GRANDES MESTRES DA POESIA
CRUZ E SOUSA
Lado elegante e sincero do poeta desterrado
Autor de biografia insólita expõe o mundo da inquietação,
tormento da alma de Cruz e Sousa, "um desses homens para quem a burrice
era pecado imperdoável"
Rodrigo de Haro também preparou sua homenagem a Cruz e Sousa no centenário
de morte. Resgata, com um texto em que mistura realidade e ficção,
detalhes do homem e da obra. Avisa desde já quais são os sinos
de seu tombeau, um estilo literário de origem francesa utilizado nas
homenagens póstumas: "Antes de ser negro, ele foi líder de
uma escola que se opunha ao progresso proposto pela civilização
industrial".
"No túmulo de Cruz e Sousa", título do livro, não
é uma lamentação. "É um buquê, um levantamento
de temas", explica. No momento Rodrigo dedica-se a uma seqüência
onde analisa datas e a aproximação de Cruz e Sousa com o que aconteceu
na sua época. "Ser um simbolista, naquela época, era tomar
um caminho de uma contestação muito forte. Até hoje a crítica
literária oficial brasileira fica um tanto preocupada com o Simbolismo,
tenta reduzi-lo porque não tinha origem nacional (e o que são
as origens nacionais?), como se os parnasianos tivessem. É que o Simbolismo
é uma linha estética que valoriza elementos malditos, sacrílegos,
noturnos, proibidos, ocultos, procurava a noite, queria desestabilizar a tranqüilidade
áurea do mundo do Olavo Bilac (poeta paranasiano)."
Cruz e Sousa, como simbolista, busca também o mundo da inquietação,
do tormento da alma, conforme as leituras de Rodrigo. "Até hoje,
ao ler e refletir sobre estrofes de Cruz e Sousa, você passa por esse
frisson. Uma leitura sistemática da obra, com atenção ao
lado mais pertubador no plano existencial, é muito útil. Ele sempre
mistura muito, em 'Missal' por exemplo, o erotismo e o litúrgico. Você
vai penetrando aqueles missais e vão se levantando formas, evocações
de lascívia. Ele era um obcecado. Cruz e Sousa fala de freiras loucas,
de Lesbos e tudo isso tem sido evitado. Não exista ainda quem tenha encarado
frontalmente as preocupações mais violentas de Cruz e Sousa. Eu
imagino os tremores de terra provocados naquela época pelas poesias dele
publicadas nos jornais."
O livro-homenagem é dividido em várias seqüências,
crônicas. Rodrigo entra em algumas linhas. Permite-se a lembranças
dele e de amigos, como Pedro Garcia e Iaponan Soares, sobre o que viveram nos
ano 50. "Em nossas andanças noturnas em um lugar que ainda era a
ilha de Cruz e Sousa, com uma paisagem dramática, longe de ser uma cidade
acanhada como falam alguns historiadores tomados pelo sentimento de inferioridade,
mas uma cidade autenticamente barroca, misteriosa, singular, mantínhamos
o sentimento da presença do poeta. Entre o vapor da fumaça do
bar, das borboletas noturnas, dos marinheiros, intelectuais, pessoas comuns,
sentia-se a presença de Cruz e Sousa, que era um personagem da cidade",
argumenta.
Certa noite, quando todos estavam mais ou menos bêbados - esse espisódio
pertence ao livro - imaginaram que Cruz e Sousa tinha acabado de sentar-se em
uma mesa ao fundo do bar em que estavam. "É claro que isso ficava
entre a brincadeira e o sério. Depois ele saía e a nós
íamos até a mesa e tinha alguma coisa escrita. Imaginávamos
que fosse um soneto. Isso tudo fazia com que ele estivesse vivo", frisa.
Outro fragmento para evocar a dimensão da presença do poeta nos
anos 50 aborda uma irreverente saudação ao poeta. O busto de Cruz
e Sousa - hoje instalado na praça 15 de Novembro - ficava no antigo largo
do quiosque e por não ser fixo acabava passando de mão em mão.
"Este busto passeava à noite. Era uma das graças esotéricas
dos rapazes passear de carro, exibindo o busto de bronze. Saiam em procissão.
Muitas vezes, eu também vi, o monumento amanhecia coberto de flores,
velas. Ele foi retirado do local por uma elucubração arbitrária
e foi colocado no jardim em frente ao Palácio Cruz e Sousa."
Nós da gravata
Em outra seqüência, Rodrigo resgata a passagem de Cruz e Sousa pelo
teatro. Abre o texto com a frase "Sete negros conduzem...". "Quero
descrever, com isso, o que era o teatro brasileiro daquela época. Segundo
depoimentos de viajantes, era um teatro predominantemente negro. Por sinal,
a arte brasileira, sobretudo no Império, era predominante afro. O mundo
de maior liberdade é o teatro e passou a ser evidentemente uma atração
para o elemento africano. Cruz e Sousa, como ponto (encarregado de lembrar textos)
de uma companhia, não esteve só. Oficialmente ele foi ponto só,
mas ele aparecia em cena para declamar poemas."
Há outro trecho que fala dos nós das gravatas. Rodrigo argumenta
que essa pequena história dos costumes - como se andava, falava, vestia-se
- se perde facilmente. "E é aí que está a vida exatamente,
porque é o lado mais revelador das pessoas e eu tento puxar Cruz e Sousa
desta forma. O que me aborrece muito é a cristalização
da imagem de Cruz e Sousa como negrinho sofredor. É uma maneira de mantê-lo
atrelado à posição de submisso, logo ele que foi um homem
extremamente elegante, altivo, rápido e sarcástico. Mesmo que
ariano (raça considerada superior pelo nazista Adolf Hitler) fosse, dificilmente
ele seria tolerado pela mediocridade porque tinha um espírito muito crítico.
Cruz e Sousa era desses homens para quem a burrice e a mediocridade são
pecados imperdoáveis."
Rodrigo chega a perguntar-se qual seria o nó de gravata preferido pelo
poeta. Fez um levantamento. Descobre que o nó chamado rossini só
era desfeito com uma tesourada. Cruz e Sousa, de acordo com a biografia, gastava
tudo que ganhava, como professor de francês e inglês, com roupas
e objetos do aparato pessoal.
Antes que interpretem mal sua idéia das gravatas e elegância, o
poeta contemporâneo antecipa sua defesa: "Não quero minimizar,
com isso, a tragédia de Cruz e Sousa, é evidente que ela existiu.
Na medida em que ele caiu, foi mais trágico do que se ele fosse um coitadinho
acostumado com o sofrimento, adaptado a uma inferioridade. Claro que vou passo
a passo, fazendo até um final mais terrível. Houve uma evidente
discriminação racial, mas houve também a discriminação
contra o que ocorre com qualquer homem ambicioso e consciente de seu próprio
valor. Ainda é e será assim por muito tempo em Florianópolis.
Cruz e Sousa foi vítima de inveja na Desterro (Florianópolis)
do século passado."