GRANDES MESTRES DA POESIA
CRUZ E SOUSA
A Cruz e Sousa em seu Centenário
Artur da Távola
Discurso pronunciado pelo Senador Artur da Távola,
na tribuna do Senado Federal, homenageando Cruz e Sousa, como poeta:
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, Senhor Vice-Governador de
Santa Catarina, Senhora Prefeita da Cidade de Florianópolis, Senhor Vice-Prefeito,
prezado amigo intelectual, escritor Senhor Iaponan Soares de Araújo;
demais membros da comitiva catarinense; meus companheiros e minhas companheiras,
Cruz e Sousa foi homenageado, de modo brilhantíssimo, pelo Senador Esperidião
Amin, como catarinense. Será também homenageado como negro, voz
que se levantou ao tempo da transição entre a escravatura e a
libertação dos escravos, não a libertação
dos preconceitos, até hoje permanentes.
Homenageá-lo-ei como poeta, porque esta talvez seja dentre todas, a sua
principal característica de eternidade.
Sorriso Interior
O ser que é ser e que jornais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
"Sorriso Interior", que faz parte de um dos seus últimos livros
publicados em vida - há uma publicação de obras posterior
-, indica um momento especial na poética de Cruz e Sousa,o momento da
sublimação.
Cruze Sousa foi, permanentemente, a luta entre a depressão e a redenção.
Pode-se, talvez, caracterizar-lhe a vida por essa batalha constante entre a
depressão e a redenção.
Alguns críticos consideram os seus últimos poemas obras menos
fortes; quando a morte se aproximava ele já não teria a fúria
inovadora dos tempos iniciais do livro Missais, em que praticamente funda o
Simbolismo, e do livro Faróis, em que aponta caminhos. Não estou
de acordo com esses críticos nessa observação.
Nos últimos sonetos, Cruz e Sousa vive a redenção de uma
vida de auto-sofrimento, de uma vida fadada ao conflito entre a sensibilidade,
diria mais, entre um gênio poético - porque Cruz e Sousa é
um dos poucos gênios poéticos do Brasil - e a opressão:
a infância sofrida embora apadrinhada por um homem de lucidez, seu pai
adotivo, que deu alforria aos escravos antes da hora e lhe permitiu o estudo;
as primeiras lutas abolicionistas na cidade do Desterro, hoje Florianópolis;
a reação de uma sociedade que não admitia o negro naquelas
alturas intelectuais; as dificuldades de natureza econômica; os preconceitos
tantos, que se hoje existem nos grandes centros urbanos, o que não dizer
numa pequena cidade branca no fim do século passado; a dificuldade de
trabalho que o fez receber um cargo público no interior e não
poder tomar posse, porque era negro. Tudo isso colocado em confronto com uma
sensibilidade menina se assim se pode dizer, no sentido da idéia de uma
sensibilidade virginal. Tudo isso é a grande luta expressa na poesia
de Cruz e Sousa que, a meu juízo, acaba com a redenção
nos últimos sonetos - como podemos ver perfeitamente neste poema:
A morte
Oh! Que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem...
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!
Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem...
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.
Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Como os velhos corações tantalizados.
Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando.
Aqui, perto da morte, Cruz e Sousa vive em seus poemas disjuntivas absolutamente
díspares, peculiares a quem enfrenta o problema da morte - ele já
estava praticamente tísico ao tempo dos últimos sonetos. Ele tem
o terror da morte como desaparição e, ao mesmo tempo, a visão
da morte como uma grande diluição no todo, inclusive numa visão
beatífica da vida.
Ele é exatamente aquele que diz no "Triunfo Supremo", um dos
mais belos sonetos da Língua Portuguesa, se me permitem essa ousadia
de afirmação.
Chamo a atenção para a musicalidade, outra característica
do Simbolismo, para o misticismo, para o cromatismo do texto, para alguns aspectos
maiores da alta poesia e para o domínio pleno do idioma, sobretudo do
idioma sem nenhuma redundância apenas com as palavras necessárias,
mas ainda palavras tocadas naquela fusão entre o Parnasianismo e o Simbolismo:
a idéia da palavra bela no verso musical.
Triunfo Supremo
Quem anda pelas lágrirnas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
É quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fúteis ouropéis mais belos.
É quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos,
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!
É quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensangüentando,
Amortalhado em todas as mortalhas.
Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando !
Aqui, de modo belíssimo, Cruz e Sousa coloca a capacidade de sublimação
do ser humano e a capacidade de vencer tudo aquilo que foi na sua vida realidade:
"Quem anda pelas lágrimas perdido, sonâmbulo dos trágicos
flagelos..." Aqui também, do ponto de vista literário, estão
todos esses valores que se encontram na poesia do Simbolismo.
Cruz e Sousa tem uma junção única na poesia brasileira
- talvez Afonso Guimarães, seu companheiro de poesia simbolista, também
o tenha -, uma fusão indefinível entre o Romantismo, estilo anterior
a ele, o Simbolismo, sua marca, e o Parnasianismo.
O Parnasianismo é coetâneo do Simbolismo. O Parnasianismo busca
a pureza da forma, a palavra como expressão exclusiva da beleza. Inclusive,
critica-se no Parnasianismo o predomínio da forma até sobre o
tema, o conteúdo. E, no entanto, o Parnasianismo é um dos momentos
mais elevados de nossa poética.
O tempo nos permite não mais olhar as escolas literárias com preferências
ou com aquelas teses antagônicas de quando as refregas literárias
estão vivas. Nesse ponto, a literatura se parece muito com a política:
idéias pelas quais os homens mataram e morreram, alguns anos ou séculos
depois, mostram-se complementares, encontram-se em algum campo das sínteses
da política. Assim também na vida literária.
O próprio Modernismo, que se voltou violentamente contra esse estilo
de poesia em 1922, negava ao verso a grande eloqüência, negava ao
verso o direito à busca da beleza pura, negava ao verso a forma estrita
do soneto, a forma estrita da métrica, a forma estrita da rima, porque
buscava libertá-lo do que chamava peias que o impediam de expandir-se
do ponto de vista da expressão. Tudo é verdade. É verdade
que o Simbolismo abre novos caminhos, como é verdade que esse tempo faz
uma poesia absolutamente notável.
No Cruz e Sousa das obras iniciais, há esse poema, considerado um marco
do Simbolismo no Brasil, do qual o Senador Esperidião Amin, com sua bela
voz de barítono, sua emoção de catarinense, seu talento
e seu imenso coração, disse da tribuna de modo tão eloqüente
o quarteto:
Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Esse poema, no entanto, é um poema grande - não haverá
tempo para lê-lo - marca a presença do Simbolismo. Ele tem 101
anos, foi escrito em janeiro de 1897, chama-se "Violões que Choram..."
e é, por certo, baseado em obra do Simbolismo francês Les Sanglots
dos Violons. Mas, com os jogos e com a aliteração e com a musicalidade
e com o uso das letras, como usa nesse quarteto as letras "v" e "z"
para simbolizar o bordão do violão, a corda grave do violão,
todo o poema, numa época em que se cantava às musas, altissonância
e beleza da mulher amada, a Pátria, numa época em que se cantava
tudo isso, Cruz e Sousa, como os impressionistas franceses que têm muito
a ver com o Simbolismo na arte européia - o Impressionismo na música
é um pouco como o Simbolismo Poesia: Debussy é simbolista, Ravel
é simbolista - buscava esse encontro da palavra com a música.
E da palavra com a música no sentido de sonâncias que despertem
sentimentos extra-racionais; sentimentos que escapam um pouco ao controle da
razão, que entram no território do devaneio, que entram no território
do vôo da imaginação alçado em distâncias muito
grandes e, sobretudo, entrem na linguagem inefável da música,
que não precisa de palavras. Essa é uma das mais belas tentativas
do idioma brasileiro. E é outra das marcas da genialidade de Cruz e Sousa.
Desse poema, lerei apenas alguns quartetos porque ele é realmente muito
grande - que fique como um acicate para o interesse posterior das Senhoras e
dos Senhores, de todos que desejem aprofundar-se nessa matéria.
Violões que Choram...
Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.
Noites de além, remotas, que eu recordo,
noites de solidão, noites remotas
que nos azuis das Fantasias bordo,
vou constelando de visões ignotas.
Sutis palpitações à luz da lua
anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
quando os sons dos violões nas cordas gemem,
e vão dilacerando e deliciando,
rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
dedos nervosos e ágeis que percorrem
cordas e um mundo de dolências geram,
gemidos, prantos, que no espaço morrem...
E sons soturnos, suspiradas mágoas,
mágoas amargas e melancolias,
no sussurro monótono das águas,
noturnamente, entre ramagens frias.
Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
A musicalidade é, portanto, urna das principais marcas dessa tentativa
do Simbolismo - tentativa a meu ver, lograda - de unir a palavra, que é
irremediavelmente racional, não há forma da palavra não
ser um ente de razão, ela pode ser além da razão quando
ela é a palavra poética, porém, a razão a domina
com essa linguagem do inefável, do que não é exatamente
verbalizável, que é a linguagem da música. E se não
compreendermos o que significava tudo isso na poesia de então, não
compreenderemos a grandeza de Cruz e Sousa.
Nos seus versos abolicionistas ele é condoreiro como Castro Alves. Na
sua visão de mundo, ele é romântico, no sentido de que o
Romantismo é uma escola literária que prega o amor à natureza,
que é uma escola baseada em sentimentos nacionalistas; o Romantismo prega
a individualidade na frente de qualquer outra categoria artística; o
romantismo é a procura do eu profundo do artista; o Romantismo é
uma escola na primeira pessoa. Ele tem essa característica. Ele tem a
característica simbolista e tem a característica parnasiana pela
pureza do verso. Tudo isso saído daquele menino pobre, filho de escravos
alforriados, massacrado, que até quando morreu - e nem todos o sabem
- sem dinheiro para que se lhe transportasse o corpo de Minas Gerais para o
Rio de Janeiro, teve o seu cadáver jogado em um trem de animais, onde
conseguiu uma vaga para transportar o corpo para o Rio de Janeiro, onde foi
enterrado.
Tudo isso, portanto, não vale apenas por Cruz e Sousa. Tudo isso vale
por um retrato da opressão humana, por um retrato da capacidade de superação
do ser humano de qualquer opressão pelo talento, pela genialidade, pela
arte. Isso mostra quanto a arte é política - o que os políticos
pouco compreendem, infelizmente -, porque a arte alcança instâncias
que a política depois percorre com ações concretas. A arte
vai na frente e expressa dramas existenciais, pessoais, humanos, sociais, políticos,
espirituais, religiosos, esperanças, as mesmas que estão na política,
porque estão na profundidade do ser humano.
Por isso, homenagear Cruz e Sousa não é apenas homenagear esse
filho de Santa Catarina - estado maravilhoso -, esse negro formidável
- e não distingo o poeta por ele ser negro ou branco; eu o admiro por
poeta, porque não vejo diferenças entre as raças a ponto
de que se justifique uma exceção porque ele é negro, porque
negra é a cultura brasileira, mestiça é a cultura brasileira:
é a música, é a pintura, literatura. Somos o País
onde isso é a realidade de toda hora.
Cruz e Sousa é, portanto, a representação de muita coisa.
No meu plano pessoal é o poeta de toda a minha vida, desde menino. Está
para mim como Augusto dos Anjos está para o nosso querido Senador Ronaldo
Cunha Lima, um companheiro de horas de toda natureza e, sobretudo, de uma identificação
profunda com a sua capacidade de superação e a sua capacidade
de a tudo vencer pela arte.
Assim, Senhoras e Senhores Senadores, Senhores convidados, que fiquemos nesse
final de fala, num dia em que eu gostaria que o Senado fosse todo meu e que
as pessoas tivessem infinita paciência para que passasse horas e horas
a falar de Cruz e Sousa.
Leio um poema que diz do triunfo final de Cruz e Sousa, onde não há
conformismo, há uma profunda compreensão de tudo:
Assim seja!
Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu sentir latente.
Morre com a alma leal, clarividente,
Da crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus, brandido
Como um gládio soberbo e refulgente.
Vai abrindo sacrário por sacrário
Do teu Sonho no templo imaginário,
Na hora glacial da negra Morte imensa...
Morre com o teu Dever! Na alta confiança
De quem triunfou e sabe que desce
Desdenhando de toda a Recompensa!