tinha feito nada, respondia sorrindo que era um assistente do drama humano e que não 
ficaria bem subir no palco.
E então, certa noite, quando ele contemplava uma parede do seu apartamento, bateram na porta. Era uma 
mulher toda de preto, com uma prancheta na mão e uma lista de nomes que consultou antes de dizer o nome 
dele. Era ele?
- Sou eu mesmo. Quem é a senhora?
- Eu sou a Morte.
- O quê?!
- A Morte. Vim buscá-lo.
- Deve haver algum engano.
A Morte consultou a lista outra vez:
- Não. Não há nenhum engano. Está aqui o seu nome, endereço, e a hora para vir pegar. Até me atrasei 
um pouco, desculpe.
Como convencê-la que não era, que não podia ser, com ele? O nome  era  do seu corpo, ela queria o seu 
corpo. Não ele. A Morte impacientou-se.
- Vamos, vamos. Ainda tenho várias visitas para fazer nesta zona.
- Mas não sou eu que a senhora quer, é o meu corpo! Só estou olhando!
- Mas como? Levar o seu corpo sem levar você? Essa eu queria ver...
E o contemplativo, já resignado, respondeu apenas:
- Eu também...
Suspirou, e caiu.
No dia seguinte a faxineira encontrou seu corpo, mas não ele.    

      
Luis Fernando Veríssimo
Enviado por Mais@ - Mensagem da Paz


<< Reformador do mundo