GRANDES MESTRES DA POESIA

 

CRUZ E SOUSA

 

CRUZ E SOUSA: CANTO PRÓPRIO QUE REMETE À VIDA

Sob o título 'cruz e Sousa criou canto próprio que remete à vida", o crítico paulista Ivan Teixeira analisa, sob o prisma da atualidade - matéria foi publicada em 98 - a produção poética daquele que é considerado o maior catarinense de todos os tempos:

Cruz e Sousa (1861 - 1898) é célebre por haver criado uma versão brasileira do simbolismo francês, especialmente do satanismo de Baudelaire e da musicalidade de Verlaine. Esse é o lugar-comum com que o poeta costuma ser apresentado. Não fosse por outros motivos, esse bastaria para conferir a ele uma modesta imortalidade, pois no Brasil se valorizam muitos os artistas que, de alguma forma, nos familiarizam com os hábitos mentais europeus.
Nesse sentido, Cruz e Sousa é uma espécie de tradutor intrínseco das Flores do Mal e da melopéia - vocábulo utilizado por ele no poema Monja Negra - Verlaine. Assim como Álvares de Azevedo é o nosso melhor tradutor de alguns aspectos do Romantismo europeu, Cruz e Sousa pode ser entendido como um assimilador, com suposta voz brasileira, da sensibilidade decadentista francesa. Por essa perspectiva, talvez se pudesse estudar muito da poesia feita no Brasil como tradição assimilada do espírito e das formas da Europa, estudo em que os modernistas teriam lugar de destaque.
Mas, para além de uma versão local das novidades européias, Cruz e Sousa deve sobretudo ser apreciado como um poeta original, no sentido de inventar um canto próprio, que nos remete para a vida, e não apenas para as formas literárias do estrangeiro. Um dos aspectos mais interessantes desse canto pessoal consiste na apropriação da tópica romântica do sofrimento, que ele trata de forma inédita em nossa tradição lírica.

ALQUIMISTA

Os experimentos formais de Broqueis (1893), o primeiro livro simbolista brasileiro, possuem um encanto especial, e é provável que o poeta tenha recuperado a força verbal desse seu primeiro livro. Mas é em Faróis (1900) que a tópica do sofrimento assume a condição de motivo central, embora seja retomada, já sem a mesma intensidade, nos ÚLTIMOS SONETOS (1905). Num dos poemas em prosa de Evocações (1898), o autor define o poeta como um "alquimista da dor", imagem que fundamenta sua insistência na investigação do motivo do sofrimento.
Os românticos identificavam a dor como decorrência da solidão amorosa ou do tédio. Cruz e Sousa atribui à tópica uma dimensão metafísica, rigorosamente nova no discurso lírico brasileiro. Em que consiste a metafísica de Cruz e Sousa? Consiste principalmente em atribuir densidade existencial ao tema da dor, abordado como forma visceral de expressão lírica. Trata-se de uma maneira transfigurada de auto-investigação, em que dados da condição biográfica (o negro da América) fundem-se com um retórico consagrado pela vanguarda européia de então (o artista como um decaído).
Assim, partindo da condição pessoal, o poeta atribuiu naturalidade à tópica do poeta maldito, que vê na dor uma espécie de sublimação ou instrumento para a contemplação de verdades essenciais, encarnadas nas estrelas e nos desvãos misteriosos da luz e da noite. Uma das melhores expressões da metafísica do sofrimento em Crua e Sousa acha-se em Luar de Lágrimas (Faróis). Nesse poema, a persona lírica, dotada de impulso volátil, viaja aos espaços intermináveis do paraíso em busca dos entes queridos que perdera.
Depois de contemplar a luz e os querubins, só encontra dor e angústia naqueles que supunha banhados pela graça. Aí, como em Monja Negra, o poeta compõe um discurso em que o ser se converte numa espécie de feixe de ondas abstratas de padecimento e limitação, efeito obtido graças ao acúmulo de imagens sonoras e cromáticas, associadas à enumeração exaustiva de prismas variados da mesma impressão.
Trata-se de uma concepção algo surrealista do discurso poético, em que formas objetivas do mundo exterior cedem lugar à projeção dos fantasmas deformantes da poderosa imaginação verbal do poeta. Outra soberba manifestação da metafísica do sofrimento encontra-se em "Meu Filho" (Faróis), poema que assume a forma de uma espécie de cantiga (desencantada) de ninar: enquanto o filho dorme, o pai antevê em sussurro noturno o futuro de desenganos e privações da criança: "Mas, ah! Eu vejo bem, sinistra, sobre o trono, a dor, a eterna dor, agitando o seu cetro!"
Se os pressupostos do presente texto estiverem corretos, a leitura desses poemas e de outros, sobretudo os de "Faróis" e "Últimos Sonetos", talvez forneça a hipótese de uma nova categoria na poesia de Cruz e Sousa, a da dimensão metafísica, entendida, em síntese, como uma elevada concentração de significado poético na investigação existencial do indivíduo. Do ponto de vista exterior, essa perspectiva atribui ao poeta um lugar privilegiado na literatura brasileira, realçando uma vez mais a importância do negro na formação dos valores brasileiros.
Mulatos, esses são quase maioria em nossa expressão literária, de Machado de Assis e Lima Barreto a Mário de Andrade. Negro puro, só Cruz e Sousa. Ainda segundo um prisma extrínseco ao valor de sua poesia, talvez o sofrimento do poeta pudesse servir de estímulo e conforto aos ativistas negros, que poderiam, com dignidade e justiça, realçar nele a importância e a força (não apenas física) de sua etnia na formação intelectual do país.


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