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Política e Trabalho 12 - Setembro / 1996 - pp. 186-190


"SEM TÍTULO": A PROPÓSITO DA POSE NA FOTOGRAFIA DE DIANE ARBUS

Bertrand Lira (1)


ARBUS, Diane. Sans Titre. Éditions de La Martinière, Paris, 1995.


A pose não surgiu com a fotografia - invento anunciado ao mundo em 19 de agosto de 1839. Mas desde o momento em que ela passou a retratar pessoas, a pose passou a ser mais um dos elementos a se considerar pelos estudiosos desse artefato que revolucionou a arte pictórica no século passado. Na fase anterior ao aperfeiçoamento das lentes e dos químicos que viabilizaram a fotografia, o retrato exigia das pessoas, desejosas de uma cópia fiel de sua imagem, enorme sacrifício. Para se ter uma idéia, o daguerreótipo , bem no seu início, demandava uma exposição de aproximadamente dez minutos em pleno sol de verão. Uma eternidade para o modelo imobilizado numa pose e expressão facial com as quais escolhera se imortalizar.

Tida como arquirival da pintura, a fotografia foi sujeita a piadas e chacotas da época forjadas principalmente por aqueles (pintores, sobretudo) que viam no daguerreótipo - nome dado por seu inventor Jacques Mandé Daguerre (1787-1857) - um sério concorrente. A pose se constituiu no maior pretexto para essa galhofa. Nesse sentido os detratores da fotografia tinha motivos de sobra: "A imobilidade era um fator essencial em virtude das longas poses, e, para tanto, o 'paciente' - como era chamado na época - mantinha sua cabeça ereta e apoiada num 'encosta-cabeças' adaptado às solidas cadeiras, na qual se sentava, além de receber nos olhos uma ofuscante quantidade de luz que atravessava o estúdio envidraçado ou pela reflexão dos raios solares, que, após incidirem em espelhos especialmente orientados, o atingiam em cheio."

A evolução técnica da fotografia, todavia, não fez desaparecer a pose estudada, calculada. As pessoas retratadas querem, invariavelmente, apresentar a imagem que julgam ser a melhor que podem oferecer. Sendo assim, é importante lembrar que a simples presença de uma câmera apontada para alguém resulta numa mudança imediata de comportamento: [fim da página 186] abre-se um sorriso ou fecha-se a cara; muda-se de postura, quando não se opera um arranjo no "cenário", na mobília, etc. É a mobilização de códigos também de quem é alvo da objetiva. O fotografado quer "eternizar" seu melhor ângulo, seu melhor momento. "Diante da câmera, não há realidade que permaneça intacta: tudo se altera, tudo se arranja, tudo concorre para a ordem ideal do momento."

Uma análise das fotografias posadas levaria a um significativo subsídio para o estudo do imaginário de uma determinada sociedade ou grupo social. É na pose que as pessoas exteriorizam a imagem que querem que os outros tenham delas ou mesmo do que gostariam de ser. Na fotografia do século passado e nas primeiras décadas deste, percebe-se nitidamente a solenidade do ritual fotográfico. Nos estúdios ou em casa, com raras exceções, a descontração e a espontaneidade estão longe das câmeras fotográficas. Ao violador da regra, o desfoque como punição. Essa sisudez não se deve apenas à imobilidade exigida pelos obturadores lentos dos primeiros aparelhos. A fotografia é um ritual de embalsamento de corpos-vivos, onde um repertório de poses estão à disposição para o papel social que se deseja incorporar. Um festival de poses que inevitavelmente resvalaria no ridículo.

As ciências humanas, sobretudo, vem discutindo há muito tempo a questão da objetividade na apreensão do real. Até mesmo as ciências exatas, supostamente isentas das idiossincrasias da subjetividade, têm defrontado com essa questão. No que tange à fotografia, sabemos que o fotógrafo e o 'modelo' utilizam códigos que impossibilitam essa imparcialidade. Na impossibilidade de uma apreensão objetiva, imparcial, da realidade quando de sua investigação, Machado sugere aos sociólogos e antropólogos que lidam com a fotografia como recurso na apreensão da realidade que eles "poderiam obter resultados mais produtivos se passassem a examinar a maneira como cada comunidade fotografa e se deixa fotografar."

Uma fotógrafa trabalhou a pose nos anos 60 na busca de uma interpretação de uma realidade particular via imaginário de um contingente humano marginalizado pela deficiência mental: a norte-americana Diane Arbus. Nos últimos dois anos de seu difícil convívio entre os mortais, ela dirigiu suas objetivas para retratar pacientes de clínicas e instituições psiquiátricas nos Estados Unidos. Sans Titre (Sem título) é uma pequena mas emblemática [fim da página 187] mostra do seu, para muitos estranho, interesse por um universo muito incômodo, porém não menos instigante.

Um universo cujos habitantes passariam despercebidos se ela não os tivesse imortalizados na representação bidimensional do papel. Era essa sua missão de taumaturgo. Sans Titre traz 51 fotografias, a maioria inédita, em preto e branco, medindo 24 x 24,5 cm. Um álbum idealizado por Doon Arbus, filha de Diane, e Yolanda Cuomo. Neste ensaio Arbus dispensou as legendas ou títulos que usualmente acompanham suas fotografias. Eram desnecessários. Seus modelos - velhos, crianças, e adolescentes, mascarados ou não, em poses bizarras - olham para a câmera/fotógrafa com expressões ora de indagação, ora de desprezo, ou ironia, ora de curiosidade, e às vezes de satisfação. Ou simplesmente demonstram uma total indiferença. Como se a fotógrafa não estivesse ali. Fisionomias que o nosso repertório de decodificação não lograria, talvez, a compreender. Os personagens de Arbus evocam seres de um planeta, bem próximo de nós, que conhecemos mas prefirimos ignorar. Olhares enigmáticos, que abrigam segredos que inutilmente tentamos decifrar. Quem sabe, ela os entendia.

Crueldade? Cinismo? Nem uma coisa nem outra. A estratégia de Arbus era a de convidar seus "modelos" - uma galeria de personagens que explicitamente desviam do padrão de beleza e comportamento aceitos socialmente como normal - a uma pose deliberada. Seus tipos, ao convite para uma pose, se mostravam embaraçados e procuravam a melhor postura e a expressão mais adequada para compor uma imagem que considerava positiva de si próprios. O resultado é que para muitos seus personagens se tornavam mais ridículos. Seria essa a intenção da fotógrafa? A pose os tornava mais dignos ou os ridicularizava? Para Sontag, "Sentados ou de pé, o ar afetado, esses personagens nos aparecem como a própria imagem do que são."

Dubois vai além em suas considerações sobre a pose nas fotos de Arbus, insistindo na verdade interior dos personagens retratados que esse artifício pode revelar. Segundo ele, essas fotos são "a antítese da foto-ao-vivo, da foto pedaço-de-vida, da foto feita de improviso ou sem que o modelo saiba. Contra a imagem capturada, Arbus joga a imagem convocada e construída. Contra a espontaneidade, a pose. É por meio da imagem "plástica" que querem dar de si mesmas e que a artista [fim da página 188] as leva a produzir que se revela a "verdade", a "autenticidade" das personagens de Arbus. (...) É no próprio artifício que a foto vai se tornar verdadeira e alcançar sua própria realidade interna .A ficção alcança, e até mesmo ultrapassa, a realidade."

O 'gosto' de Diane Arbus por tipos, que ela preferia chamar de 'excêntricos', a tornou uma figura lendária na sua profissão. Antes desse ensaio, ela apontou sua câmera para personagens do submundo ou marginalizados na sociedade americana: travestis, prostitutas, anões, hermafroditas, etc. Os deficientes mentais foram sua última investida antes de se suicidar em 1971, aos 48 anos. O acervo de imagens de Arbus, ex-fotógrafa de moda, ao lado do marido Allan, é a comprovação de um olhar que enxergava surrealisticamente o cotidiano. Por suas lentes, até as pessoas ditas normais eram filtradas de forma esdrúxula, ou 'excêntrica', como ela preferia. As raras pessoas do show business americano que se arriscaram a ser captadas deliberadamente por suas lentes se arrependeram. O escritor Norman Mailler, um dos papas do new journalism, ao ver uma foto sua clicada por Arbus advertiu: "Ela com uma máquina fotográfica é como uma garota com uma granada na mão."

Na realidade, o que Arbus não queria mais era o glamour que transbordava de suas fotos feitas sob encomenda para as célebres revistas de moda 'Vogue', 'Harper's Bazaar' e 'Glamour', nos últimos anos da década de 50. Com uma guinada de 160º , ela dirigiu seu olhar para a excentricidade da sociedade americana. Para figuras que não correspondiam, sob nenhum aspecto, aos padrões de beleza e comportamento daquele rincão de moralidade. Ou falsa moralidade. Ela não os via como melhores ou piores do que os 'normais'.

No posfácio de Sans Titre, sua filha Doon Arbus, argumenta que essa mudança radical de estilo e técnica não foi deliberada de sua parte: "Ela se deu porque Arbus reagia naturalmente ao ambiente onde se encontrava, às pessoas com quem ela estava, às relações que elas tinham consigo e ao que Diane via se passar entre elas. Ninguém jamais posou para ela com tanta naturalidade, com tamanha desenvoltura, com tanta aceitação de sua identidade. A desenvoltura delas se tornava a sua. É por isso que nenhum de suas trabalhos - incluindo algumas de suas famosas fotografias tomadas na mesma época - não parecem verdadeiramente com estas aqui. Não se tratava de uma técnica [fim da página 189] inventada por ela mesma que poderia ter sido aplicada à vontade não importa em que circunstâncias. O estilo, a técnica não teriam sentido a seus olhos se não estivessem ligadas ao conteúdo de forma indissolúvel."

Bibliografia

KOSSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil - século XIX. Rio de Janeiro:Funarte, 1980

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular - introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984

SONTAG, Susan. La Photographie, Paris: Seuil, 1979.

DUBOIS, Philipe. O Ato Fotográfico. Campinas: Papirus, 1994.


1) Fotógrafo. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.


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Este site foi modificado pela última vez em 18 de Outubro de 1999, por Carla Mary S. Oliveira.


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