WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, 439 p.
O objetivo da obra é apontar e analisar as diferenças, numa perspectiva histórica, da interrelação entre campo e cidade. O cenário é a Inglaterra do século XV ao século XX, considerada como representativa da dinâmica das transformações de atitudes, comportamentos e costumes ocorridas nesses dois mundos. A metodologia utilizada foi, principalmente, a análise da literatura que remete às épocas.
O significado das palavras campo e cidade é importante na vida das comunidades humanas. A ligação entre elas sempre foi evidente na história, porquanto é da terra que é retirada a sobrevivência, enquanto a cidade é uma das grandes realizações da sociedade humana. Ao campo foi associada uma forma natural de vida. À cidade a idéia de realizações. Esse contraste vem da Antigüidade clássica, embora a realidade histórica seja variada. Recuando ao passado, indo ao século III a.C., busca explicar a gênese do bucolismo, presente na vida campestre dos séculos XV e XVI. O bucolismo literário tem origem em concursos de canto em comunidades locais de camponeses, que conviviam com a possibilidade de miséria, diante das variações climáticas. Já no século I a.C., o bucólico aparece nas canções que traduzem as esperanças e os medos dos agricultores que vêem suas terras ameaçadas pelo confisco, principalmente, pelas alterações que acontecem com a chegada de forasteiros, pelas guerras e pelo caos político, que ameaçam a estabilidade rural.
As transformações ocorrem no decorrer dos séculos. O homem do campo, representante de um mundo ideal, onde inexistiam tensões vai, aos poucos, tomando outras formas. Mesmo na literatura, as críticas à essa visão idílica do bucolismo clássico são recorrentes. A tendência é mostrar a vida rural com as suas adversidades - o campo como refúgio, um mundo de paz e delícias é aos poucos abandonado. No século XV a idéia original passa também por tansformações. Há um culto à natureza, à beleza natural vista, agora, com outros olhos: os dos cientistas e dos turistas. Portanto, a natureza observada e não a natureza trabalhada pelo camponês. Às canções e poesias que retratavam a vida camponesa, junta-se o teatro e o romance. A terra passa a ser lazer para a aristocracia. O pastor é representado, no teatro, [fim da página 179] como fantoche. É idealizado de forma a atender os interesses da aristocracia que reduziu as atividades rurais a formas que pudessem diverti-la. Mas, a descrição do homem rural dessa forma, não é suficiente para caracterizar a transição entre o mundo feudal e a emergência de um mundo burguês O importante é a transformação interna ocorrida nessa fase de mudança, que leva ao capitalismo agrário. Entretanto, essa descrição não é o fato mais importante na transição entre o mundo feudal e a emergência de um mundo burguês. O mais importante é a transformação interna ocorrida, em defesa do surgimento de uma nova sociedade.
O neobucólico como entretenimento palaciano é uma coisa; outra é o neobucólico em sua nova localização, a mansão senhorial e a propriedade rural que acontece no contexto de uma nova ideologia. Tem início a expulsão do camponês das suas terras, que passa agora a trabalhar para a aristocracia. O pastor passa a ser apenas o representante da vida e dos sentimentos naturais. O campo passa a ser lugar de lazer. A abundância da natureza começa a adquirir uma nova dimensão social: o aumento da propriedade, uma nova realidade econômica. No final do século XVII e início do XVIII, acontece uma idealização da realidade da vida campestre e suas relações econômicas e sociais. A Revolução Industrial, no século XVIII, aprofunda essas transformações, baseadas num capitalismo agrário, que se encaminha no sentido de um "desenvolvimento" generalizado.
A transição dessas épocas, segundo o autor, não fica muito clara nos poemas. As transformações não ocorrem de forma linear por toda a Inglaterra. Por algum tempo, as duas formas - feudal e pré-capitalista - coexistem, gerando um conflito de valores; as relações passam a ser investidas de uma ordem impiedosa baseada no dinheiro. Alguns intelectuais se interpõem tentando preservar o ambiente natural, apegados à vida e aos sentimentos rurais tradicionais. Outros, urbanos, viam o camponês como o matuto, o caipira, o ignorante. Para os intelectuais socialistas, a substituição do capitalismo pelo socialismo, seria o meio de conter a natureza, como se a exploração dos recursos naturais pudesse estar desvinculada da exploração do homem.
O ideal de uma economia "natural" ou "ética"- que contrasta com a investida impiedosa do capitalismo -, sugere que nela nada havia de natural ou ético. A ordem social em que se [fim da página 180] praticava essa agricultura era tão dura e brutal como qualquer outra que a tenha sucedido. A história da Grã-Bretanha mostra que os homens, ao longo do tempo, vinham desmatando a terra para fundar povoados, travando uma luta direta com a natureza.
Como ficamos então, pergunta o autor. Com essa ordem que desapareceu ou com a nova (capitalista) que vai dando origem a novas formações e que, formalmente, tem início com a peste negra quando, em alguns anos, um milhão de pessoas morreram e povoados são abandonados? A pressão do homem sobre a terra cultivada diminui; as cidades crescem; as matas são derrubadas para a obtenção de madeira para a construção e a abertura de pastos. O comércio com a lã se expande. Surge o proprietário rural capitalista.
A história dos interesses dominantes, desde o séc. XVI, é a do progresso e realizações. Mas, para a maioria dos homens, é a história da substituição de uma forma de dominação por outra. O ideal de estabilidade, decorrente de um passado ordenado, servia para encobrir e evitar as duras contradições da época. Entretanto, a estrutura de sentimentos que resulta daí é o contraste entre o campo (natureza) e a cidade (mundanismo). Porém, há outros elementos envolvidos, como os meios de produção agrícola (campos, bosques, plantações etc). O campo do agricultor é um e do capitalista é outro. As virtudes rurais são apenas lembranças:
Quando a transição ocorreu, a sociedade estava baseada na propriedade da terra e na produção rural a ela associadas e as cidades, inclusive a capital, estavam funcionalmente relacionadas a essa ordem dominante. O lucro mercantil afetava justamente essa relação. O contraste entre o gentil-homem rural e o mundano-homem da cidade era visível.
À medida que ganha importância a ordem urbana fundamentada no dinheiro, para onde vai o novo capital, senão de volta para o campo, a fim de retroalimentar a exploração? A exploração do homem e da natureza se concretiza na cidade.
A história da Inglaterra sempre esteve calcada na propriedade fundiária e nas relações sociais e trabalhistas que delas resultavam. No século XVIII, a terra estava nas mãos de poucos. As relações se baseavam, então, num capitalismo agrário, com arrendatários e trabalhadores assalariados. Cada vez mais a produção era regulada por um mercado organizado. O campesinato tradicional não mais existia. [fim da página 181]
As relações sociais decorrentes dessa estrutura, onde a aristocracia dava as ordens, se baseavam no controle da terra e na extorsão do proletariado rural. Entretanto, o confronto entre esses dois segmentos sociais nunca ocorreu. Entre eles havia uma hierarquia cada vez mais estratificada de pequenos proprietários, grandes arrendatários, artesãos e aqueles pequenos proprietários que tinham a posse da terra, dada pelo senhor feudal e que não podia ser revogada..
A melhoria das terras aráveis levou ao desaparecimento das pequenas propriedades, que deixaram de ser vistas como herança que gerava renda, passando a ser encaradas como possibilidades de investimentos. Essa transformação e organização da terra - ideologia do melhoramento - tornou-se dominante. Há uma crise de valor. A honra, a lealdade, a moral, são vinculadas à noção de preço, de mercado. São relações mercantilistas. Há um contraste entre o melhoramento da terra e as conseqüências sociais desse processo, representadas pela presença dos expropriados que não se enquadravam nos novos modelos econômicos.
Um nova versão social sobre a paz e as virtudes perdidas da vida rural se encontra nas contradições da Inglaterra do século XVIII. Os melhoramentos da terra geram um aumento da produção e da exportação de cereais. É algo importante. Por outro lado, há denúncias sobre a ostentação e o luxo da cidade. Há um mundo de diferenças entre o campo e a cidade, um contraste histórico.
Do final do século XVIII, eclosão da Revolução Industrial, aos meados do século XIX, é apresentada uma nova situação. O Parlamento ordena o cercamento de terras, visto como o causador da destruição total de uma comunidade rural tradicional, com graves e contraditórias conseqüências sócio-ecônomicas. É oficializada uma situação que já vinha ocorrendo desde o século XIII e que teve seu clímax nos séculos XV e XVI.
Entretanto, é ilusória a idéia de que o capitalismo não é o verdadeiro causador dos problemas, com as transformações de uma sociedade rural em urbana e industrializada. É certo que no séc. XVII já havia homens sem terra. O sentido do campesinato já havia mudado. Esse processo de cercamento completa a pressão econômica exercida sobre os pequenos proprietários e pequenos arrendatários. Assim, não há argumentos suficientes para dizer que houve a expropriação de um campesinato no final [fim da página 182] do século XVIII. O que na verdade aconteceu, foi a imposição de um sistema social capitalista, representado pelos confiscos legalizados, realizados pela classe dominante. Isso foi decisivo.
A Revolução Industrial é importante, embora não caracterize a mudança de uma ordem econômica para outra. As transformações já vinham ocorrendo. É bem verdade que aumenta o fluxo de trabalhadores sem terra em direção às novas cidades industriais, mas o crescimento da classe trabalhadora se deve, também, ao crescimento populacional, como parte do processo de modernização da cidade e ao aumento da produção agrícola (principalmente cereais e carne).
As relações entre o campo e a cidade se tornam críticas. Antes a Inglaterra rural estava exposta à penetração recente das relações sociais capitalistas e ao mercado que vinham se tornando crescentes. A sociedade capitalista se organiza. A crise envolve o campo e a cidade. Há uma crescente concentração de poder nas mãos dos proprietários de terras e à medida que estes se tornam cada vez mais representantes de um sistema e de interesses nacionais, se tornam também, classe política.
A idéia de aldeia rural clássica (antes dos cercamentos) dá lugar à de comunidade, agora não mais no sentido da união pela agricultura, da cooperação, mas com a aquisição de direitos legais - reconhecimento dos sindicatos e a possibilidade de participação nas novas instituições democráticas e representativas que se instauram. A consciência de classe se forma, assim como a união contra a humilhação sistemática dos trabalhadores e pobres, pelos que habitavam as mansões senhoriais, que foram construídas à base da expoliação desses trabalhadores. Apesar dessa situação, há locais que escaparam da presença dessas mansões e ficaram afastados dessa visão. São comunidades que mantêm uma estrutura tradicional e que ainda conseguem se relacionar com o vizinho sem se identificar com as classes às quais pertencem (artesãos e pequenos proprietários).
A literatura desse período demonstra várias perspectivas de explicação para essa situação de mudanças. As visões do campo se diferenciam e se confundem.
Por outro lado, por todo o século XVIII e início do século XIX, as transformações ocorrem, também, na cidade. Há um rápido processo de expansão modificando a paisagem, que deixa de ser bucólica e se transforma num amontoado de tijolos. Um novo tipo de sociedade surge. Em Londres o tradicional e o [fim da página 183] novo se confundem. A cidade fervilha. O comércio se expande, surgem grandes construções. A cidade era o símbolo do progresso, das luzes (no sentido da marcha da humanidade em direção à liberdade). Era a civilização.
Entretanto, esse progresso traz contradições. A classe dominante, na tentativa de usufruir das transformações que ela mesma promovia, procura refrear o progresso, impedir o avanço das construções. Leis e decretos são aprovados nesse sentido. A tentativa era de impedir a entrada de pobres na cidade, vítimas dessa economia que se transformava. Conseqüência inevitável do processo.
A literatura expressava, via de regra, uma forma de vivenciar a cidade que se tornaria dominante. Falava da perda da identidade e da sociedade, substituída por novas imagens. E, então, não há mais regras.
Várias formas de interpretar a cidade foram surgindo, enaltecendo a claridade da manhã, o silêncio e a beleza. A população crescia. Entretanto, essas imagens vieram antes da fumaça. As cidades industriais, pós Revolução Industrial, embora ainda emergentes, anunciavam o novo caráter de cidade e as novas relações entre elas e o campo. As atitudes e comportamentos das pessoas se transformam.
No início do século XIX, a Inglaterra rural não é mais a mesma. As forças decisivas da economia se concentram no desenvolvimento industrial e financeiro. Em uma ordem capitalista, o aumento da produção, o desemprego e a miséria coexistem. Aos trabalhadores sem terra vinham se juntar os pequenos arrendatários que perdiam suas terras pelo prolongado processo de concentração de propriedades e a exorbitância dos aluguéis.
Em 1830 é criada a Lei de Assistência. Tornar pobres e dependentes milhares de homens e depois lhes oferecer ajuda pode parecer uma atitude humanitária. Entretanto, o objetivo não era esse. Os proprietários exigiam dependência, sócio-política e econômica. Paralelamente começam a dar maior importância às leis que regulamentavam a caça. Os homens que tiravam seu sustento da terra viam , agora, os animais selvagens "preservados" como "reserva de caça". Foram transformados em criminosos, ladrões e marginais por caçarem clandestinamente. Os proprietários, nessa mesma época, criam seus elaborados ritos de tiro e caça. Essa história é um elemento central da luta de classes na sociedade rural desse século.
No decorrer do século XIX, o poder político dos proprietários diminui (a agricultura [fim da página 184] passa a ter papel secundário na economia). Ao mesmo tempo a estrutura social rural se isola cada vez mais do país como um todo. Entretanto, não havia contraste entre os industriais capitalistas e os proprietários rurais porque estes, desde o século XVIII, estavam envolvidos com outras atividades que geravam renda - títulos de governo, ações de bancos, aluguéis, minas, pedreiras, fundições etc. Isso impediu a criação de um abismo entre eles.
A crise social da Inglaterra do século XIX tinha seus aspectos específicos e suas questões específicas no meio rural. Entretanto, a crise era geral, devido às intrincadas interconexões entre a propriedade rural e a propriedade urbana.
Os poemas que antes deixavam transparecer alegria vão, aos poucos traduzindo angústia, solidão, tristeza e melancolia sobre a vida rural e a vida urbana.
A literatura do século XX exprime formas diversificadas de se ver o homem da Inglaterra rural do passado. Dessas formas, as mais representativas são as que falam das memórias, das observações e das descrições da vida rural, muitas delas dominadas pela consciência do desaparecimento do passado e aquelas que destacam a utilização e a destruição da terra, as relações com um mundo natural ameaçado e as condições de um ambiente humano vinculado ao capital.
Embora a cidade tenha se tornado o centro das atividades econômicas e sociais, o campo ainda representa uma realidade presente e atuante na Inglaterra. Mas, a verdadeira população campesina - o homem natural - é minoria e a agricultura ocupa uma posição econômica marginal. Os homens vão para o campo para se livrar das tensões da cidade. Londres hoje é uma metrópole e, como tal, uma comunidade planejada. As cidades menores, em sua maioria, sobrevivem, mas seus centros foramreorganizados - os subúrbios dissolveram-se, fundindo-se com o campo.
As grandes cidades industriais da sociedade moderna, como centros de poder político, econômico e cultural, contrastam com aquelas que se mantêm em bases agrícolas ou subindustriais. Estas são, nesse sentido, modelo para o mundo.
ECOLOGIA E SOCIEDADE
Laís M. Cardia (1)
1) Professora da Universidade Federal do Acre. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.