Este artigo não tem a pretensão de discutir as questões éticas/tecnológicas que preocupam todo pesquisador social, especialista em análise qualitativa (2) no momento de iniciar e de, algum modo, orientar a discussão ou conversação de um grupo a respeito de um tema de "interesse" ou no momento de fazer o esboço de uma amostra de acordo com o recorte espacial ou mesmo teórico.
Preliminarmente, apresenta-se um conjunto de questões a ser debatidas. Por exemplo: O que devemos fazer no início de um encontro com um grupo? Como devemos apresentar-nos e fazer com que os outros se apresentem? Quais são as melhores regras para criar confiança nos participantes da interação comunicativa? Qual é a melhor função do pesquisador, dependendo da idade, do sexo e do tema a ser abordado pelo grupo?. Finalmente surgem outras questões tais como: tipos conversações, constituição do grupo de controle, formação dos outros grupos de comparação, com a conseqüente justificativa do uso das variáveis sexo/gênero, idade, entre outras, de acordo com o objeto de estudo (Aidstech/Family Health International, 1994).
Tampouco se tem a pretensão de colocar aqui em discussão as questões políticas/epistemológicas do posicionamento do pesquisador no âmbito do mercado e as suas regras éticas no momento atual. Não é que elas não sejam problemáticas, ou seja, não é que a complexa relação "tema de interesse / pesquisador" mediada pelo " empresário, capital, mercado e pela cada vez maior visibilidade da outrora mão invisível" não enseje questões de difícil resposta e solução. [fim da página 164]
Nesse contexto, entende-se que o seguinte conjunto de problemas constitui tópicos relevantes de discussão: se o tema de interesse é rentável ou não para o pesquisador; se é legítimo para uma empresa qualquer encomendar estudos desse tipo; até onde se pode ser persuasivo com o consumidor do produto/objeto a ser indagado, e, afinal, como se insere tudo isto no âmbito da produção de conhecimento. Ou seja, num contexto de globalização e mercantilização das relações sociais, como é que está sendo construído o desenvolvimento da ciência e do saber/poder, e como exerce influência no desenvolvimento, formação e inserção no campo do saber do intelectual que, dentro do modelo neoliberal, atua, opera e produz -nestes casos- sob o nome de "consultor".
Aprofundando este ponto de vista, é interessante observar o comportamento do empresariado, no que concerne ao modo como vem-se apropriando da produção de conhecimento, como vem construindo uma aliança estratégica, através do capital, com os "consultores" nacionais e internacionais, outrora pesquisadores científicos integrantes dos respectivos campos de saber nacional e que hoje procuram um lugar no campo de produção de conhecimento internacional. Como, em conseqüência da privatização do ensino, o pesquisador em termos gerais tem se transformado num empresário da produção do conhecimento, quando não, em alguns casos, tem instalado a sua "consultoria/empresa privada", gerando, com tudo isso uma dificuldade a mais: uma função importante do saber, que é a sua socialização, aqual, uma vez produzida, fica fora do campo de legitimação do conhecimento.
Porém, tendo como horizonte de compreensão o anteriormente exposto, este artigo tem a intenção de propor algumas questões de ordem geral, no sentido de que, na América Latina, somos consumidores antropofágicos de metodologias. Portanto, neste caso específico, poderíamos estar misturando demais escolas, autores, tendências e linhas de desenvolvimento. Estas, no momento das significações, não deixam de articular políticas de sentidos diferentes que, uma vez observadas, possibilitariam precisamente elucidar melhor os problemas existentes. Assim, a idéia subjacente a ser aqui desenvolvida procurará demonstrar que o resultado do ato de conhecimento compreensivo ou hermenêutico - no âmbito do exercício interdisciplinar neste tipo de pesquisas- tem a ver com o ponto de partida metodológico/epistemológico e também com os problemas éticos/tecnológicos que se delineiam. [fim da página 165]
Tendo como pano de fundo as considerações anteriores exposto, a primeira afirmação forte que se faz é a seguinte: no desenvolvimento da pesquisa cuja metodologia procura dados qualitativos propriamente chamados de discursos, enquanto espaço de interdisciplinariedade (Van Dyck,T. 1980 e 1983), existem dois tipos de intervenções comunicativas com grupos focalizados. Ambos têm como objetivo geral obter uma interação comunicativa ou promover uma conversação entre um determinado número de participantes selecionados de acordo com os objetivos específicos de indagação (seis no mínimo, doze no máximo).
Essas interações comunicativas se sucedem em função de um tema de interesse focalizado previamente a partir dos objetivos da pesquisa. São orientadas por preceptores disciplinados, geralmente profissionais com contrato parcial, os quais formam parte de uma cadeia que proporciona apenas um elo e não têm a versão completa, nem acabada da pesquisa. Nesse contexto, pode ou não participar do grupo de especialistas que projetaram a pesquisa e que farão a análise final dos dados.
As interações comunicacionais das intervenções focalizadas, dependendo de qual seja o tipo e o tema de interesse, são recriadas a partir de um laboratório-ambiente ou de uma situação de laboratório, observadas de longe por especialistas em análise de comunicação não-verbal e verbal, seguindo uma pauta de leitura de comportamentos gestuais e discursivos. Ou seja, a observação é trocada ou mesmo misturada en função da participação do preceptor na conversação grupal. Esse conjunto de dados qualitativos, enquanto material de pesquisa, é coletado apenas como gravação das emissões lingüísticas, prontas para ser escutadas ou como emissões de movimentos corporais, prontas para ser vistas em imagens de vídeo. Posteriormente, os dados transcritos formam parte de uma unidade maior de análise de discurso ou mesmo de análise de linguagem no interior da pesquisa, na busca de intencionalidade e significado (De Souza Minayo M.C.,1992). Ambas as intervenções, de acordo com as suas características, são chamadas pelos pesquisadores de "focus groups" (Merton, R., et al. 1956 e Merton, R., 1987), e "grupos de conversação" ou "focus groups discussion" (Ibañez, J. 1979 e Ibañez, J., 1981).
Os "focus groups" (Merton, R., 1956) inicialmente foram chamados de "focused interviews" e não mostravam diferença em relação às "entrevistas [fim da página 166] em profundidade" como instrumentos que procuravam obter dados qualitativos, fossem elas semi-estruturadas ou não estruturadas. Ambas as entrevistas e intervenções focalizadas eram tipos de interações comunicacionais entre duas ou mais pessoas, previamente combinadas num local predeterminado (laboratórios-ambiente) para conversar a respeito de um tema de interesse.
Nessas entrevistas, uma das pessoas tem como função orientar, exercer o papel de preceptor, fazer as perguntas de acordo com a pauta, realizar a seqüência da interação em termos da relação social. No decorrer da entrevista, deve preocupar-se com a gravação do vídeo ou material exclusivamente lingüistico, ou seja, com a coleta do dado qualitativo fornecido pelas outras pessoas (Merton, T., 1987). Aliás, ambas produziam um tipo de dado qualitativo próprio do linguajar (expressivo ou enunciativo). Nesse primeiro momento, as "interviews one to one" tiveram que fazer o seu caminho de diferenciação para se distinguirem das "focused interview " enquanto grupo e afinal construir a diferença epistemológica a respeito do tipo e da qualidade da informação coletada por um e outro tipo de intervenção (Hoijer, 1990).
Com efeito, tanto a entrevista ou intervenção pessoa a pessoa, como a entrevista ou intervenção grupal focalizada se propõem recuperar os conteúdos subjetivos não presentes nas pesquisas quantitativas. Tais conteúdos, em nível de indagação, possibilitavam obter certos códigos próprios a um universo de participantes. Posteriormente, ao construírem o instrumento quantitativo de mensuração, podiam ser usados para melhor entendimento entre quem responde e quem faz a pesquisa. Nesse contexto, a intervenção ou entrevista pessoa a pessoa foi usada no campo das Ciências Sociais e Humanas, quando os objetivos das pesquisas foram reconstruções de histórias de vidas, ou mesmo quando se trata de depoimentos que precisassem de um elevado nível de confiança, de intimidade, tendo em vista que a vulnerabilidade de quem fosse o entrevistado não pudesse ser muito exposta num grupo.
Por outro lado, a "intervenção com grupos focalizados" foi desenvolvida no âmbito das Ciências da Comunicação Social. O conjunto de preocupações que procurava atingir, em nível do conhecimento ou epistemológico, foi inicialmente a análise da imagem de um objeto em geral: imagem corporal, imagem pessoal-pública, imagem institucional ou corporativa, imagem de um produto qualquer no mercado. Nesse sentido, como pesquisa, procurou medir o efeito dos meios de comunicação de massa, como a televisão, o rádio, a imprensa escrita em geral, através da seleção de [fim da página 167] um público objetivo chamado, para efeitos de estudo, de "audiência" (Merton, R, and Kendall P., 1946).
Em um nível epistemológico, as indagações procuravam obter informações a respeito do efeito da imagem ou mesmo de um programa no sujeito consumidor do meio de comunicação. Assim, a definição de objetivos da pesquisa buscou atingir o umbral perceptual da audiência, não se preocupando com a questão do umbral cognitivo, que é o âmbito propriamente dito da linguagem subjetiva, da formação dos conceitos e das palavras, enfim, o âmbito onde as emissões revelam a estrutura e a lógica na qual o sujeito tem realizado o processo de socialização, ou seja, o âmbito onde o sujeito dá conta de seu peculiar modo de realizar o simbólico. Do ponto de vista sociobiológico, nesse âmbito, não existem dados a respeito dos conteúdos das representações sociais que têm sido internalizadas pelo sujeito, no curso da construção de seu projeto de vida e das suas relações sociais.
O umbral perceptual entrega e registra informações no nível do conjunto das sensações, um âmbito mais adequado para o estudo da imagem, da opinião, da exterioridade. Nesse nível, a linguagem atinge um estágio primário de conhecimento e da formação de visão de mundo das pessoas, já que só se procura e se obtém informação, a partir da operação da memória de curta duração e não da memória de longo prazo. Nesse nível, não se opera a memória afetiva, a memória que registra as emissões que ficam impressas no inconsciente do indivíduo, na sua historia pessoal e que até pode ter uma relação com o inconsciente coletivo.
Com efeito, o intervalo do umbral perceptual é transposto pelos estímulos que vêm do meio, os quais são poderosos quanto a seu impacto e rápidos em velocidade. Todavia, o fato de que tenham essas caraterísticas não significa que sejam duráveis ou que mantenham continuidade em termos de presença e permaneçam no indivíduo através do tempo, gerando conceitos mais abstratos que dêem conta, no linguajar, da existência de uma certa visão de mundo mais elaborada. Sabe-se no entanto, que inicialmente, nesse tipo de pesquisa, na maioria das vezes, o objetivo principal que levou a usar esta técnica dos grupos focais foi obter informação para a persuasão, isto é, para induzir os sujeitos consumidores a optar por um determinado produto no mercado de bens da industria cultural.
Na expansão posterior, esse instrumento de mensuração passa a ser usado no marketing das comunicações, na área de publicidade, para a construção e análise de propaganda, não só do consumo de produtos, como roupa, alimentos, etc., mas também no marketing político, como instrumento que indaga a respeito do tipo de necessidade de liderança que um certo público tem, a sua intenção de voto em uma eleição, o seu posicionamento [fim da página 168] ante um determinado candidato. Nesse contexto, do próprio sujeito origina-se o objeto/imagem de construção em relação a um tipo de consumo.
Conforme assinala Merton (1946) o contexto de produção da situação dos grupos é importante, tanto no momento de metodologicamente segmentar-se esses grupos que terão por missão interagir, como no momento da análise dos dados. Também é importante a pauta ou guia de entrevista, no sentido da direção ou não-direção da interação comunicativa, no sentido da estruturação ou não-estruturação das perguntas. A presença de outros estímulos para motivar a conversação do grupo é importante, embora muitas vezes eles não constituam parte fundamental da pergunta e da resposta.
Geralmente se usam outros recursos próprios ao desenvolvimento da mídia para testar a opinião da audiência como, por exemplo, avaliar um filme em grupo, avaliar numa conversação um spot publicitário que pode ser da Coca-Cola, da Pepsi-Cola, ou ainda de uma campanha contra a AIDS sem se preocupar com o peso que o tema de interesse pode ter para o público objetivo, que é visto nesse caso como simples consumidor. Nesse sentido, o tema de interesse pode ser um só, nâo sendo, como matéria, examinado em detalhes ou em profundidade.
Em síntese, considera-se que esta técnica qualitativa é mais adequada para construir o campo perceptual do sujeito, a respeito de um tema de interesse, no sentido epistemológico, a respeito de um objeto onde sua própria subjetividade está inicialmente sendo estruturada em termos dos conteúdos a compreender e em termos dos padróes de comportamento que dele se espera obter, a partir dessa coordenação inicial de atos de percepção. Por esta mesma questão, este tipo de intervenção é mais fechado em termos do direcionamento por parte do preceptor, e em termos das perguntas da pauta ou guia de perguntas. Poder-se-ia dizer que é uma entrevista estruturada em termos de perguntas e direcionada em termos de respostas. O preceptor não deixa que os participantes emitam opiniões que não tenham a ver com o que se pergunta, estimulando-os, orientando-os a não se sair do rumo. Não é, stricto sensu, uma conversação ou mesmo uma discussão.
Uma crítica que pode se fazer a partir daqui é aquela sobre a qual, de um modo geral, fala Gergen, K.J., (1993) no sentido de que o preceptor nunca deixa de ter e regular o controle da situação de fala grupal. Enquanto isso acontece, não participa do processo de interação comunicacional, ou seja, não deixa a sua condição de observador, não expõe aos outros a sua própria subjetividade. Além disso, quando a função do preceptor limita-se a fazer a coleta dos dados nos grupos, significa que a pesquisa foi essencialmente planejada por outros pesquisadores ou consultores que não fazem esse "trabalho de campo". Então, com maior razão, pode-se afirmar que os [fim da página 169] resultados só podem corroborar uma certa postura inicial adotada a priori através da ontologia da linguagem.
Nesse contexto de reflexão, Gergen afirma: "Na medida em que as hipóteses orientadoras moldam as categorias do conhecimento subseqüente, os tipos de questões que direcionam a pesquisa e os tipos de respostas que podem ser obtidas, as regras do procedimento empírico não fornecem um corretivo" (1993:48-69). No entanto, o objetivo geral de uso (issue) da metodologia do grupo focal pode ser inicialmente recuperar, a partir de uma linha particular de construção, ou mesmo expressão de um discurso ou comportamento, a compreensão, a intencionalidade e a significação de uma determinada prática social.
No sentido habermasiano, poder-se-ia dizer que o uso desse tipo de técnica grupal é propriamente instrumental-estratégico, já que a produção da intervenção está teleologicamente orientada para o éxito (cf. Habemas, J.,1987). Os participantes têm que concordar a respeito do conjunto de condições favoráveis que possibilitariam o fato de que eles assumam um determinado comportamento de consumo: comprar um determinado produto no mercado, votar num determinado candidato, etc. O preceptor procura exercer uma certa influência nos participantes, a fim de que estes configurem as suas percepções, caso, no processo de interação, estas não estejam definidas. Entre os próprios participantes também se dá essa influência quando, por exemplo se trata de definir a qualidade de uma certa imagem de um determinado líder político ou mesmo de um partido, ou ainda quando se tem que sugerir o possível valor econômico de um novo produto que já tem concorrentes no mercado, ou as cores das letras que darão o nome ao produto e o farão mais atrativo.
Com relação aos "grupos de conversação", eles têm como primeira referência o desenvolvimento da teoria da cibernética (3) de segunda ordem e a teoria de sistemas (Gordon P., 1979 e Maturana e Varela, 1979 e 1986). No estudo da teoria da conversação desenvolvida por Gordon Pask (1976), ele define a conversação como a "mínima organização que numa linguagem L entre participantes A e B é susceptível de uma medição avaliável com [fim da página 170] precisão". Porém, o pressuposto geral que há sob a existência desse tipo de técnica tem a ver com uma avaliação do estado da arte em nível planetário, o qual assinalaria que, no mundo ocidental, moderno para uns e pós-moderno para outros, fica muito difícil participar da maior parte dos padrões organizados de relacionamento, sem considerar a linguagem verbal -através dos atos de fala- a qual seria o elemento (sistema) constituinte vital dos padrões complexos de inter-relacionamentos (cf. Gergen, K.,1993).
Nesse sentido, o uso do sistema de reunião grupal se torna diferente da intervenção com grupos focalizados apenas pelo fato de dar ênfase em procurar obter, a partir de certas situações sociais de fala, a linguagem verbal, enquanto produção social com significação e intencionalidade. Sob esse prisma, sua peculiar diferença está, nâo só no fato de esta técnica procurar obter informação em nível da cognição, mas também na forma como se desenvolve a conversação entre os participantes, como é feito o roteiro de perguntas e como o preceptor se situa na conversação.
Num nível epistemológico, entende-se que o uso da conversação, como instrumento de mensuração para a coleta de dados qualitativos, dá ênfase principalmente à constituição de uma comunidade falante, que possua uma mesma linguagem para que desse modo possa, na fala, gerar intersubjetividade. De novo a atenção aqui está voltada para a linguagem, enquanto é aquilo que se compartilha entre observador e observados e enquanto homogeneiza a relação entre os integrantes do grupo, no sentido de que coloca todos no mesmo nível de paridade. Ou seja, coloca-os num ato de entendimento (a conversação) como processo de obtenção de acordos entre sujeitos linguísticos interativamente competentes (Cf., Habermas J., 1989 :368 vol.1). A construção da intersubjetividade -através da linguagem na fala- já mostra que a comunidade existe e que existe inteligibilidade, comunicação entre uns e outros, não importando o poder de um ou outro no âmbito do espaço cognitivo (4).
Evidentemente, parte-se novamente do pressuposto de que a seleção dos participantes linguisticamente capacitados para participar, tanto de um grupo como da própria conversação a respeito de um tema de interesse, considera a questão, não só de que todos eles compartilham uma mesma linguagem/idioma, como também que todos eles compartilham códigos mais [fim da página 171] específicos de inserção ou mesmo de convivência social, sejam estes códigos elaborados ou restritos. Sob esta perspectiva, então, não é que o poder, como capacidade de emissão discursiva, como posicionamento, como capacidade de confrontar pontos de vista não apareça no grupo, não seja veiculado, não circule, não esteja presente no ato de seleção dos sujeitos/atores da fala. De fato, em todas estas situações o poder está presente, existe, só que na própria situação lingüística não permanece numa única pessoa. O próprio grupo faz questão de distribuí-lo, de coordená-lo, para gerar a intersubjetividade.
Precisamente porque o importante é a linguagem produzida na conversação que a cognição do ponto epistemológico é o conhecimento que se procura obter. Para isso, aliás, todas as situações de estímulo, além de estímulos externos, como fitas de vídeo, filmes, spot publicitarios, etc., são extraídos da produção do cenário e do roteiro que o preceptor usará. Em sentido estrito, esses estímulos que servem de apoio não são linguagem falada, no sentido da estrutura racional e do caráter procedimental do raciocínio que é constituído pelos sujeitos na conversação ou discussão.
Por outro lado, é importante também dar ênfase à questão da intervenção da cognição durante os diversos momentos da interação comunicacional. Significa dizer, portanto que ela é "ação efetiva: história do acoplamento estrutural que faz emergir um mundo" (Varela F. 1987). Ela pode também ser utilizada na sua lógica de construtividade/desconstrutividade, no momento da conversação. Nesse sentido, o processo de socialização das cognições numa conversação pode tornar-se um processo terapêutico de construção ou desconstrução do mundo (subjetivo) que emerge.
Do ponto de vista da teoria de sistema, o fato de trabalhar com a atividade da cognição na técnica dos grupos de conversação tem o seu fundamento na diferença epistemológica que existe em relação à atividade da "representação social", porquanto esta é principalmente semântica e, em ultima instância, refere-se a tudo aquilo que pode interpretar-se como "dizendo respeito a alguma coisa ou ente". Nesse sentido, a atividade da comunicação consistiria numa transferência de informação do emissor ao receptor, questão que, como já vimos os focus groups como técnica conseguem resolver.
Já do ponto de vista da atividade cognitiva, a crítica que se faz ao modelo ou atividade de construção da representação social no sentido epistemológico é o seu caráter passivo no momento de definir o conhecimento. Nesse sentido, a conversação grupal é uma atividade de conhecimento, na medida em que este se produz num mundo social que resulta inseparável do corpo, da linguagem e da história de cada um daqueles [fim da página 172] que se engajam na comunicação. No interior dessa dinâmica de fala, precisamente a maior capacidade da cognição viviente consiste, em grande medida, em expressar as questões relevantes que vão emergindo em cada momento da vida de cada participante da conversação. Estas não são predefinidas, são "em/atuadas", que dizer: "se las hace emerger desde un trasfondo" (Varela, F., 1987) (5).
Nesse contexto, temas como AIDS, hábitos sexuais da população, etc., não podem receber o mesmo tratamento metodológico em termos de uso de técnica que a construção de uma imagem pública de um político para a sua campanha eleitoral, ou mesmo para testar o lançamento no mercado de um novo logotipo de um produto. A conversação ou discussão a respeito do uso da "camisinha" por parte dos participantes de um grupo, o momento em que cada participante decide se envolver no debate e falar sobre as suas experiências, o nível de confiança e de construção lingüistica atingido pela pergunta e pela própria discussão requerem um "entendimento" diferente. Isso ocorre porque o que esta em jogo, num sentido cognitivo subjetivo, é a própria pessoa, é a sua história corporal que está em exposição, muitas vezes sendo pela primeira vez socializada ante um preceptor que requer um treinamento especial no sentido de "saber escutar".
É aqui então que se verifica a diferença entre um tipo de técnica e outro, não só a partir da seleção do tema de interesse a pesquisar, mas também da montagem dos grupos que participam da discussão ou da intervenção, das perguntas, dos preceptores.
Em circunstâncias de mais mistura, que é o caso do "issue" cujas técnicas estão ocorrendo em nossos países, acontece uma perda do sinal genealógico das linhas científicas. Por isso, ocorre uma perda de continuidade da transmissão de informação entre o país de formação do especialista que aprende a técnica no exterior e o país de retorno, no qual, com prévia assimilação, a transfere e usa. Aliás, em conseqüência dessa apropriação cultural e da "perda de sinal" na própria recepção que faz o treinamento, procurando o "know-how", simplesmente se tem falado da existência de uma única tecnica: os "grupos focalizados de conversação", sem ênfase nem distinção, quando na verdade elas são diferentes, até mesmo porque isso aparece nos objetivos e nos resultados das pesquisas qualitativas. [fim da página 173]
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1) Professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.
2) Sob esta designação se quer indicar um pesquisador formado na área de Ciências Humanas e Sociais que, em oposição a um pesquisador quantitativo, trabalha com informação que só pode ser codificada no âmbito da significação da palavra, da linguagem e não do número.
3) No passado ao estudo dos sistemas supostamente independentes de nossa atividade cognoscitiva (de observação), deu-se o nome de cibernética de primeira ordem ou cibernética dos sistemas observados, onde o observador se supõe fora de tal sistema. Ao estudo dos sistemas, nos quais nossa atividade descritiva é parte constitutiva, dá-se o nome de cibernética de segunda ordem ou cibernética dos sistemas observadores (cf. Heinz von Foerster, 1960 e 1974).
4) A respeito dos acordos, Habermas distingue o fato de que alguns deles sejam objetivamente obtidos pela força ou mesmo violência, às vezes pela persuação. Nesses casos, eles não podem constar subjetivamente como acordos, já que estes se baseiam em convicções comuns ao grupo. Nesses contextos de produção de acordos, o entendimento é imanente como telos da linguagem humana. Com efeito, tanto a linguagem como o entendimento não se comportam entre si como meio e fim. Pode-se, porém, perguntar se a linguagem pode, na sua estrutura e organização ser configurada, a partir de relações sociais de poder, equitativas e isentas de domínio.
5) Segundo F. Varela, o neologismo "enacción" -em-ação para a tradução portuguesa- traduz o conceito "enaction" do inglês que, por sua vez, é derivado de "enact" (representar), no sentido de desempenhar um papel, atuar. Daí que a forma "atuada como representada" tenha levado a erro e confusão. Em contrapartida, "fazer emerger", hacer emerger, faire-émerger traduz a forma "bring forth" ou mesmo "hervorbringen" que tem uma origem fenomenológica segundo o critério de Pierre Lavol.
NOTAS METODOLÓGICAS: ENTRE OS GRUPOS DE CONVERSAÇÃO (GROUPS DISCUSION) E AS INTERVENÇÕES FOCALIZADAS (FOCUS GROUPS)
Lilian Letelier (1)
Grupos focalizados versus grupos de conversação
Focus groups (interview focused) ou intervenção focalizada
Grupos de conversação
Bibliografia
AIDSTECH, Family Health International. (1994). Herramientas para Evaluación de Proyectos. Durham, NC.
Notas