TRIGO,Maria Helena Bueno. Paulistas de Quatrocentos Anos: ser, dever ser e parecer. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1996.
PSICANÁLISE, SOCIOLOGIA E HISTÓRIA
Miriam Lifchitz Moreira Leite (1)
A leveza e a concisão com que Maria Helena Trigo lida com os problemas das camadas dominantes da sociedade paulista mascaram a relevância das análises e interpretações feitas neste livro, a argúcia e a incorporação do pensamento mítico na compreensão do estilo de vida dos cafeicultores paulistas.
De um lado, o trabalho profissional de psicanalista foi um fator favorável à percepção das questões apresentadas nas histórias de vida de seus sujeitos (objetos)de pesquisa, e de outro, um elemento combatido da primeira à última linha, em nome da resistência ao psicologismo, ao biografismo e ao documento eventual, exigida num trabalho de Sociologia. Nessa condição híbrida de psicanalista-socióloga, a Autora incorporou criticamente o corpus documental de seus entrevistados, mulheres e homens de 70 a 80 anos, e seguiu as pegadas de Pierre Bourdieu, ao iluminar através de sua teoria, as contradições e a dinâmica do estilo de vida dos paulistas chamados de "quatrocentos anos".
Desde que foi defendido como tese de mestrado, este trabalho vem sendo continuamente citado em estudos nacionais e internacionais sobre a familia, a educação e o imaginário social, dada a maneira interiorizada com que examina a camada social, na preservação de suas criações, ao apontar sua dignidade e seu controle do espaço e do tempo, em que são envolvidas percepção, decisão e ação, contribuindo para a apreensão de padrões e valores sociais.
Como foi respeitada a faculdade dos entrevistados de criar suas categorias e temporalizar as narrativas, as histórias de suas [fim da página 175] vidas permitiram à Autora examinar a posição que os entrevistados assumiam diante do entrevistador, do gravador e da própria pesquisa em andamento, desvendando um discurso variável, um universo de preocupações presentes diante do passado e a maneira freqüente de interpretar a vida. Por isso, deu-se uma nítida diferenciação entre as entrevistas femininas e masculinas -- não através de condições externas de educação e atribuições, mas através das atitudes assumidas na própria entrevista. Enquanto as mulheres primavam pela discreção, solicitando até,. em certos momentos , que se desligasse o gravador ou desejando saber quem teria acesso às entrevistas, os homens tinham uma atitude francamente exibicionista, não só para a entrevistadora, como por uma solicitação implícita e explícita de divulgação ampla de suas formulações. Essa é uma dimensão ainda mal estudada, fora e dentro das diferentes camadas sociais.
Os sinais de distinção da camada da população estudada foram percebidos através do discurso (uma correção da expressão oral e da tonalidade ), do distanciamento revelado dos contatos (com pessoas e situações de outras esferas), da negação de dificuldades, urgências e pressões (de necessidades materiais e psicológicas), das opções sensiveis e culturais (que exprimem um gosto dirigido para o bom e para o belo e um conhecimento também discriminado), da exibição de uma liberdade, naturalidade e desinteresse material que, ainda que fictícias, parece lhes dar uma superioridade sobre os que são dominados por premências e interesses imediatos.
Ao considerar a família como fonte de conhecimento, bom gosto, educação e "finesse", a camada social estudada valoriza e faz valorizar o que foi aprendido desde muito cedo, legitimando sua distinção como questão "natural", ou, pelo menos "de berço"e criando a teoria do "verniz cultural"para gosto e educação semelhantes adquiridos com esforço e aplicação. Os valores culturais, a herança da nobreza e o capital social preservam a distinção não material e distanciam aqueles que os adquiriram recentemente. A expressão de "novos ricos"discrimina também o poder econômico destituido dos valores culturais considerados de origem natural da camada dominante.
A Autora conseguiu nuançar essas características estáticas da "distinção"con as contradições da dinâmica histórica vivida por esse grupo social. Salientou a conciliação feita entre os [fim da página 176] princípios tradicionais de permanência e continuidade com os objetivos de lucros e benefícios e com a ânsia de modernização.
A lavoura e o comércio do café inscreviam-se numa geografia espacial e econômica nômade que desafiava o conservadorismo e forçava uma constante renovação. O capital aplicado em terras e escravos e na comercialização e financiamento do café vai se transferindo para a construção de estradas de ferro que cortaram o Estado de São Paulo, na segunda metade do século XIX. Os valores e padrões da vida rural vão ser vividos nas cidades, que criam, por sua vez, outros padrões e outros valores.
Essas contradições, que fazem com que as coisas pareçam antigas e ultrapassadas, e não permanentes, geram a necessidade da aparência de estabilidade, através de grande apego à rotina doméstica, à ordem e a rituais. A vida passa a obedecer a uma mesma seqüência, em que a monotonia é a norma e a improvisação é mal vista. Investe-se, para tanto, em estratégias de reprodução do grupo (tanto de fecundidade como de sucessão) como em estratégias educacionais formais e informais.
Como na formulação de Pierre Bourdieu," os dominantes têm apenas que ser o que são para serem o que devem ser". Não precisam fazer coisa alguma para merecer privilégios, além de ter nascido e existir. Essas condições (de ser) justificam o personalismo imperante. Fatores e privilégios são concedidos por amizade e clientelismo dentro de uma rede de familias que se conhece há gerações e que ignora méritos pessoais dos "outros". Não se tinha dúvida de que se era talhado para o poder e a dominação. As pessoas têm certeza de seus discursos, de suas práticas e de suas representações.
Ao se segregar num espaço social, cristalizam posições e reforçam disposições. Isso é bem visivel na escolha dos locais de moradia, que revela a hierarquia social, onde existe uma convivência de iguais e uma exclusão dos diferentes. Também esses locais vão se alterando na cidade de São Paulo, como se alteraram entre zonas cafeeiras e se transferiram da fazenda para a cidade. Sobem e descem as colinas do planalto, valorizando e desvalorizando agora os terrenos urbanos, como tinham feito com as terras ocupada.
Neste, como em outros aspectos, existe uma contradição entre um gosto requintado e esclarecido e os costumes austeros, rurais e pobres que permanecem na alimentação e na criação de [fim da página 177] recém nascidos, por exemplo. Ao lado da convicção de que "as coisas sempre foram assim"e "sempre se fez assim em nossa casa"estabelecem-se aparências mantidas com sacrifício, a fim de simular um estilo de vida já impossivel de manter.
A vida doméstica, com suas regras e rituais de passagem, não são ensinadas às mulheres da família. São transmitidas no íntimo convívio entre avós, mães, agregadas, empregadas e crianças. As atitudes "distintas"devem parecer inatas, naturais. Vivia-se sob a influência da moral do dever e das aparências, utilizando castigos severos sob a égide de:
As mulheres aprendiam a nada exigir e falar pouco, a tirar satisfação da obediência e da submissão e a manter as aparências, acima de tudo. A aceitação do sacrifício, evidenciado por dores físicas, morais e pelo empobrecimento, eram virtudes femininas muito prezadas. Num mundo em que imperavam as aparências morais, as mulheres aprendiam a não se exibir, eram sexualmente reprimidas pela culpa e por escrúpulos que controlavam louvaveis pureza e ignorância. Os colégios das jovens eram uma continuação da convivência familial, onde a rede feminina das familias convivia para depois aprimorar sua educação em viagens e na freqüência a teatros e operas, onde o público todo se conhecia e se reconhecia.
A Autora mostra como essa educação, apesar de tudo, permitiu, em inúmeros casos, a formação de aptidões específicas para a improvização. Foram inúmeras as mulheres capazes de substituir os maridos na administração de fazendas e negócios, com toda a dificuldade de administrar o tempo futuro, a tecnologia e a alteração de padrões matrimoniais de filhos e netos, que deixaram de casar com "gente conhecida".
Escrito com uma identificação sem saudosismo, Ser, dever ser e Parecer, é uma leitura reveladora, com reflexões e aplicações do habitus, capazes de inspirar formas de trabalhar as diferenças entre grupos sociais, com as quais estamos sempre enleados.