GRANDES MESTRES DA POESIA

 

CRUZ E SOUSA

Cruz e Sousa: O estilo é o sol da escrita

Por Celestino Sachet


Uma leitura abrangente da obra de João da Cruz e Sousa, bem como da presença do negro na literatura brasileira, com certeza, vai desviar o eixo mártir da cor, para o espaço profeta da forma.
"Decadentes", "nefelibatas". "derrotados" não são os jovens que no final
do século XIX já não mais conseguem movimentar-se nas estreitezas da concepção do real, captado, exclusivamente, pelo ângulo da matéria, monista, em permanente evolução; "derrotados", "nefèlibatas" e "decadentes" são os velhos, já desgastados, na batalha neurótica de um Parnasianismo - altar da ciência e da arte! - a limarem e a relimarem palavras e sons para que a forma sonora e a cara do sinal gráfico reproduzam a própria materialidade da "res aesthetica", apreendida pelo "mot juste" de Flaubert e pelas madames bovarys verde-amarelas.
E no Brasil, o Parnasianismo, transformado em ideologia política de um poder cultural amedrontado, investe-se da força de uma patrulha armada - e, por isso, desamadà - com Olavo Bilac, na trincheira do poema; com Rui Barbosa, na guarita da língua e com Sílvio Romero e José Veríssimo, no gatilho da crítica.
Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, fins de 1890, Cruz e Sousa não desconhece o fogo do adversário estético e conhece, muito bem, as pobres armas de que dispõe: urna nova idéia estética, dois livros, em parceria e uma teoria literária, sem parceiros
Uma análise cronológica e temática na sequência da publicação de cada um dos livros demonstra que o poeta catarinense é um autor que tenta justificar a teoria de sua arte literária: os textos se sucedem, aos pares, alternados em prosa e em versos, todos, prosa poética; todos, poe-
mas em prosa.
Dá-me vontade de afirmar que Tropos e fantasias é a teoria da arte poetica de Julieta dos Santos e que Missal e Evocações proclamam a teoria do verso em Broquéis e em Faróis. respectivamente.
A simetria, em cornplementaridade, entre os dois livros publicados em 1893 - cujo centenário festejou-se - salta por vários lados: os dois textos abrem com uma oração: Broquéis, ao Deus-Jesus dos cristãos; Missal. ao Deus-Sol das religiões primitivas, antes da oni e exclusiva presença de Javé, na separação do Caos e do Cosmos. Os dois títulos desfraldam urna unidade semântica: "broquéis", conjunto de escudos, defesa contra o homem; "missal", conjunto de orações. proteção de Deus; poemas e crônicas comparecem com a mesma titulação nos dois livros: "Angelus", por exemplo; outras vezes. em quase homonímia:
"Lua" e "Paisagem de luar"; "Flor do mar" e "Oracão ao mar e, até, em unidade monotemática entre o poema e a crônica, como em "Post mortem" e "Sugestão".
Aprofundemos, apenas, uma das múltiplas simetrias - ou intertextualidades - entre Missal e Broquéis: as preces que abrem cada um dos livros.
Broquéis. conjunto de 54 poemas, explode com um texto-oração de Baudelaire, em francês, no qual o poeta implora auxilio à divindade para elaborar versos que o convençam de que ele não é a pior das criaturas e, muito menos, inferior às que ele despreza: desejo da forma pura, na superação do criador impuro! Essa forma, em desespero. alimenta cada urna da quase meia centena de crônicas de Missal.
Com Oração ao Sol, crônica-intróito da missa que será celebrada ao longo de todo um livro, clara intertextualidade com a oraçao de São Francisco de Assis, Cruz e Sousa desvia o eixo da divindade judaico-católica, da oração de Baudelaire, para a divindade primitiva, para um cosmos, liberto do "Fiat" bíblico.
A oração do poeta, impregnada de louvores ao Deus-Natura, pai da vida do corpo e pai da força da arte, a oração da criatura-criador faz-se acompanhar de um pedido de vitória sobre os futuros inimigos (demônios!) que tentarão aniquilar a caminhada da nova estética que ele se propõe defender, entre eles, papas com as chaves da infalibilidade e com discursos de latins pulve- rulentos.
Nessa "Oração ao Sol", a exorcização aos papas "com chavelhos de Infalibilidade", tem nome e sobrenome: Sírio Romero, o porta-voz da crítica-silêncio e José Veríssimo, o alto-falante da crttica-agressão; as "teorias abstrusas de latins pulverulentos", com as regras fáceis e fósseis, têm peso e sobrepeso: a critica naturalista, brotada dos princípios filosóficos de Spencer e dos pressupostos estéticos da raça, do meio e do momento, impostos pelos seguidores de Hyppolite Taine, entre eles, a crítica brasileira instalada nos jornais e revistas do Rio de Janeiro.


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