GRANDES MESTRES DA POESIA
CRUZ E SOUSA
CRUZ E SOUSA: A EXISTÊNCIA E A TRASCENDÊNCIA
Por Lauro Junkes
Cruz e Sousa, o mestre do Simbolismo Brasileiro, foi um dos
escritores que mais tenazmente lutou pela realização do seu ideal
estético-literário. "Emparedado" por pobreza e preconceito
racial, tendo experimentado dramaticamente na própria carne a oposição,
o desprezo e a incompreensão, logrou, como verdadeiro fanático
da arte, consagrar sua existência ao ansioso empenho pela realização
poética. Sofreu a tortura estética. Viveu para a poesia. Corporificou
sua existência em poemas. E deixou-nos um legado do mais alto mérito
literário.
Na oportunidade em que vem a público a edição crítica
do mais burilado livro do poeta negro - Últimos Sonetos, não podemos
furtar-nos a mais uma leitura em profundidade dessa poesia, que representa meritoriamente
o "Caminho da Glória" e o "Triunfo Supremo" daquele
que, mesmo penando na "Vida Obscura", mesmo sentindo-se aprisionado
no "Cárcere das Almas", foi o grande "Assinalado".
Últimos Sonetos, o livro da maturidade, contém a quintessência
depurada da estética cruzesouseana. Mais do que nos livros anteriores,
aqui a linguagem é sempre culta e nobre, esmerada na construção
frasal e na seleção vocabular. A estrutura dos sonetos decassílabos
é perfeita. A metaforização domina toda a expressão.
O ritmo fluente, a musicalidade buscada a nível de fonema, de palavra
e de verso, as modulações fônicas, os processos reiterativos,
a obsessiva oposição antitética, a redenção
do adjetivo na sua valorização semântica, a variação
inusitada de símbolos e metáforas buscando apreender e representar
as tensões da vida interior, o vigoroso e múltiplo poder de sugestão
que ultrapassa toda e qualquer tentativa de representação mimética
constituem algumas marcas decisivas dessa grande poesia simbolista, tão
rapidamente amadurecida em Cruz e Sousa, que também tão cedo viu
seu "Grande Sonho" e sua "Grande Sede" de "Assinalado"
tolhidos pelo "Vendaval da Morte".
Últimos Sonetos é o livro em que a própria condição
existencial do poeta atinge maior maturidade. Os apelos da explosiva carnalidade
luxuriosa amenizaram quase que de todo. Os dilaceramentos dramáticos
de sua angústia trágica arrefeceram suas erupções
revoltosas. E revela-se um poeta essencialmente interiorizado. Contata-se, agora,
até uma certa harmonia, um relativo equilíbrio ante o sofrimento,
sublimado, dentro duma perspectiva transcendente. A tônica está
sempre voltada para a vida interior, a alma, o sentimento, o destino além-matéria.
Persiste, ainda, a consciência da trágica condição
humana ("Vida Obscura"). A revolta interior não logrou ser
totalmente dominada, manifestando-se nos sentimentos de ódio ("Presa
do ódio", "Ódio sagrado"). Por isso, impõe-se
ainda, irresistível, o apelo tão freqüente do sonho, com
toda sua carga de ilusoriedade, de evasão, de compreensão ("O
grande sonho", "Sempre o sonho") ou então a inclinação
e inebriante atração pelo vinho, a "sede de falerno"
("Vinho negro" e "Imortal falerno".
Entretanto, acima de todos os outros sentimentos carnais, sensoriais e mundanos,
impõe-se "a grande sede" do "Amor infinito", a "Aspiração
suprema", a "Ansiedade" do "Cavador do infinito", que
espera "O grande momento" em que, "Longe de tudo" e liberto
do "Cárcere das almas", o espírito esteja "Livre"
e possa, "Para sempre", realizar seu "Triunfo supremo".
Profundamente desiludido deste mundo material e concreto, inclina-se o poeta,
irresistivelmente, para um universo superior, transcendente, vagamente místico
e espiritual.
Neste mundo material, a solidão trágica sempre lhe pesou ("Só",
"Êxtase búdico", "Alma solitária").
Neste mundo, constituído de matéria, de corpo, de elemento concreto,
de finitude, a grande aspiração da alma humana não pôde
realizar-se.
É impressionante como o poeta retoma sempre de novo a caracterização
negativa da matéria terrena. Assim, "os seres virginais que vêm
da terra" vem "ensangüentados da tremenda guerra". O ser
de "Vida Obscura" atravessou "a vida presa a trágicos
deveres" e "ninguém te viu o sentimento inquieto, / magoado,
oculto e aterrador, secreto / que o coração te apunhalou no mundo".
Crer é "imortal atitude" que exige "abandonar o sujo deus
cornudo, / o sátiro da carne...". Se "toda alma num cárcere
anda presa", sua aspiração consiste em "ser livre da
matéria escrava, / e arrancar os grilhões que nos flagelam".
Para o poeta, "assinalado" com missão sublime, "a terra
é sempre a tua negra algema, / prende-te nela a extrema desventura".
Em "Condenação fatal" é ainda mais radical a
visão do poeta:
"Ó mundo, que és o exílio dos exílios,
um monturo de fezes putrefato,
Onde o ser mais gentil, mais timorato
dos seres vis circula nos concílios.
(...)
Mundo de peste, de sangrenta fúria
E de flores leprosas da luxúria,
De flores negras, infernais, medonhas.
Mesmo no sereno equilíbrio de "Sorriso interior",
o "ser que é ser" vence "os abismos carnais da triste
argila". Na solidão opressora, o poeta sente, "neste mundo
tão trágico, tamanho", "um frio sepulcral de desamparo".
Se "cá nesta humana e trágica miséria. / nestes surdos
abismos assassinos" só há dor e miséria, é
"longe de tudo", "é livres, livres desta vã matéria"
que encontramos as "Regiões eleitas". Enfim, neste mundo só
existe "vã matéria" que escraviza e conduz à
"humana desventura".
Dentro duma perspectiva místico-transcendente, embora não definitivamente
espiritualista e religiosa, o poeta busca um caminho de purificação
para "subir" às "Regiões eleitas". Esse caminho
redentor, essa catarse mística dar-se-á essencialmente através
do sofrimento, da dor. O poeta nunca tingiu uma clarividência nítida
em relação a essa via transcendentalizante. O poema "Quando
será?" explicita essas suas dúvidas:
"Quando será que as límpidas frescuras
Dos claros rios de ondas estreladas
Dos céus do Bem, hão de deixar clareadas
Almas vis, almas vãs, almas escuras?"
Não obstante essa incerteza, freqüentes são as alusões aos processos purificatórios. Nos versos serenos de "Vida obscura", o poeta afirma que "chegaste ao saber de altos saberes / tornando-te mais simples e mais puro". Entretanto, é mesmo através do sofrimento que a alma se liberta das cadeias aprisionantes da contingência humana:
"A Perfeição é a alma estar sonhando
Em soluços, soluços, soluçando
As agonias que encontrou na Terra!"
Expliciatamente afirma que "a tua alma, na Dor, mais nobre aumenta", ou então: "Vê como a Dor te transcendentaliza", e ainda "...por fim me purifico e lavo / na água do mais consolador dos prantos!". Até quase com sentimento sádico e masoquista, o sofrimento e a dor são ressaltados constantemente:
"Fazei da Dor, do triste Gozo humano,
A Flor do Sentimento soberano,
A Flor nirvanizada de outro Gozo!"
E talvez devido a essa função sublimadora e sublimizadora,
a "Alma Mater", que é a "alma purificada do infinito",
permite as seguintes equiparações:
"Alma da Dor, do Amor e da Bondade".
A alma - e talvez seja preciso reafirmar explicitamente que a alma é
o cerne, a realildade quase única, a obsessão de Últimos
Sonetos, referindo-se praticamente todos os sonetos a essa essência espiritual,
razão de ser superior do homem, único valor nobre, sublime e transcendente
ao ser humano, preocupação última que deve angustiar a
existência humana - a alma tende constantemente a purificar-se, a libertar-se
da "vã matéria". Exilada no mundo, presa ao "cárcere"
que é a materialidade.
E a alma aspira o celestial orvalho,
Aspira o céu, o límpido agasalho,
sonha, deseja e anseia a luz do Oriente...
Imbuído dessa valorização transcendental, o poeta chega mesmo a pregar uma apostólica "Cruzada nova":
"conquistemos, sem lança e sem espada,
as almas que encontramos no caminho"
Se o destino da alma consiste em libertar-se do "sátiro da carne", da "matéria escrava", para atingir as "Regiões eleitas", não se estranhe a freqüência do apelo ascensorial, a constante referência a "subir", pois na concepção tradicional, o céu se situava "em cima". Alguns exemplos apenas são suficientes para confirmá-lo: par atingir o "Mundo inacessível" da alma, "é preciso subir ígneas montanhas"; a alma será "Feliz", "subindo, subindo"; "Ascender para a luz é ser celeste"; o "eterno Amor imenso" da alma "sobe aos céus como sagrado incenso"; a "Alma ferida" torna-se pura "e sobe à sideral resplandescência, / longe de um mundo que só tem peçonha"; no seu "Grande sonho", a alma "sobe dos astros ao clarão radioso", "sobre às estrelas rútilas e frias"; e o "Cavador do Infinito" "sobe aos mundos mais imponderáveis". Subir sintetiza, pois, a ânsia única e permanente da alma; e subir para o "Espaço da Pureza", através do sofrimento purificador:
Subindo lento escadas por escadas,
Nas espirais nervosas do Martírio,
Das Ânsias, da Vertigem, do Delírio,
Vou em busca de mágicas estradas.
E essas "mágicas estradas" terminam por conduzir
a alma ao seu destino transcendente. E alcançamos, assim, a outra face,
o outro elemento da grande antítese na cosmovisão de Cruz e Sousa:
ao corpóreo, à matéria, ao mundo, ao carnal e finito opõe-se
a grande realidade transcendente, infinita, espiritual, o infindável,
o eterno, o céu. Esse cosmos transcendente, como já observamos,
não se define muito claramente em Cruz e Sousa. O poeta, em todos os
momentos, sobrevaloriza o transcendente, em relação à realidade
terrena. O poeta convida e conclama a alma à catarse, à sublimação
da materialidade. Mesmo assim, a variação de termos com que se
refere ao transcendente e a indefinição vaga e abstrata desses
termos confirmam suas incertezas e imprecisões sobre o mesmo.
Aproveitando, sem uma assimilação e integração orgânicas,
elementos fornecidos por religiões, filosofias, misticismos e orientalismos,
o poeta, talvez por avanço muito apressado da morte ceifadora, talvez
pela própria tendência simbolista no vago e indefinido, não
logrou precisar o seu céu. Assim, esse mundo fica sugerido por expressões
como: "Céu, que é o vale azul da nostalgia", "azuis
melancolias", "estrelas do Azul", "Estrelas do infinito",
"olímpicas esferas", "celeste Empíreo", "Esferas
calmas", "esferas luminosas", "Espaços da pureza",
"Regiões eleitas", "Grande paz sidérea", "Amplidões
supremas", "amplidões das amplidões austeras",
"Suprema altura", "azul quimera", "eterno silêncio
dos espaços", "Fundas regiões do pranto e do gemido",
onde erram as almas. Nessas expressões encontramos orientações
semânticas positivas, sugerindo felicidade e compensação
aos sofrimentos terrenos, mas encontramos também traços semânticos
negativos, não satisfatórios, como a referência a nostalgia,
melancolia, quimera, pranto e gemido, silêncio, etc.
Essa linha ascendente do terreno ao celeste, com acentuação drástica
da desventura deste mundo, diluindo-se em vagas sugestões relacionadas
com o superior, pode evidenciar que não é gratuita a referência
de Cruz e Sousa a Dante. A concepção do conjunto dos poemas de
Últimos Sonetos leva-nos a concluir que o Cisne Negro conhecia bem a
Divina Comédia, com sua teologia mística, com sua construção
em sucessivos planos, desde o "Inferno", passando pelo estágio
purificador do "Purgatório", para brilhar na luz plena do "Paraíso".
Cruz e Sousa parece estar em busca de construção idêntica,
embora não definida tão clara e racionalmente, como não
podia mesmo, tendo em vista a radical diferença entre a apolínea
arte clássica e o umbroso Simbolismo. Por outro lado, Cruz e Sousa não
se decide por nenhum sistema religioso, ao contrário da opção
de Dante pelo teocentrismo medieval. Cruz e Sousa, ainda, acentua sobremaneira
a negatividade da vida terrena. E sua cosmovisão resulta deprimente e
pessimista.
Numa pequena e imprecisa estatística vocabular, constatamos a predominância
de palavras como as seguintes, geralmente elevadas a uma categorização
absolutizante, pelo destaque de maiúsculas: Dor, pranto, mal, desventura,
morte, miséria, destino, ânsias, lodo, soluços, lama, inferno,
pecado, exílio, apodrecer, etc. Enfim, o poeta, mesmo acentuando a força
dos sentimentos de amor e bondade, mesmo buscando a fé e a crença,
não alcançou a iluminação clara sobre seu ansiado
transcendente, pelo que sempre lhe pesou mais a constatação de
"Vida obscura": "O mundo para ti foi negro e duro".
Não obstante, atingiu momentos de verdadeiro otimismo feliz, como em
"Glória" ou "O Grande Momento"; ou então momentos
de racional serenidade, como em "Sorriso Interior". E assim, se os
golpes da vida, com seus paradoxos e seus constantes dilemas antitéticos,
ainda lhe permitiram o "Triunfo Supremo":
"Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando!",
Pôde o poeta, afinal, descansar, consciente de que sua vida, seus anseios, seus sofrimentos, sua luta estética não haviam sido vãos. "Assim seja" encerra esse ciclo existencial e poético:
Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do Sever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu Sentir latente.
Morre com alma leal, clarividente,
Da crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus, brandido
Como um gládio soberbo e refulgente.
Vai abrindo sacrário por sacrário
Do teu sonho no Templo imaginário,
Na hora glacial da negra Morte imensa...
Morre com o teu Dever! Na alta confiança
De quem triunfou e sabe que descansa
Desdenhando de toda a Recompensa!
(transcrito do Suplemento Literário Minas Gerais)