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Política e Trabalho 12 - Setembro / 1996 - pp. 126-138


MEMÓRIA, TEMPO, NARRATIVAS

Brasília Carlos Ferreira (1)


As pessoas comuns lembram-se dos
grandes fatos, diferentemente dos seus
superiores, de como os historiadores podem
provar que aconteceu e na medida em que
transformam memória em mito.

Eric Hobsbawm

Todos os inícios contêm um elemento de recordação.
Paul Connerton


Este texto nasceu da utilização de entrevistas em nossas pesquisas. A análise do material resultante das entrevistas chamou a atenção para a questão da memória e a diversidade de disjunções com que ela se apresenta: Memória e História, Memória e Identidade, Memória e Tempo, Memória e Linguagem, Memória e Poder, Memória e Experiência. Memórias...

A etimologia da memória, expressa tanto o fato da recordação, lembranças, reminiscências, como o ato de narrar, referir, relatar. A memória é a memória e seu avesso. Ela não é apenas a lembrança, uma faculdade psíquica, ela é a um só tempo, a lembrança e seu relato. A narrativa do que é memorado.

Mnemosyne, para os gregos a deusa memória, protetora das artes e da história concedia aos poetas o poder de voltar ao passado e lembrá-lo para a coletividade. Musa da poesia épica, a deusa da reminiscência conferia imortalidade aos mortais. O humano que tivesse registrado em obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras nunca seria esquecido, porque tornando-se memorável não morreria jamais (Chauí, 1994:126). A sobrevivência dos poemas da antigüidade clássica, as grandes narrativas épicas, até nossos dias, atestam o vaticínio da deusa.

A literatura é a filha dileta da memória. E é na literatura onde a reflexão sobre a memória e sua ação se apresenta consubstanciada em sua forma mais pura. Acompanhar Proust passo a passo, gesto a gesto, detalhe a detalhe nos saraus dos Germantes, nos faz compartilhar a madeleine [fim da página 126] proustiana com a mesma intimidade com que nos sentamos em volta da mesa para um café com tapioca, na casa de uma tia velha, nas tardes interioranas das cidades de nossa infância.

Nas Cidades Invisíveis de Calvino, o relato do veneziano Marco Polo ao rei tártaro Kublai Kan sobre cidades visitadas em suas missões, expressa a aura de suave melancolia que envolve a memória. Assim, Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações. A Quase-Memória de Cony nos encanta pela nostálgica viagem em um trem que desliza pelos trilhos delicados de uma memória-afeto.

A memória é a primeira e mais fundamental experiência do tempo. Representa a capacidade humana de reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total (Chauí, 1994:125), através do resgate no tempo presente de referências situadas no tempo passado. Por isso, Benjamin ao refletir sobre a ausência de intercâmbio de experiências no mundo moderno pergunta qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural se a experiência não mais o vincula a nós? Na busca de resposta à sua questão, Benjamin resgata a figura do narrador, a importância e o significado das narrativas como instrumento de transmissão do passado e os perigos que envolvem o declínio da experiência no mundo moderno, o que o leva a chamar a atenção dos intelectuais para a tarefa de preservação da memória, a salvação do esquecimento.

É na reminiscência que Benjamin vai encontrar a inspiração, marco originário da figura do narrador. Para ele a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula à outra, como demonstraram todos os narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazade que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando.

Benjamin denuncia o desaparecimento de narradores e de narrativas no mundo contemporâneo e teme que a arte de narrar esteja em via de extinção. Para ele a ausência de narradores é conseqüência da dificuldade de intercambiar experiências. A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas às experiências de seus ouvintes. A figura do narrador remonta à antigüidade clássica, está fundada nas narrativas épicas que sobreviveram ao turbilhão da modernidade e permanecem em [fim da página 127] nossos dias. Benjamin considera a memória a mais épica de todas as faculdades.

Porque a experiência é a matéria por excelência da lembrança, é que faz-se necessário a justaposição de experiências vivas de todos os níveis da sociedade (Thompson, 1984:245). E ao articular experiência, tempo e história acabamos por atribuir um papel fundamental às pessoas que detêm maior parcela de lembranças: os velhos. Especialmente no que diz respeito à memória política eles são a fonte de onde jorra a essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se prepara (Chauí, 1987). A reinserção de velhos militantes na história, via memória, é também uma vitória contra os mecanismos sociais que fazem da sociedade capitalista o lugar em que a lembrança e a experiência cedem lugar à história oficial celebrativa. Como pensar a história a partir de uma tradição que trabalha com a idéia de tempo absoluto, sem conexão com as diferentes dimensões sociais, políticas e intelectuais, e que procura identificar a sociedade a uma única experiência temporal? (Novaes, 1992) A indagação nos remete a questões que integram o complexo campo de reflexões sobre a modernidade.

Segundo Benjamin, a idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica rigorosa à visão determinista da história está centrada numa concepção própria do tempo, não um tempo linear homogêneo e vazio, mas um tempo recheado de agoras, enquanto possibilidades de realização. Por isso, a memória ocupa um espaço central em suas reflexões. Memória, não como uma seqüência de fotos, de imagens de acontecimentos, mas a memória revisitada como condição para que aconteça um relâmpago, o entendimento instantâneo do acontecimento, capaz de resgatar suas forças de atuação e faze-las agir sobre o presente.

Le Goff ressalta mudanças nos conteúdos e formas de expressão da memória coletiva, na passagem das sociedades sem escrita para as sociedades letradas. Nas sociedades primitivas a transmissão da memória estava direcionada para os mitos que fundavam as diferentes experiências etárias, a transmissão dos saberes ligados às práticas religiosas, e ao prestígio das famílias, a genealogia. Não se exigia rigor na manutenção das palavras que constituíam os relatos. Sem essa exigência, a memória se apresentava livre e criativa.

As sociedades da escrita vão conhecer a memória comemorativa e os documentos. A primeira, aparece na construção de monumentos: figurações e inscrições para celebrar e perpetuar acontecimentos e personagens. [fim da página 128] Com os documentos, têm origem os registros num suporte especialmente destinado à escrita. Diversos materiais seriam utilizados até que se chegasse ao papel, tal como hoje o conhecemos. Le Goff considera ambas as formas de expressão da memória coletiva como monumentos, valendo-se das raízes etimológicas da palavra monumentum, que consideram como tal tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, situando-se aí também os atos escritos.

O autor considera que as relações entre memória e identidade extrapolam o plano individual e podem ser analisadas como um fenômeno de implicações coletivas. Nesse sentido, ele propõe que a amnésia pode ser vista em termos metafóricos, não apenas como uma perturbação no indivíduo com repercussões na sua personalidade, mas também como a falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações que pode determinar perturbações graves da identidade coletiva.

Por isso afirma que, tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. Essa reflexão nos encaminha para pensar a relação entre memória e poder, considerando-a em particular do ponto de vista da conservação da memória. Nessa perspectiva os aportes tecnológicos passíveis de serem utilizados deixam de ser vistos como questão técnica, de modo que o acesso e armazenamento de informações passa a ser apreendido como um problema político decisivo (Connerton, 1993:02).

Bergson fala de dois tipos de memória: a memória-hábito, fixada pela força da repetição de gestos ou palavras e a memória propriamente dita, referida a fatos que são preservados pelo seu valor e que são governados pelo fluxo temporal interior. A primeira, possibilita a repetição mecânica das rotinas cotidianas, enquanto que a segunda, designa a lembrança, evocação de momentos e situações ímpares, através da memória. O senso comum também compartilha a idéia de que existam duas formas de memória, a que resulta da repetição e a gerada pelo impacto. Sabemos que memorizamos fatos, atos, pensamentos que nos são familiares, e que acontecimentos, eventos, ações, catástrofes de grande impacto, tendem a fixar uma marca indelével em nossa memória.

Henri Atlan pensa a linguagem como expressão da memória e como sua exteriorização dos limites de nosso corpo. Para ele, antes de ser [fim da página 129] falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações em nossa memória.

O historiador Le Goff vê a memória como um conjunto de funções psíquicas graças às quais o homem detém a propriedade de conservar certas informações e atualizar impressões ou informações passadas. Além da capacidade de capturar o passado no presente, a memória também opera o registro do presente para que permaneça como lembrança, capaz de ser acionada. Essa lembrança é composta pelo arquivo de coisas que selecionamos. O que nos lança diante da constatação de que existem critérios que operam a seletividade da memória. Como o fazemos? Que parâmetros operam as escolhas? O que estabelece as diferenças de indivíduo para indivíduo?

A procura de respostas para essas outras questões vem suscitando muitos debates e tem hoje lugar assegurado nos fóruns acadêmicos. Por outro lado, como reação às acusações de ser este um país sem memória, onde o esquecimento é a vala comum em que repousam episódios e personagens, atores e ações, a comunidade intelectual se lança à tarefa da preservação da memória, a salvação do esquecimento.

Os estudos e pesquisas têm recorrido com freqüência a entrevistas e depoimentos com pessoas diretamente envolvidos com os episódios, períodos e acontecimentos que se quer investigar. Ao faze-lo recupera-se importantes atores sociais que ao saírem de cena, levam consigo para a vida privada, fragmentos de história que permanecem ocultos no âmbito de suas existências individuais. Esses depoimentos acabam por constituí-los em narradores modernos, os guardiães dos tesouros de seu tempo.

No material resultante de uma entrevista não se encontra apenas informações objetivas, versões sobre fatos e acontecimentos; representações de si e do seu lugar no mundo. Muito mais que isso, a entrevista oferece a oportunidade de contato com leituras do mundo diversas, códigos lingüísticos, cronologias, que jamais poderiam ser apanhados a não ser através da fala de seus portadores. São sinais, que não se deixam facilmente apreender em toda a sua complexa inteireza, estando na dependência de um ouvido disposto a interpretar e não apenas, a ouvir.

E essa interpretação pode revelar muitas surpresas, ao apontar para os diferentes signos que regem os diversos grupos sociais distribuídos no interior da sociedade. Através das falas, utilizando-se de recursos simbólicos, homens e mulheres remetem aos tempos e acontecimentos que constituem os vários mundos produzidos pela complexa heterogeneidade que atravessa o social. [fim da página 130]

Os depoimentos nos oferecem a percepção de um tempo múltiplo, que parece operar em superposição, diferenciando-se substantivamente dos marcos gerais registrados na história oficial. E esses marcos são tão plenos de significados, para os que os compartilham, que chegam a constituir uma outra história, na qual as diferenças sociais adquirem tal força de expressão que geram a instauração de signos apenas perceptíveis para os que integram aquele grupo social.

É como se em um mesmo espaço convivessem pessoas falando línguas diversas. Quando velhos militantes mossoroenses falam no tempo do garrancho ou trabalhadores natalenses ligados a Café Filho falam no tempo da virola, e tais referências são significativas não apenas para os que viveram aquele período, mas também para os seus descendentes e círculos de amizade, é que se tem a noção de como esses marcos estão inscritos na memória social compartilhada por todos quantos se situem em suas vizinhanças sociais. Percebe-se uma cronologia diversa, o que demonstra o quanto determinados eventos foram importantes em suas vidas, o quanto modificaram o seu cotidiano e alteraram o ritmo de suas existências.

Descobre-se que para além das cronologias oficiais, há outras, construídas em função de eventos significativos e compartilhadas pelos grupos de convivência. Tais cronologias se impõem pela expressividade de fatos e acontecimentos que evocam e não podem ser ignorados, sem riscos de se perder a compreensão de determinados períodos. As referências ao tempo do garrancho, ou ao tempo da virola são resultantes de experiências intensamente compartilhadas que funcionam como marcas expressivas de tempos históricos.

Autores como Pollak estabelecem diferença entre fatos de memória e fatos históricos. Os primeiros estariam fundados nas percepções, ou seja, no modo como pessoas ou grupos apreendem e retêm determinados acontecimentos. Os fatos históricos, por sua vez, estariam apoiados na factualidade. Para ele, os registros produzidos a partir das percepções da realidade se mantêm tão fortemente armazenados que chegam a fundar temporalidades e a se expressar através da nomeação de períodos, desafiando a própria cronologia oficial respaldada na factualidade.

As afirmações de Pollak sobre a dinâmica dos fatos de memória parecem ressentir-se da ausência de um filtro capaz de captar as nuanças que incidem nesse processo, em decorrência das diferenciações sociais. A análise de acontecimentos diversos no que diz respeito à sua magnitude e área de incidência social demonstra, a nosso juízo, que essa percepção, muito longe de ser compartilhada coletivamente, passa a ser referência no [fim da página 131] interior de coletividades específicas, como no caso já mencionado do tempo do garrancho e do tempo da virola (Ferreira, 1989).

Apenas em circunstâncias muito particulares como a alusão a fenômenos físicos, tais designações poderiam ser produzidas e compartilhadas coletivamente. O próprio autor ressalta que podem existir acontecimentos regionais que marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação (Pollak,1989:201). No Nordeste, a referência à seca ocorrida em 1877, poderia servir como exemplo. Excluindo-se o dado objetivo de que suas conseqüências atingiram diferentemente grandes e pequenos proprietários e os contingentes ligados à terra através de outras formas de relação como rendeiros, meieiros ou parceiros, a vivência do fenômeno parece ter sido de tal modo dolorosa que cunhou a denominação a grande seca. Assim a encontramos seja nos registros escritos, seja nas narrativas sobre o período. Passado mais de um século, permanece na memória dos descendentes, com uma riqueza de detalhes invulgar, para os que não a viveram.

Da análise formulada por Pollak, deriva uma quase tipologia entre os elementos constitutivos da memória, tais como, acontecimentos, personagens e lugares que podem ter sido vividos pessoalmente, indiretamente via comunidade de pertença, ou que se situam fora do intervalo espaço-tempo próprio do indivíduo ou do grupo de narradores. Em ambos os casos parece-nos importante considerar as clivagens sociais que os atravessam.

Quando nos deparamos com acontecimentos que nos parecem ininteligíveis, o desafio que se coloca é o de explorar as tendências ocultas dos acontecimentos, a maneira como a história não se deixa confinar no passado e vem até o presente, empurrando e impelindo coisas que parecem imobilizadas num estreito quadro temporal (Darnton, 1987:14).

As referências temporais vistas através dos recortes sociais dos entrevistados chegam a produzir verdadeiros enigmas na comunicação. Assim insistiu o entrevistado Manoel Pegado, trabalhador rural em Açu, ao falar sobre o processo de sindicalização nos anos 30: o fogo se deu em canto comprido, o que ele quis expressar? Um incêndio? (o fogo); um lugar longínquo? (canto comprido); uma mágica? (o fogo se deu: encanto cumprido). Algum tempo depois, com o auxílio de outras fontes de informação e entrevistas, percebemos que, na linguagem telegráfica que caracteriza o camponês, ele se referira a um enfrentamento entre proprietários rurais, policiais e sindicalistas na várzea do Açu em meados dos anos 30, no qual um fazendeiro foi ferido de morte. O episódio deflagrou [fim da página 132] intensa repressão aos trabalhadores ligados ao sindicato, permanecendo até hoje na memória de todos os contemporâneos e seus descendentes (Ferreira, 1989).

Mesmo os silêncios que freqüentemente formam hiatos no decorrer das narrativas, podem expressar a memória de fatos e acontecimentos marcantes e muitas vezes dolorosos, que mobilizam emocionalmente o informante, ou que de tão carregados de sentimento estão guardados nos espaços mais escondidos da memória como forma de proteção frente ao sofrimento causado pelas lembranças.

Estas e outras reflexões fazem valorizar o depoimento, a narrativa, a entrevista, enfim, a fala do grupo pesquisado, como um material imprescindível, especialmente nas pesquisas de cunho histórico. Ao cruzar informações e acontecimentos, através das falas dos entrevistados compreendemos que a notícia não é o que aconteceu no passado imediato, e sim, o relato de alguém sobre o que aconteceu (Darnton, 1987:18). Levamos em conta que esse alguém que relata, o faz a partir de um ponto-de-vista que, não apenas é seu porque individual, mas, porque forjado a partir de experiências particulares que conformaram uma trajetória única e irrepetível.

Uma das preocupações básicas no resgate da memória é descobrir as formas segundo as quais condições históricas gerais são apropriadas, reelaboradas e vivenciadas pelas pessoas das mais diversas inserções sociais. O entrecruzamento de diversas falas permite reconstituir o tecido social em toda a sua complexidade, incorporando a multiplicidade de significados e revelando as determinações estruturais e simbólicas que fornecem sentido às práticas sociais.

A seletividade da memória é outro fator a ser considerado. E mais uma vez, deve-se levar em conta que as clivagens sociais operam determinações nos critérios de seleção. Um entrevistado, em cuja biografia a inserção na esfera pública tenha uma dimensão expressiva, tenderá a sobrepor na sua narrativa essa dimensão, em detrimento dos eventos relativos ao espaço privado, datas familiares, etc. Em oposição, para aqueles cuja vivência se desenrolou nos interstícios do mundo privado, as datas e acontecimentos oficiais tenderão a aparecer subordinados aos dados biográficos. Frutos de mecanismos conscientes e inconscientes, a seleção está referenciada às experiências circunscritas a grupos e indivíduos historicamente situados.

Na formulação de alguns autores, a memória figura como uma herança, decorrente das socializações política e histórica de grupos e indivíduos. Pollak assegura que a memória é um elemento constituinte do sentimento [fim da página 133] de identidade, e no contexto de uma pluralidade de localizações sociais e políticas de grupos ou de indivíduos a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos. Como exemplo podemos lembrar a polêmica sobre o levante de 35 no Rio Grande do Norte. Protagonistas e opositores transformados em vencedores e vencidos reivindicam o monopólio da verdade histórica, que significa para uns o reconhecimento de uma certa base de apoio popular ao movimento e para outros, classificá-lo como uma ação militar do 21o BC, sem maiores ligações com grupos civis, a não ser as lideranças comunistas (Ferreira, 1989). O exemplo paradigmático de conseqüência de disputas entre correntes políticas continua sendo a ex-União Soviética, onde as referências históricas foram reformuladas e reescritas em função dos conflitos entre as facções e o avanço do projeto stalinista que se configurou vitorioso. As vitórias e derrotas políticas têm implicação direta nos mecanismos de produção, controle e transmissão da memória.

De acordo com Connerton, entendemos o mundo presente num contexto que se liga casualmente a acontecimentos e a objetivos do passado e que, portanto, toma como referência acontecimentos e objetos que não estamos a viver ao vivermos o presente. E viveremos o nosso presente de forma diferente de acordo com os diferentes passados com que pudermos relacioná-lo. Isso mostra a importância das referências do passado para a constituição das práticas sociais do presente e justifica a exiguidade de registros sobre eventos liderados pelas classes populares. Nessa perspectiva os movimentos populares são objeto de dupla repressão: a que tenta impedir ou penalizar a ação, e de outro lado, a tentativa de anular essa experiência, ignorando seu registro nas obras oficiais, condenando-os assim ao isolamento e ao silêncio.

Estendendo essa reflexão à memória social, o autor afirma que as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente o que o leva a considerar e pressupor a existência de uma memória partilhada entre os participantes de qualquer ordem social. Essa instigante observação parece bastante útil para a compreensão dos mecanismos de reprodução das diversidades no interior de uma sociedade vincada por heterogeneidades que se expressam através dos conflitos sociais.

De outro lado, esse raciocínio volta-se para a memória, requalificando-a como elemento poderoso na conformação das práticas sociais. No entanto, a afirmativa de que as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens do passado servem normalmente para legitimar a ordem [fim da página 134] social presente nos parece estranha à luz de sua própria argumentação. Com efeito, se a memória incide sobre as experiências atuais, elas podem tanto legitimar quanto deslegitimar a ordem vigente. Tome-se como exemplo a memória social de grupos expropriados da terra, cujo experiência de propriedade e controle do processo de trabalho e a autonomia diante da satisfação das necessidades ligadas à sobrevivência, têm derivado em organizações de luta pela posse da terra, e que se expressam até mesmo de forma indireta nas dificuldades de adestramento e de ressocialização no trabalho assalariado.

Ou, tomando-se um outro segmento social, a insistência com que os antigos proprietários rurais apegam-se às práticas tradicionais, levam-nos a lançarem mão de métodos clientelísticos, mesmo se já estão operando em setores dinâmicos da economia, como a atividade industrial, em que tais procedimentos vão de encontro à própria racionalidade capitalista (Leite Lopes, 1989; Ferreira e Lima, 1996).

A noção de habitus utilizada por Bourdieu parece extremamente fecunda para explicar a reprodução de determinadas práticas sociais no interior de grupos específicos, e, portanto, para entender os mecanismos de seleção da memória social. Na perspectiva do autor, o habitus pode ser visto como um sistema subjetivo mas não individual de estruturas interiorizadas, esquemas comuns de percepção de concepção e de ação, que constituem a condição de toda a objetivação e de toda percepção e fundam o ajustamento objetivo de práticas e a unicidade da visão do mundo.

Discutindo como as estruturas influenciam a formação de habitus e de práticas o autor afirma que a homogeneidade do habitus que se observa em limites de uma classe de condições de existência e de condições sociais é o que faz com que as práticas e as obras sejam imediatamente inteligíveis e previsíveis, então percebidas como videntes, o habitus permite a economia de intenção, não apenas na produção, mas também na compreensão de práticas e de obras.

A potencialidade subversiva da memória está pois na suposição de que ela pode ser capturada e ressuscitar na inspiração de novas práticas. A existência de uma injustiça passada e a memória duradoura dessa injustiça levantam a questão da retificação das injustiças (Connerton, 1993:11). A experiência histórica dos países do leste europeu, e em especial do stalinismo, demonstrou o quanto a memória pode ser vista como um elemento potencialmente subversivo. Um outro exemplo significativo de instrumentalização das informações pode ser observado na priorização que os países colonizadores deram a essa questão. Quando grupos despossuídos buscam narrar as experiências vividas ou transmitir as lembranças [fim da página 135] de seus antepassados, ainda que inconscientemente estão empreendendo um esforço na reatualização de acontecimentos marcantes. A memória aparece assim como uma espécie de possibilidade de leitura do mundo ou como fala Connerton o mundo do inteligível, definido em termos de experiência temporal, é um corpo organizado de expectativas baseadas na recordação.

Os momentos de crise são propícios à reinvenções de práticas sociais. Tudo acontece como se as pessoas percebessem que alguma coisa pode ser alterada. E a memória comparece fornecendo elementos para compor novas práticas, referenciadas a formas de vida menos dolorosas vivenciadas no passado. Assim, durante a revolução francesa, os representantes do Terceiro Estado protestaram contra a tradição da obrigatoriedade de portarem trajes distintos da nobreza. Thompson, argumenta na mesma direção ao analisar as relações entre a gentry e a plebe, na Inglaterra do século XVII.

Nesses momentos, é preciso atentar para o fato de que as diversas formas de contestação, as diferentes gramáticas através das quais elas se expressam, revelam um conteúdo simbólico introjetado historicamente, e que o momento de instabilidade política, permite que seja revisitado e reavaliado. Quando os trabalhadores celebram festas no decorrer das greves, afirma Simone Weil, estão expressando seu descontentamento em relação à disciplina fabril e especialmente ao controle sobre o tempo e ritmos de trabalho. Ou, para tomarmos um fato mais próximo, quando os trabalhadores nordestinos ausentaram-se durante semanas do trabalho, para comemorar a vitória liberal em 30, os festejos afirmavam a ação de compartilhar a vitória, já que os trabalhadores haviam aderido ao movimento, mas também eram expressão da recusa à disciplina fabril.

A reconstituição histórica pode ser vista como diferenciada da memória social. A primeira trabalha com fatos, datas, acontecimentos, que podem ser resgatados, ainda que muitas vezes de forma penosa e difícil. A memória social com seu componente de subjetividade é uma dimensão diferente. Ela vai além da reconstituição histórica e do trabalho do historiador. Na medida em que dá conta de dimensões da experiência vivida, a partir da percepção dos atores, se ela perde em objetividade, ao não poder ser contrarrestada através de documentos ou outras fontes escritas e não escritas, ganha em ingredientes não disponíveis de outra forma que não a experiência pessoal e intransferível dos acontecimentos.

A memória social se circunscreve num patamar distinto, porque através dela e nela se identificam os elementos que entram na composição das sociedades: as diferenças sociais. Assim, o episódio de 64 está inscrito [fim da página 136] na memória de seus protagonistas de outro modo que na de seus opositores, ainda que a reconstituição histórica possa aproximá-los como dimensões de um mesmo acontecimento. Considera-se, portanto, que a política tem estreita relação com a memória. As trajetórias individuais e coletivas, socialmente distinguíveis, expressam um conjunto multifacetado de experiências, as quais, por sua vez, derivam na produção de memória que pode ou não ser atualizada em práticas sociais presentes ou futuras.

Retornemos ao início do texto. As epígrafes escolhidas também nos falam da memória. Hobsbawm nos remete à memória social que possibilita a reelaboração do passado, recriando fatos e acontecimentos, a partir do intercâmbio de experiências. Mas, em seu último livro o autor revela preocupação com o declínio da memória social ao afirmar: a destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à de gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem (Hobsbawm, p. 13).

Connerton afirma que a incessante obra humana de recriação do mundo é tributária da memória, porque todos os inícios contêm elementos de recordação. Se no princípio era a lembrança, a reminiscência, podemos concluir como Benajmin que o passado contém um índice misterioso que o impele à redenção. Por isso as referências à Mnemosyne, a deusa da memória, estão sempre envoltas em uma aura de mistério e as reminiscências surgem como evocações que se aproximam da revelação. E talvez possamos afirmar apenas que em volta da memória há mistérios. Porque a memória transcende a vida e a morte. Ela revela o antes de nós, o antes de tudo. Mas, para fazer a viagem entre o antes e o agora, a memória necessita uma ponte constituída por narradores capazes de, transportando lembranças, ajudar a construir um futuro redimido.

[fim da página 137]

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1) Professora do Curso de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


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Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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