GRANDES MESTRES DA POESIA
CRUZ E SOUSA
O reino de um visionário
Prof. Luiz Romero de Oliveira
Antes de fazer qualquer reflexão sobre o movimento literário
no qual se situaria o poeta catarinense Cruz e Sousa, deixo-me levar pelos versos
e pelas múltiplas imagens expressas no seu poema "Visão",
incluído em Faróis.
Noiva de Satanás, Arte maldita,
Mago Fruto letal e proibido,
Sonâmbula do Além, do Indefinido,
Das profundas paixões, Dor infinita.
Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Das Ilusões tantálico gemido,
Virgem da Noite, do luar dorido,
Com toda a tua Dor oh! Sê bendita!
Seja bendito esse clarão eterno
De sol, de sangue, de veneno e inferno,
De guerra e amor e ocasos de saudade.
Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!
O título do soneto pode levar o leitor desavisado da poética de
Cruz e Sousa a pensar a visão como uma epifania que desvela mistérios
ou como um olhar ou augúrio revelador. Mas logo se percebe que o poeta
aí inicia o jogo com a dubiedade das palavras. Ao seguir a trilha inaugurada
pelo título, ele deparar-se-á com um tipo especial de visão
que mais se aproximaria do enigma do que da revelação. Adentra,
pois, o mundo de estranhamentos que circula nos versos do poeta.
O tom sombrio de seus versos deixa entrever vultos que se insinuam sub-reptícios
entre imagens fortemente impressionistas. Tais imagens, forjadas pela intensidade
das palavras escolhidas para a sua construção, paradoxalmente
tornam-se mais equivocantes do que unívocas. Antes, pode-se afirmar,
são imagens que permitem, pelo seu cunho abstrato, associações
variadas que levam o leitor a um labirinto vertiginoso no qual, com facilidade,
ver-se-á abandonado e perdido.
O contraste observado propicia pensar em sombras emergindo na luz. A luz, no
caso, é presentificada por duas fontes: pela força das imagens
poéticas e pela formalização clássica e precisa
dos catorze decassílabos do soneto. Mas essa luminosidade pode cegar
o leitor. Confundido, ele tateará pelos caminhos obscuros e indefinidos
que contrastam com o rigor formal e racionalizante do soneto. Por outro lado,
a superexposição das imagens poéticas contribui, pelo excesso
de brilho (como a explosão de um flash de máquina fotográfica),
para a sua indefinição. A visão, assim, oblitera-se. Efeito
que atinge diretamente o leitor, que é forçado a revisitar cada
uma das imagens na tentativa de elucidar a possível cifra que habita
os versos.
Os quatro primeiros decassílabos ("Noiva de Satanás, Arte
maldita, / Mago Fruto letal e proibido, / Sonâmbula do Além, do
Indefinido, / Das profundas paixões, Dor infinita.") permitem pensar
que, se "visão", ela o é de um modo especial. Ela é
apresentada como uma arte satânica, amaldiçoada e mesclada de morte
e interdição. A "Arte maldita" parece se circunscrever
em um território indefinido, profundo e infinito. Conjunção
de paixão e dor, a visão vislumbra o campo limítrofe entre
sonho e vigília - local insólito marcado pelos passos do sonâmbulo.
À pergunta que se impõe - o que é essa visão? -
arriscarei uma resposta que, para tal fim, necessita, agora sim, uma contextualização
do soneto na história dos movimentos literários.
As concepções estéticas se multiplicaram no século
XIX e potencializaram o número de críticas e/ou propostas para
um mundo que, envolto por nova aura desenvolvimentista pautada na industrialização,
buscava o caminho mais apropriado para trilhar. Essas idéias trafegavam
entre o nacionalismo romântico e o realismo, amalgamado por porções
naturalistas e afins, e tentavam definir a própria existência.
O império do racionalismo positivista encontrava antagonistas que primavam
por questionar a pretensão do domínio cientificista da natureza.
Pode-se afirmar que o Simbolismo estava entre os que resistiam a essa dominação.
Apesar de o Simbolismo ter sido obnubilado pelo peso do Realismo, segundo Alfredo
Bosi, aqueles tiveram uma função relevante: "dizer do mal-estar
profundo que tem enervado a civilização industrial" (BOSI,
1999, p. 267) e, mais ainda, se tivesse conseguido escapar do cerco do Realismo
"outro e mais precoce teria sido o nosso Modernismo, cujas tendências
para o primitivo e o inconsciente se orientaram numa linha bastante próxima
das ramificações irracionalistas do Simbolismo europeu" (BOSI,
1999, p. 269).
A escola brasileira, porém, como salienta Alfredo Bosi, tem forte influência
do movimento parnasiano [1]. Percebe-se que a pretensão de uma arte que
se fecha em si mesma ali está presente, assim como a forte preocupação
com a forma. Mas para os Simbolistas, especialmente em Cruz e Sousa, estes princípios
parecem funcionar de modo diverso.
O poeta parnasiano, segundo Sérgio Peixoto, "fez da poesia algo
nobre, e o verbo passou a refletir a atenção respeitosa que esse
material requintado e superior merecia por parte do grande artista" (PEIXOTO,
1999, p. 152). O grande artista, então, seria aquele que teria no rigor
formal da poesia o fim último. Nos termos de Peixoto, o poeta abandonou
"as emoções pessoais, as confissões simplórias
e as idéias revolucionárias, [e] passou a buscar na própria
poesia a sua razão de ser" (PEIXOTO, 1999, p. 153). Guiados, segundo
Bosi, por concepções tradicionalistas, os parnasianos conferiam
grande valor à rima, ao metro e ao ritmo.
O movimento Simbolista brasileiro, para Bosi, destaca-se do Parnasianismo mais
pelo conteúdo dos poemas do que pela forma. Constatação
também ressaltada por Augusto de Campos que, indo além, afirma
ser efeito, talvez, da pouca informação de nossos poetas sobre
as perspectivas transgressoras do Simbolismo europeu. Segundo esse estudioso
da literatura:
Seja por equívoco de informação, seja por imaturidade do
nosso desenvolvimento poético, o fato é que o nosso Simbolismo
parece ter-se nutrido mais das vertentes moderadoras do Simbolismo francês,
quando não dos seus sucedâneos amaneirados, que dos aspectos verdadeiramente
revolucionários daquele movimento. [...] A maioria esmagadora de nossos
simbolistas - com exceção de poemas, mais do que de autores, e
de versos mais do que de poemas - permanece morigeradamente presa ao satanismo
"pré-simbolista" de Baudelaire, à musicalidade "melódica"
de Verlaine, quando não descai nas deliqüescências de Maeterlink
(CAMPOS, 1988, p.214).
Guardada a pertinência da crítica de Augusto de Campos ao movimento
Simbolista brasileiro, veremos que, no caso de Cruz e Sousa, encontra-se uma
poesia cuja força é indiscutível. O nosso peculiar Simbolista
tem uma marca patente em sua produção poética: apesar de
não abdicar da precisão da forma, ele não se apega ao que
se convencionou chamar de "artificialismo" do parnasiano. As palavras,
na poesia de Cruz e Sousa, não cumprem apenas um ritual de erudição.
Antes, o poeta tenta, em seus versos, recuperar o potencial semântico
e imagético possível através da pensada articulação
entre os signos.
O rigor formal do soneto, por outro lado, cumpre a função de uma
luminosidade que exacerba o contraste com o seu conteúdo. O rigor luminoso
do soneto, assim, é contaminado pelas sombras sugeridas pela articulação
do tema cantado nos versos. Há em sua poesia uma intencional disposição
para o mistério que perpassa a existência, mas não com a
intenção de o elucidar, antes, pode-se afirmar, pretende restaurar
o seu lugar no espaço vital. O gesto do poeta contrapõe-se, deste
modo, num só tempo, à objetividade racionalista e ao artificialismo
parnasiano.
Anna Balakian, referindo-se ao poema "Antífona", aponta aspectos
que podem ser estendidos à visão poética de Cruz e Sousa:
(...) a palavra incomum, o objeto, a paisagem, o mito, a união das características
abstratas e concretas cuja relação é evidente - sendo todos
esses recursos tentativas de transcender o significado direto do poema e abrir
perspectivas à conjetura para elevar a experiência limitada do
homem-poeta e do homem-leitor a um nível de múltiplas possibilidades
(BALAKIAN, 2000, p. 88).
A poesia de Cruz e Sousa trafega com desenvoltura por caminhos considerados
arriscados para os poetas de seu tempo. A vida torna-se, em seus versos, um
terreno insólito que requer uma nova mirada, que requer a coragem de
fitar abismos escuros que são paradoxalmente ocultos pela luz positivista.
Davi Arrigucci Jr, no início de sua análise do poema "Olhos
do sonho", do mesmo poeta, salienta aspectos correlatos aos observáveis
em "Visão": "Este poema de Cruz e Sousa aparece, em linhas
gerais, como o relato de uma visão no âmago da noite" (ARRIGUCCI
JR., 1999, p. 166). O crítico destaca que a visão, no caso, não
faz
(...) qualquer referência à realidade banal de todo dia, ou mesmo
a uma realidade determinada, como se tivesse alijado a experiência real
e o tempo comum, para se internar numa paisagem de sonho, num outro mundo noturno,
estranho e à parte. Penetramos no reino de um visionário (ARRIGUCCI
JR., 1999, p. 166-7).
A sugestão que o poema "Visão" faz ao leitor, em seus
primeiros versos, também consegue revolver e confundir o foco em que
o olhar comum se concentra. O poeta, ao conjugar arte e dor, elimina a idéia
de placidez que porventura pudesse estar fixada à noção
de arte do leitor. O paroxismo aumenta quando, após ter classificado
a arte como maldita e interdita, nos versos seguintes o poeta lhe confere um
estatuto mais solar. É patente, no segundo quarteto, a afirmação
daquilo que poderia ser visto como execrável ou mórbido no universo
poético do século XIX. Assim, o ar sombrio, amargo e trespassado
pela dor é abençoado pelo poeta: "Astro sombrio, luz amarga
e aflita, / Das ilusões tantálico gemido, / Virgem da Noite, do
luar dorido, / Com toda a tua Dor oh! Sê bendita!"
A poesia do "Dante Negro" exercita um peculiar olhar sobre a existência
que, para ele, é presentificada pela dor. Seus versos, porém,
denotam uma dimensão excêntrica para a dor que escapa à
morbidez masoquista vislumbrada numa primeira leitura. Percebe-se que o poeta,
apesar dos traços que podem aproximá-lo da filosofia de Schopenhauer,
em determinados momentos parece acenar para a alegria afirmativa nietzschiana
ao bendizer a vida em todas as suas nuances, como expressa nos versos seguintes:
"Seja bendito esse clarão eterno / De sol, de sangue, de veneno
e inferno, / De guerra e amor e ocasos de saudade".
A luz solar não serviria apenas para exaltar a si mesma, como nos poemas
parnasianos, mas também, e aí estaria a sua beleza, poderia mostrar
as partes veladas da existência. A poesia de Cruz e Sousa pode ser vista
como esse raio de sol que penetra as entranhas da terra, não simplesmente
para higienizá-la, mas, sim, para permitir sua voz. Uma voz que, desprovida
de signos que possam efetivamente definir a amplitude de seu universo, empresta
as palavras do poeta que, limitadas, requerem novos arranjos. Essa luz poética,
ao permitir a expressão das dores recônditas da vida, apropria-se
de uma nova potência que estava exilada como sombra. Vinculadas, poesia
e dor, forjam lentes que perscrutam dimensões difusas da existência
e recuperam horizontes proibidos pela poesia tradicional.
O caminho da poesia do catarinense revela um mundo que escapa às formas
convencionais. A dor, então, pode ser entendida como a constatação
de uma realidade que não se sustenta e desaba. A essa dor inicial, provocada
pela queda dos ideários sobre a placidez da vida, se segue um momento
de solene júbilo diante da constatação dos novos portais
da realidade. Em meio à tormentosa natureza que se descortina, o poeta
não poderá mais se satisfazer com o falso aconchego das relações
cotidianas e do senso comum. Diz-nos o autor, em "Iniciado", sobre
o doloroso percurso do poeta:
Tudo esqueceste, para vir fecundar o teu ser nos seios germinadores da Arte.
E, quando alimentado, quando conquistado e vencido por ela, quiseres voltar
depois aos braços acariciantes de tua mãe, num risonho movimento
de afetiva alegria, clara, fresca, espontânea, sadia e simples como a
de outrora, esse movimento lhe parecerá funesto e acerbo, como o rictus
de uma caveira, sem jamais o antigo encanto e frescura (CRUZ E SOUSA apud PEIXOTO,
1999, p. 251).
O poeta abala, com essas palavras, os preceitos estabelecidos e revela-os como
uma máscara que esconde e restringe a vida. Aquilo que se pretendia frescor
e saúde é revelado como a deterioração. A revelação
do poeta, no entanto, assume um aspecto enigmático, pois, ao mostrar
as restrições da vida convencional, lança o leitor em um
universo em turbilhão cuja dimensão e amplitude só seria
perceptível através das lentes da nova poesia.
Assim como o fragmento citado acima, o soneto de Cruz e Sousa nos fala do poeta
e da sua tarefa. Os versos do poema soam como a afirmação do seu
destino. Caminho que, se iniciado, mostra-se sem retorno. A enigmática
exposição da visão do poeta torna-se um convite para mergulharmos
nas profundezas da Majestosa esfinge que, enfim, é a própria poesia
da vida em seu caráter equívoco, para alcançarmos alguma
parcela de sua glória:
Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!
Referências:
ARRIGUCCI JR., Davi. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia
das letras, 1999.
BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 34 ed. São
Paulo: Cultrix, 1999.
CAMPOS, Augusto. Verso reverso controverso. São Paulo: Perspectiva, 1988.
CRUZ E SOUSA, João da. Broqueis e Faróis. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
PEIXOTO, Sérgio Alves. A consciência criadora na poesia brasileira:
do barroco ao simbolismo. São Paulo: Annablume, 1999.