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Maria Antonia Alonso de Andrade (2)
A ciência política não oferece, a nosso ver, instrumentos nem respostas satisfatórias para o que está por trás da conduta política. Questionários, escalas, estatísticas são instrumentos valiosos mas insuficientes para se aproximar da mente e dos corações dos homens, daquilo que eles realmente são, para vasculhar o vasto universo dos significados, do sentido.
O estudo das orientações-atitudes políticas, enquanto predisposições psicológicas para a ação, era o máximo que a ciência política nos oferecia como ponto de partida, pois só até aqui ela tinha caminhado. O conjunto de orientações-atitudes a respeito da política, ou seja a predisposição para agir politicamente de uma determinada maneira, define, até hoje, a chamada cultura política (Almond/Coleman, 1960- Almond/Powell, 1972- Almond/Verba, 1965- Pye/ Verba, 1972, Almond/Verba, 1980).
O conceito de cultura política se consolidou no meio acadêmico no fim da década de cinqüenta, a partir das pesquisas de um grupo de pioneiros da Universidade de Chicago, capitaneados por Almond e Verba. Apesar das críticas referentes à abordagem, ao método e à perspectiva considerada conservadora das pesquisas (3), o conceito de cultura política proposto consagrou-se como hegemônico e assim permaneceu, ignorando os avanços teórico-metodológicos posteriores das ciências sociais no campo do simbólico.
Propor uma redefinição do conceito de cultura política pela superação crítica do conceito vigente, com base nos referidos avanços no campo do simbólico, é o nosso objetivo neste texto. Este trabalho exige uma [fim da página 25] abordagem pluridisciplinar com o concurso teórico-metodológico da psicologia social, da sociologia e da antropologia.
A moderna psicologia social nos forneceu os instrumentos conceituais para superar a perspectiva atitudinal da cultura política. A partir da teoria de Moscovici as atitudes ficaram configuradas como uma dimensão de um fenômeno cognitivo mais profundo e complexo denominado representações sociais (RS). Daí propormos uma redefinição da cultura política com base nas RS e não nas atitudes.
Na concepção de Moscovici as RS são definidas como estruturas cognitivas específicas da sociedade contemporânea. Constituem uma forma de conhecimento primordial, socialmente elaborada e partilhada, que tem uma finalidade prática: conhecer e agir sobre o mundo atendendo às necessidades cotidianas. Este senso comum, se diferencia das outras formas de conhecimento, intelectual ou sensorial, por implicar uma relação específica entre o sujeito e o objeto de conhecimento: o sujeito se auto-representa na representação que faz do objeto, ou seja, o sujeito imprime sua identidade naquilo que representa (Moscovici,1976, Jodelet, 1984).
Representar um objeto significa criá-lo simbolicamente, fazer com que ele tenha um sentido para quem o representa, passando assim a fazer parte de seu mundo. Os objetos não são captados isoladamente pelos sujeitos, mas em determinados contextos e relações, portanto o sentido da representação de um objeto advém das relações com outras representações de outros objetos que formam um campo de representação (op.cit.). Como o campo de representação forma um sistema, a representação que um sujeito faz de um determinado objeto é um indício seguro da representação que tem de outros objetos e, conseqüentemente, de sua visão de mundo. Ao mesmo tempo, como reflete sua personalidade no que representa, a representação que faz do objeto é também um indício seguro sobre a sua própria identidade.
As representações são sociais porque são construídas socialmente, ou seja, surgem pela interação dos grupos sociais. Assim sendo, a estruturação do campo de representação, o seu sentido, depende da inserção dos indivíduos nos grupos sociais. Logo é possível estabelecer clivagens entre os grupos sociais a partir de suas representações em geral e de suas representações da política em particular.
Portanto a cultura política, redefinida, seria a estrutura das RS a respeito do mundo da política, ou seja, o campo de representação a respeito do universo da política.
As RS se expressam na comunicação e na conduta, mas sobretudo na comunicação e, preferencialmente na linguagem falada. Portanto a [fim da página 26] análise do discurso dos atores sociais emerge como a metodologia mais adequada para captar as RS.
O próprio Moscovici, na sua obra pioneira, La Psychanalyse son Image et son Public, já havia assinalado a necessidade de inovar metodologicamente no estudo das RS, superando a metodologia tradicional ligada as atitudes. Havia porém outro entrave teórico metodológico no veio teórico de Moscovici: desvendar a relação ideologia x RS, relação esta sempre omitida, insatisfatoriamente explicada ou ofuscada pelo "imperialismo" do conceito de ideologia (Jodelet,, 1987), que fez com que alguns, como Doise, considerassem as RS meros subsistemas da ideologia (Doise,1989, Doise/Palmonari, 1986).
Este impasse nos levou a fazer convergir, num trabalho cumulativo de conceitualização (no sentido em que esta cumulação é entendida por Bourdieu), as teorias sobre a identidade (Tap, 1979) e as teorias sobre ideologia que consideram o discurso como o locus privilegiado para seu estudo (Volochinov, Hall, Verón, Orlandi). As teorias sobre a identidade nos permitiram avançar nas propostas iniciais de Hall ( Hall, 1988) e sugerir que a polivalência intrínseca a qualquer discurso possibilita uma "leitura" seletiva do mesmo, em função da estrutura identitária do indivíduo num momento dado de sua vivência. Ou seja o discurso (e a ideologia que ele veicula) pode ser assimilado de várias formas, segundo atinja mais ou menos diretamente as diferentes identidades fracionárias (4) que estruturam a identidade do sujeito.
Os mecanismos representativos estão na base da seletividade com que os discursos são lidos, porque o próprio processo identitário é um processo representativo em que a construção do EU se vincula à estruturação do campo de representação mais amplo, que constitui nossa visão de mundo (Zavalloni, 1972, Penna, 1990).
Isto explica o porquê e como, a ideologia veiculada no discurso da classe dominante é metabolizada pelos dominados com diferentes graus de organização e complexidade. Se, por um lado a ideologia (5) é uma dimensão que marca o processo de estruturação do campo de representação, por outro lado o processo representativo remodela e reelabora todos os elementos e dimensões que nele incidem, inclusive a ideologia, reestruturando-os num novo produto diferente deles: o conhecimento de senso [fim da página 27] comum. Ou seja os mecanismos representativos são responsáveis pela remodelação e conseqüentemente pela difusão diferenciada da ideologia dominante entre indivíduos e grupos sociais. É através dos mecanismos representativos que simultaneamente apreendemos o mundo e partilhamos da ideologia dominante.
Enquanto processo cognitivo as RS fazem parte de um amplo processo discursivo de interpretação do mundo, que implica numa luta pelo poder simbólico (6).
Portanto o simbólico emerge como o campo de interação entre o processo ideológico e o processo representativo e a análise do discurso como o método mais adequado para o estudo desta interação.
A estruturação das RS depende da natureza das relações desenvolvidas entre os grupos sociais, assim como é nos grupos sociais, enquanto portadores de hegemonia (7), que se expressam as relações de classe e conseqüentemente as próprias classes sociais. É ao nível das relações entre os diversos grupos sociais que se processa, na prática, a luta de classes material e simbólica. Assim sendo, a análise do discurso dos atores sociais representativos da determinados grupos sociais emerge como a metodologia mais fecunda para o estudo dos fenômenos simbólicos, ou seja para captar as formas de interação entre o processo ideológico e o representativo. É portanto a metodologia mais adequada para o estudo aprofundado da cultura política, redefinida como as representações sociais do mundo da política, ou mais especificamente, como o campo de representação da política.
Aplicamos essa proposta teórico-metodológica no estudo da cultura política brasileira através da análise de discurso de indivíduos representativos de grupos sociais com diferentes graus de organização e participação política.
Além de aprofundar teoricamente o conceito de cultura política, procurávamos identificar os elementos da cultura brasileira que tendo historicamente um peso específico no espaço político, estruturam a cultura política nacional. Também tencionávamos verificar até que ponto esses elementos se ajustam ao paradigma democrático.
A análise da obra de expressivos intérpretes contemporâneos da cultura brasileira, revelou as grandes questões teóricas da cultura nacional [fim da página 28] relacionadas à política: o nacional/regional e a tradição/modernidade, dualidades em torno da identidade nacional, tendo como referência o paradigma democrático (Alonso de Andrade, 1996).
Dentre as análises de discurso, escolhemos a análise da enunciação a partir de entrevistas conversacionais presididas por uma postura não diretiva. A não diretividade cria uma atmosfera próxima da espontaneidade, por ocasião da interação entre entrevistador e entrevistado, proporcionando melhores condições na construção livre do discurso falado, locus preferencial de expressão das RS (Bardin,1979, D'Unrug, 1974, Thiollent, 1982, Michelat, 1975, Maingueneau, 1981)
Pretendíamos captar a significação da política para esses grupos sociais e a apreensão do sentido da política para aqueles sujeitos através de suas representações.
Os grupos escolhidos (proprietários rurais, agricultores, sindicalistas rurais e urbanos, empresários e profissionais liberais) refletem a realidade socio-econômica fundamental da Paraíba e a projeção de seu futuro. Entre alguns destes grupos se estabelecem as principais clivagens sociais e os mais graves conflitos, como a luta pela posse e uso da terra.
Usualmente a frase geradora, que da início à interlocução das entrevistas, indaga sobre o objeto da representação. Nossa estratégia foi diferente. Lembrando da propriedade específica das RS, ou seja, que o sujeito se representa no objeto de sua representação, estimulamos as pessoas a falarem de si (Como você acha que os outros lhe vêem?. Como você se vê?), pois com as respectivas auto-representações esperávamos obter uma determinada visão de mundo e a forma como nele se vêem inseridas, visão esta necessariamente política, pois mesmo o apoliticismo é uma forma política de ser. A estratégia teve certas vantagens metodológicas: reforçou a não diretividade, dando oportunidade aos nossos interlocutores de situar-se espontaneamente no tema, ajudou a superar a desconfiança dos agricultores perante alguém suspeito de ser amigo do patrão e produziu um efeito desnorteador sobre aquelas pessoas que conheciam nossa identidade de pesquisadora, estando prevenidas sobre o nosso possível interesse.
Os resultados foram satisfatórios. Muitas vezes, as grandes temáticas da cultura brasileira foram abordadas espontaneamente, tornando desnecessária uma intervenção direcionada.
A apreensão do significado da política nos grupos sociais escolhidos foi possível através de exaustiva análise das interrelações que compõem o campo de representações em torno do mundo da política. Um enorme fosso qualitativo separa os resultados assim obtidos daqueles [fim da página 29] egressos de questionários aplicados a amostras populacionais que captam apenas o nível do aparente, do manifesto, onde o enunciado é dado como expressão da verdade. Essas pesquisas revelam apenas tendências circunstanciadas que podem mudar sob acontecimentos sociais de impacto. O que a nossa análise revelou foi o processo de estruturação das representações sobre o mundo da política e sua ligação com a identidade dos sujeitos, ou seja, a íntima relação entre o que os sujeitos são e o que os sujeitos pensam, o sentido que a política tem dentro de uma mais ampla visão de mundo, segundo a forma como os sujeitos se vêem inseridos nesse mundo. Revelou também quais são as representações estruturantes da cultura política dos grupos sociais, ou seja, as grandes questões, os principais parâmetros que estão na base da construção simbólica do mundo da política e a forma como se processa esta construção. Podemos afirmar que a metodologia adotada proporciona resultados mais sólidos, de mais longa validade, extremamente úteis como subsídios para as políticas públicas, para os partidos, grupos de pressão e movimentos sociais.
Algumas das conclusões mais relevantes mostradas pela pesquisa merecem destaque:
1. Em todos os grupos e subgrupos, ao representar a própria identidade, os nossos interlocutores estruturaram uma visão política do mundo e da forma como nele se vêem inseridos.
Os sindicalistas se vêem como trabalhadores em luta pela construção da cidadania brasileira, como atores políticos, como construtores da modernidade. Diferenciam-se dos outros subgrupos por partilharem unanimemente uma concepção da política, como o espaço do público, do comunitário, e uma atitude positiva a respeito, que enfatiza mais a participação política no sentido amplo - partidária, sindical, dos movimentos sociais - do que as mazelas da vida pública brasileira. A política é vista como uma atividade nobre, cujo espaço é aquele da luta em prol da classe trabalhadora, ou seja, em prol das mudanças modernizadoras necessárias à construção da cidadania, o que eqüivale à construção da própria nacionalidade. Possuem uma visão ética da política, ou seja, percebem o bem comum, entendido como a construção coletiva da justiça social, como a finalidade da política. Isto contrasta com a visão dos outros grupos que representam a política como um espaço de relações e interesses privados, familiares, de amizade ou compadrio. Nos outros grupos há também um predomínio de atitudes negativas a respeito da política, permeadas de cinismo ou desencanto. Nestes o patrimonialismo é considerado a essência da cultura política nacional, uma espécie de vício constitutivo de origem ( ou "das origens "), considerado insuperável ou de muito difícil superação, [fim da página 30] com as suas seqüelas de personalismo, familismo, relações de clientela e corrupção.
Os sindicalistas, embora constatem a existência daquelas mazelas, são muito mais confiantes na capacidade renovadora da sociedade civil organizada e especificamente da classe trabalhadora organizada.
Os grandes e médios proprietários rurais, dadas as velhas raízes familiares, se vêem não apenas como atores sociais mas como os verdadeiros protagonistas da história regional e nacional. O fato dos empresários serem membros de uma nova elite cujos negócios cresceram em grande parte à sombra do Estado, se espelha ao nível do simbólico ao se representarem como empresários com diversos graus de vinculação à esfera pública. Para eles a política é uma mediação necessária, para os grandes/médios proprietários, ela é um componente identitário.
Os pequenos proprietários e os profissionais liberais atestam seu descompromisso político ao se definirem como trabalhadores voltados para a sua vida privada. Partilham uma mesma visão ética da sociedade em que o trabalho e a honestidade são essenciais, configurando a política como o espaço onde inexistem estes valores, portanto como um espaço a ser evitado. Os profissionais liberais desprezam a política e os pequenos proprietários não só a desprezam como a temem.
A identidade dos agricultores sertanejos estrutura-se como o avesso da identidade do patrão, a política pertence ao mundo dos patrões e dos políticos com quem aqueles se vinculam, não se considerando portanto estes sujeitos como atores políticos.
2. Os grupos pesquisados podem ser agrupados segundo as suas afinidades simbólicas. As maiores afinidades acontecem entre os grupos sociais pertencentes à mesma camada social e com o mesmo grau de participação e organização política, e não segundo o pertencimento às áreas rurais ou urbanas ou as diferentes micro-regiões como o litoral ou o sertão. Isto sugere a hipótese de que, no Brasil, as diferenças regionais de cultura política podem ser menos substanciais do que as diferenças encontradas entre as camadas sociais. Mesmo as representações sobre o próprio NE são extremamente diversificadas, e a concepção que fazia da cultura nordestina uma das matrizes da identidade nacional parece estar se esgotando, pois a questão nordestina é vista como um problema econômico ou sócio-político.
O campo de representações dos empresários e dos médios e grandes proprietários rurais revela uma ideologia conservadora do status quo, cujas concepções sobre a modernidade e a identidade nacional/regional, [fim da página 31] típicas das camadas dominantes, são perfeitamente conciliáveis, o que as mantém como potenciais aliadas políticas.
Os pequenos proprietários rurais e os profissionais liberais revelaram-se, ao nível do simbólico, como segmentos de uma camada média da sociedade. Sua visão de mundo partilha muitas das idéias essenciais da classe dominante, de quem, ideologicamente muito mais do que materialmente, estão consideravelmente mais próximas do que dos trabalhadores. Colocam-se portanto a uma prudente distância das camadas populares com quem não se sentem identificadas, constituindo-se em aliadas potenciais da classe dominante.
Pela sua concepção de política, pelo papel nela atribuído à classe trabalhadora, pela concepção de modernidade como uma mudança em favor das camadas populares, a ideologia que permeia as representações dos sindicalistas é predominantemente progressista, embora, no discurso de alguns indivíduos, ela esteja comprometida por alguns elementos conservadores e até retrógrados, como a concepção instrumental da democracia, a preferência por uma ditadura de resultados ou atitudes vanguardistas associadas a uma representação negativa do povo brasileiro.
Simbolicamente os sindicalistas opõem-se à visão de mundo das elites, dos patrões - representados pelos empresários e pelos médios e grandes proprietários - e das camadas médias, próximas simbolicamente das elites. Porém o fato de partilhar com a elite certos estereótipos e concepções autoritárias evidencia como a ideologia dominante permeia em diferentes graus de intensidade e complexidade, e sob formas diferentes, todas as camadas e categorias sociais, inclusive aquelas que contra ela se insurgem.
Sindicalistas e patrões possuem uma cultura política de participação, que supõe o ativismo político, embora nem sempre signifique uma introjeção da democracia como valor. Os profissionais liberais e os pequenos proprietários, típicos representantes das camadas médias, possuem uma cultura política pouco participativa marcada pela apatia e pelo desencanto.
Os agricultores sertanejos possuem uma cultura política de alienação, devido ao isolamento material e à conseqüente armadilha simbólica que os aprisiona num mundo de significantes pertencentes à tradição.
3. A participação e organização política não vem associada a uma cultura política democrática: o balanço a respeito do paradigma democrático é negativo em todos os subgrupos embora por razões diferentes. [fim da página 32]
Alguns sindicalistas são partidários de uma ditadura de resultados e a maioria deles, assim como os grandes e médios proprietários rurais, possuem uma concepção instrumental da democracia. Empresários e sindicalistas têm uma visão redutora da democracia: os primeiros superdimensionam o valor da liberdade em detrimento de outros valores democráticos como a justiça social, e os segundos superdimensionam a justiça social em detrimento da liberdade e do pluralismo. Os profissionais liberais, dado seu individualismo, subestimam as instituições democráticas, ignoram a necessidade de participação e organização políticas, declarando-se apolíticos ou utilizando a absorção do tempo pelo trabalho como álibi. Os pequenos proprietários consideram a democracia como um referencial utópico, espécie de modelo político ideal, inexistente na prática e inadequado para a realidade brasileira. A democracia é sinônimo de liberdade outorgada, que nem todo brasileiro está apto a usufruir. Ela é portanto uma ameaça à governabilidade e à estabilidade social. Para os agricultores sertanejos a democracia é uma vaga noção do mundo político dos patrões, sem existência real, que relacionam com a modernidade: a democracia não existe porque não houve mudanças, já que os pobres continuam na miséria.
A concepção instrumental da democracia é tão perigosa quanto a alienação dos trabalhadores sertanejos, o individualismo e o amorfismo dos profissionais liberais, o temor dos pequenos proprietários, o saudosismo da ditadura dos médios e grandes proprietários ou a falta de convicção democrática dos empresários. Em todos estes casos se configuram possibilidades que vão de uma aceitação passiva da ditadura a uma clara opção pelo autoritarismo.
4. A análise mostra ainda que, mesmo a questão nacional sendo uma questão inconclusa, a modernidade se perfila como o novo conceito "inclusivo" (Lippi, 1990 a, 1990 b), que polariza e sintetiza as outras temáticas da cultura política nacional. Porém, diferentemente do que esperávamos, as representações de modernidade dos grupos vinculados às camadas populares são extremamente diversificadas e mesmo quando se reportam a uma transformação cultural, nem sempre se vinculam ao paradigma democrático. Já entre as RS dos patrões, como previsto, há um predomínio da razão instrumental, a modernidade eqüivale a simples progresso material e não é vinculada ao paradigma democrático
No que diz respeito à representação de modernidade, nossos interlocutores se dividem em três grupos. Há maior afinidade entre os empresários, os profissionais liberais e uma parcela do sindicalismo urbano [fim da página 33] de um lado e entre os proprietários rurais de outro. O grande divisor de águas é a aceitação ou não do neo-liberalismo como modelo modernizador básico. Mas os que defendem o neo-liberalismo como via modernizadora o fazem por diferentes razões, com base em valores diferentes, correspondentes a diversas concepções de mundo. Para os profissionais liberais, a via neo-liberal é simplesmente mais condizente com o individualismo que caracteriza sua visão de mundo, segundo a qual o ideal de self-made-man é perfeitamente viável e a modernidade pode ser alcançada pela simples soma dos esforços individuais. Os sindicalistas urbanos não priorizam, como os empresários, o valor da liberdade como valor supremo, mas a justiça social, colocando dois limites à privatização e à liberdade de mercado: os setores economicamente estratégicos e o controle do capital externo.
Formando um terceiro bloco, existe afinidade entre os trabalhadores rurais (incluidos os sindicalistas) e uma parcela dos sindicalistas urbanos que adota o socialismo cubano como modelo modernizante.
Há sempre uma associação entre a crença no neo-liberalismo como via modernizadora e a identificação da modernidade com uma sociedade de elevado nível de bem-estar social. As soluções estatizantes e redistributivas associam-se sempre a uma concepção de modernidade como patamar nacional mínimo de bem - estar social.
Coerentemente com o balanço negativo a respeito da democracia, a falta de embasamento democrático das concepções sobre modernização é generalizada em todos os subgrupos. Aposta-se mais nas soluções personalistas ou de força do que na participação da sociedade civil organizada. Acredita-se mais nas leis do mercado do que nos valores democráticos. A defesa do modelo socialista é romântica ou imprecisa e em geral vem associada a uma concepção instrumental da democracia.
Às vezes, o próprio deslocamento simbólico, que faz da modernidade um novo conceito inclusivo, a pesar de não haver sido resolvida satisfatoriamente a questão da identidade nacional, é mais um indício da falta de maturação das convicções democráticas. É que, na realidade, tenta-se fazer da modernidade um véu ideológico que disfarce a grande questão nacional inconclusa. Assim, quando a meta modernizadora é o crescimento econômico, seja pelo intervencionismo estatal moderado ou pela liberdade de mercado, escamoteiam-se ou deixam-se em segundo plano as gritantes diferenças sociais.
Se modernidade e democracia são dois processos dinâmicos e interativos, ou seja, se modernização e democracia se constroem juntas ou não se constroem (Touraine, 1994), se por modernidade entendemos a [fim da página 34] forma contemporânea de atualização da democracia, se por democracia entendemos a procura de um mundo cada vez melhor com a participação de todos e se, finalmente, concebemos o regime democrático como aquele regime político que permite aos atores sociais formarem-se e agirem livremente, temos que concluir que as concepções de modernidade dos subgrupos considerados correspondem a uma anti-modernidade, pelo esvaziamento dos valores democráticos e/ou pela racionalidade meramente instrumental que elas supõem.
Os resultados da nossa pesquisa levam a conclusões menos otimistas do que aquelas da última grande pesquisa sobre a cultura política nacional (Moisés/Venturi, 1990). Os resultados dessa pesquisa foram interpretados num crescendo de otimismo a medida que as análises iam se aprofundando e tornando-se cada vez mais sofisticadas. Num primeiro momento foi detectado um aparente crescimento do "sentimento democrático" do eleitorado, embora se constatasse também o sentimento de que as instituições políticas do país funcionam mal e são ineficientes. Isto, segundo a primeira apreciação dos autores, acarretaria "um forte solapamento das crenças da população no regime democrático" (op. cit.p.30). Em publicações posteriores (8) interpretaram que no Brasil estaria se formando progressivamente um "consenso democrático semi-majoritário", ainda relativamente frágil se comparado ao de países de mais longa tradição democrática. O importante não seria o índice objetivo de consenso/dissenso democrático da massas, mas a tendência atitudinal - no sentido de quebrar a tradição política anti-democrática - considerada como potencial estabilizador e consolidador da democracia ( Moisés, 1994). O sentimento de ineficiência das instituições políticas e a clara rejeição a atuação dos políticos passaram a ser vistos não mais como um "solapamento" das crenças da população no regime democrático mas como indícios da emergência de uma cultura democrática e de "cálculo racional no comportamento eleitoral" (Moisés, 1990 b). Em suma aqueles sentimentos negativos, sobre o funcionamento das instituições e sobre a atuação dos políticos, indicariam o "desencanto" com o desempenho do primeiro governo civil após o regime militar e não com o regime democrático em si (op.cit.).
Como várias pesquisas apontaram, está em andamento no Brasil um processo de construção e consolidação da democracia. O que a nossa pesquisa mostra é a forma como os arcaísmos remanescentes do oligarquismo [fim da página 35] privatista se articulam ao nível do simbólico, fragilizando a estruturação de uma identidade essencialmente democrática.
Nossa metodologia, que ultrapassa o nível do manifesto, permite uma análise mais profunda e matizada das atitudes e concepções sobre a democracia e de todas as questões relacionadas com a cultura política dos grupos sociais, permitindo ponderar os resultados das pesquisas baseadas em análises estatísticas e amostras populacionais. Ela não substitui aquelas pesquisas, (mesmo porque só é apropriada para pequenas "amostras"), mas constitui uma análise complementar ao nível das significações.
Certamente os resultados obtidos nas pesquisas com amostras populacionais, confrontados com uma análise que atingisse de forma mais profunda o nível do simbólico, gerariam interpretações ainda mais ponderadas. Basta examinar a diferença que se verificaria na nossa própria pesquisa se, em lugar de utilizar a análise da enunciação, tivéssemos realizado uma análise de conteúdo das entrevistas.
Apesar das tendências democratizantes, uma sociedade com as características apontadas está ainda exposta à alternância entre os períodos relativamente democráticos e as ditaduras.
É verdade que só uma sociedade renovada pode gerar novos homens, mas a nova sociedade só terá consistência na medida em que os princípios que a norteiam e as bases que lhe dão fundamento forem introjetados e aceitos pelos homens que a formam, na medida em que se sintam parte viva desta sociedade.
A pregação política só surte efeito quando suas idéias são inseridas, assimiladas, acomodadas no seio do campo de representação do indivíduo. É este o processo que explica o convencimento de que falava Gramsci, que supõe um imbricamento entre o processo ideológico e o representativo e tem sua base material na vivência cotidiana. Só este processo simbólico, ao mesmo tempo íntimo e social, explica a transformação individual e a mudança social.
Portanto só a educação cívica (9) e a prática política cotidiana podem construir uma sociedade essencialmente democrática.
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Notas
1) Este texto explicita o objeto principal da nossa tese de doutorado (Alonso de Andrade, 1995), que consistia numa redefinição do conceito de cultura política. Apresentaremos alguns dos principais resultados da pesquisa realizada com seis grupos sociais na Paraíba.
2) Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba
3) Ver, por exemplo, Cot / Mounier, 1974 , Alonso Pascual,1976 e Laitin, 1995.
4) A expressão é de Benassar. Outros autores como Abric e Zavalloni referem-se às diversas "facetas" da identidade, denominando-as "nódulos" (noeuds) identitários (Benassar, 1979, Abric, 1989, Zavalloni, 1972).
5) Por ideologia entendemos o processo de produção da concepção hegemônica de mundo numa determinada sociedade. Concepção esta que não se difunde de forma homogênea, pois é assimilada e re-elaborada com diversos graus de intensidade e complexidade pelos diversos grupos sociais
6) Os limites deste artigo não permitem comparar o conceito de RS com as noções de "habitus"de Bourdieu e de "mentalidade"de Vovelle, nem inserir a crítica que fazemos a estas noções. Ver Alonso de Andrade, 1995 e 1995b.
7) A expressão é de Bobbio. Touraine, Frank e Fuentes também partilham esta interpretação da relação entre os grupos e as classes sociais ( Bobbio, 1982, Touraine, 1982, Frank /Fuentes, 1989).
8) Publicações referentes à pesquisa "Cultura política e consolidação democrática" desenvolvida pelos pesquisadores do CEDEC
9) Uma educação para a reconstrução da política como o espaço da "polis", do comunitário, do social, do que é do interesse de todos.