Sendo o objetivo desta comunicação fazer um balanço da confluência entre as práticas sindicais e as relações de gênero, buscando apontar as perspectivas futuras tanto para o movimento sindical quanto às relações entre homens e mulheres, não podemos deixar de fazer referência ao momento presente: Faltam pouco menos de 5 anos para chegarmos ao final deste século e deste milênio.
Passar de um milênio a outro tem mais a ver com o Tempo do que com o Espaço, embora saibamos hoje que ambos são indissociáveis. A passagem de um século ou de um milênio a outro, não é o mesmo que atravessar uma fronteira, onde mal deixamos um lado e no passo seguinte nos encontramos no outro. Esta passagem talvez seja mais comparável com o nascimento do dia, onde as primeiras luzes do sol antecedem seu surgimento na linha do horizonte. A noite não cede lugar ao dia de uma vez, repentinamente, sem aviso prévio. Da mesma maneira, o primeiro século do terceiro milênio ainda não chegou, contudo, os delineamentos iniciais do que ele promete ser já se fazem prenunciar: Globalização, automação, terceirização, estes são apenas alguns exemplos.
Para entrever o futuro é preciso não perder de vista o passado. Portanto, rapidamente, para estar em consonância com as exigências atuais, construiremos um pano de fundo com aquilo que consideramos os principais acontecimentos históricos recentes, condição necessária para fazermos um balanço das mudanças relativas à situação da mulher neste período.
Este relativamente curto espaço de tempo marcou um período importante para a humanidade. Para Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos (1995), a história deste século começou em 1914, com a Primeira [fim da página 104] Guerra Mundial, e foi até 1991, quando se consumou o colapso da União Soviética.
Nestes pouco menos de 100 anos, tragédias e conquistas se alternaram nas páginas da História. Este século viveu duas Grandes Guerras Mundiais e, apesar do fim das rivalidades entre USA e URSS, não estamos livres de terminarmos o século com mais uma guerra, a Terceira, possivelmente deflagrada no mesmo país onde eclodiu a Primeira (3).
Este século enfrentou ainda outros conflitos bélicos que deixaram marcas profundas em uma geração: Vietnam, por exemplo. Este século envergonhou-se pelo extermínio de seres humanos mortos aos milhares nas câmaras de gás, entretanto, ainda não se redimiu frente ao contingente infinitamente maior de vítimas em todo o mundo, produzidas anualmente pela fome, pela miséria, pela falta absoluta das condições mínimas de sobrevivência, apesar dos avanços tecnológicos e do aumento das riquezas produzidas, nem envergonhou-se sinceramente pela explosão da bomba nuclear sobre Hiroshima, visto que países como a França insistem ainda hoje em manter testes nucleares, apesar dos acordos internacionais de desarmamento.
Ao lado da importância e da gravidade de todos estes fatos transformados em História, talvez o mais doloroso, neste século, tenha sido o desmoronamento de um sonho, que veio abaixo juntamente com o Muro que simbolizou a demarcação de um território que se pretendeu libertário. Este século viveu a ascensão e queda de um modelo de sociedade que se autodenominou igualitária, sem oprimidos nem opressores, onde a riqueza seria distribuída segundo as capacidades e necessidades de cada ser humano. O sonho acabou, ao menos na forma com que ele se nos apresentou... Mas, assim como qualquer moeda tem duas faces, a realidade não é feita apenas de tragédias. Apesar deste lado trágico, este século elevou a humanidade ao mais alto grau tecnológico e, literalmente, transportou o ser humano ao espaço. Não apenas os pés humanos tocaram o solo lunar, como banalizaram-se as viagens espaciais. Hoje, as partidas ou chegadas dos ônibus espaciais não ocupam mais as primeiras páginas dos jornais nem se constituem em fatos que exijam a formação de cadeias de televisão para retransmiti-los ao mundo.
Ainda mais surpreendente que as conquistas espaciais, a Revolução Tecnológica transformou o planeta, numa dimensão ainda maior que as duas outras revoluções que lhe antecederam. A Revolução Agrícola, [fim da página 105] que começou em algum ponto perdido na História, há aproximadamente dez mil anos atrás, e que avançou lentamente através do planeta, fixou o homem à terra, inventou a propriedade privada, estruturou a vida em sociedade, criou sistemas discriminatórios que dividiram a humanidade em nobres e plebeus, possuidores de sangue azul ou sangue comum, detentores de poder e de riquezas ou desprovidos até do mínimo necessário à sobrevivência. O império da civilização agrícola dominou o planeta até 1650, quando a Revolução Industrial irrompeu na Europa e irradiou-se através de todos os continentes desencadeando uma onda de mudanças profundas. Bem mais acelerada que a primeira, esta segunda Revolução transferiu enormes contingentes populacionais do campo para a cidade, provocou a divisão do trabalho sob vários aspectos, seja na sua divisão internacional, seja na divisão sexual. Mas, não foram apenas nas relações de trabalho que as mudanças se fizeram sentir. O processo de industrialização revolucionou todas as relações sociais, culturais, políticas e econômicas nestes últimos trezentos anos. Neste período foram dominadas as várias formas de energia, inventou-se a máquina e a máquina de produzir máquinas. Os jatos supersônicos encurtaram as distâncias e hoje se viaja segura e rapidamente por todos os continentes.
Entretanto, a Revolução Industrial está conhecendo seu crepúsculo em muito menos tempo que sua antecessora. A linha de montagem está cedendo sua primazia à informatização e à toda parafernália dos ships, que fazem o furor da nova tecnologia. Iniciada a corrida pela miniaturização dos componentes eletrônicos, levou menos de 50 anos para passarmos dos grandes computadores, que ocupavam uma sala inteira, para os microcomputadores que carregamos no bolso. A informação informatizada ganhou igualmente o espaço, hoje ela viaja através de células luminosas, via satélites, pelos quatro cantos do planeta, ou melhor, para além dele.
Talvez não tão rápida e profunda quanto a mudança desejada, a conquista de cada novo direito pela mulher lhe custou muita luta e esteve sempre vinculada a uma situação histórica em que a mudança e a incorporação pela sociedade, do direito reivindicado, tornaram-se inevitáveis. Estes dois elementos - uma dada situação histórica e a conquista de direitos reivindicados pela mulher que, ao serem incorporados pela sociedade provocaram profundas mudanças, nos sugerem uma hipótese de trabalho: [fim da página 106] Todo direito conquistado pela mulher "coincide" com um momento de forte agitação econômica e/ou política. Senão vejamos:
Assim foi com o movimento sufragista em todo o mundo. Somente após a 2a Guerra Mundial, terminada em 1945, a mulher conquistou o direito de voto precedido de uma penosa batalha política e jurídica. No Brasil, este direito foi conquistado uma década antes, igualmente no bojo de uma revolução.
Em meio a esta agitação política geral, intensificou-se a campanha em prol das reformas eleitorais que eliminassem as distinções de sexo no exercício do direito de voto, dentro e fora do Brasil. Nesta luta, o Rio Grande do Norte, terra de Nísia Floresta (4), saiu na frente, introduzindo na Constituição do Estado, sancionada em 1927, um artigo onde "poderão votar e ser votado, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei". (apud. SAFFIOTI, 1976:261) Estes acontecimentos no Nordeste do país não eram por si só suficientes para promover as mesmas mudanças para o conjunto dos Estados. O caráter nacional desta luta foi dado por Bertha Lutz que, desde 1919, havia assumido a liderança do movimento feminista brasileiro. Depois de uma acirrada luta, a Carta Magna da nação, aprovada em 1934, consagraria definitivamente o voto feminino.
O direito à educação foi igualmente conquistado neste período, depois de inúmeras batalhas. Em meio aos acontecimentos políticos que agitaram a nação na década de 30, gestava-se uma outra revolução, a do direito da mulher à educação e, como conseqüência, seu amplo direito à qualificação profissional, este mais difícil de ser conseguido.
Ser normalista (5) foi o caminho encontrado pela mulher brasileira de classe média para ter acesso ao mercado de trabalho. O magistério feminino não é novo. Ele iniciou-se entre nós ainda no período imperial e vinculou-se à própria origem do ensino público primário. Contudo, o direito de ser professora primária foi conquistado à duras penas e enfrentando uma oposição cerrada por parte de alguns intelectuais desde a fase pré-republicana.(REIS, 1994).
Na década de 30 a mulher ainda tinha que lutar pela sua admissão nos cursos secundários, sobretudo aqueles que fugiam da denominação de [fim da página 107] "tipicamente femininos", sendo sua presença nos cursos superiores quase que insignificante. Esta batalha se prolongou por mais duas décadas e somente em 1953 é que seria atingida a ampla equivalência dos cursos de nível médio para efeito de matrícula nos cursos superiores. O que estava ocorrendo no Brasil entre 1953-63? Época de inflamada campanha nacionalista, depois de 8 anos como ditador, Getúlio Vargas retornou como presidente eleito em 1950 e realizou profundas modificações na vida pública do país. No ano seguinte, em meio a uma forte crise política, Getúlio suicidou-se.
A entrada das mulheres nas universidades deu-se sobretudo na fase expansionista vivida durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), responsável pela construção de Brasília, pela adoção do modelo automotivo para o Brasil e pela aceleração do processo de industrialização iniciado na década de 30. Em termos políticos, a agitação dos anos seguintes não foi menor. Primeiro a vitória de Jânio Quadros para a presidência da República, depois sua renúncia, em seguida a posse traumática de Jango Goulart e, finalmente, o início do regime militar em 64, recrudescido em 1968, com o combate aos organismos da esquerda organizada. Em 1964, onze anos após a reestruturação do ensino médio com vistas ao acesso ao ensino superior, 6.890 mulheres concluíram cursos universitários, tendo 20.282 homens concluído no mesmo ano.
Como um enorme vagalhão, iniciado na Europa e espraiado pelos quatro cantos do mundo, surgiu no final dos anos 60 uma ebulição social, marcada pelos avanços tecnológicos promovidos pelo capitalismo em oposição às formas autoritárias de organização social e de relação entre os atores sociais. Contudo, talvez mais importante que tudo isso tenha sido a chamada revolução sexual, desejada pelas mulheres e permitida pelo uso dos anticoncepcionais. Domesticada sistematicamente há séculos, a sexualidade feminina finalmente encontrou nos acontecimentos de 68 um espaço de expressão. Conhecer o próprio corpo, ter direitos sobre ele, poder exercer sua sexualidade voltada para seu prazer, a dissociação entre sexualidade e reprodução (TABET, 1985), estes foram alguns trunfos conquistados, e, mais uma vez, no bojo de acontecimentos políticos de grande repercussão.
Após os anos 70, o expressivo ingresso feminino nas universidades brasileiras teve como conseqüência o implemento de um conjunto de pesquisas sobre a condição feminina nos mais diferentes aspectos de sua realidade quotidiana. A partir dessas pesquisas a mulher começou a ganhar uma visibilidade cada vez maior. Nos primórdios, esses estudos se realizaram numa perspectiva de comparação e confronto entre os sexos, expressos [fim da página 108] pelas duas principais bandeiras do movimento feminista da época : Luta por igualdade entre os sexos ou luta pelo reconhecimento das diferenças entre homens e mulheres.
O passo seguinte, fruto de uma importante reflexão extraída das pesquisas empíricas, foi a construção teórica de uma categoria de análise da realidade social, possibilitando um novo olhar sobre a História (SCOTT, 1990) e sobre a história das mulheres (PERROT, 1984, 1988). De um patamar inicial caracterizado pelos "estudos sobre a mulher" a reflexão evoluiu para "estudos sobre as relações de gênero" dando origem a esta nova categoria de análise, tornada indispensável em qualquer estudo que hoje se faça no âmbito das ciências humanas.
A reviravolta provocada pelas mulheres nos valores, nos costumes e nas análises teóricas não atuou apenas em prol dos interesses femininos. De reivindicação em reivindicação, de conquista em conquista mexeu inclusive com os homens. Obrigados a repensar suas próprias posições a partir das mudanças ocorridas no polo oposto, os homens já começaram a questionar se de fato eles levaram as vantagens propagadas pelo sistema partriarcal. Hoje estão se tornando comuns os estudos sobre a (des)construção da masculinidade (NOLASCO, 1993), tornando possível o velho sonho da construção de um novo homem, de uma nova mulher e, por que não, de uma nova sociedade.
Não é do "ingresso" da mulher no mercado de trabalho que iremos tratar, pois ela sempre esteve presente. Em todas as épocas e lugares a mulher sempre esteve ligada à produção de bens e serviços, mesmo que de forma "invisível". Entretanto, é inegável que houve uma expansão na oferta de emprego para a mulher a partir dos anos 50, sem que tenha havido necessariamente uma ampliação das oportunidades (BARROSO, 1982:17)
A conquista de novos espaços e o início do rompimento dos chamados guetos ocupacionais só veio começar duas décadas mais tarde, a partir dos anos 70, estando ainda longe de ser uma questão solucionada.
Sobre a participação feminina no mercado de trabalho, Cristina Bruschini nos apresenta algumas cifras sobre o percentual de mulheres economicamente ativas, chamando nossa "atenção para a necessária cautela, pois além de revelarem apenas a parcela não-doméstica do trabalho da mulher, esta é ainda subestimada"(BRUSCHINI, 1994). [fim da página 109]
Demonstrar que a mulher sempre trabalhou dentro e fora do lar, denunciar as discriminações sexistas sofridas, demonstrar as estratégias utilizadas pelo capitalismo para auferir ainda maiores lucros ao dispor da mão-de-obra feminina, enfim, dar-lhe visibilidade, transformou-se numa tarefa a ser cumprida, quer pelas intelectuais feministas, quer pelas próprias mulheres trabalhadoras.
Desde os idos de 1968, sintonizadas com os Movimentos pela Anistia, Contra a Carestia, de Luta por Creches, e em meio à onda de manifestações e de protestos dos mais variados matizes, um grupo pioneiro de intelectuais feministas deu início uma série de pesquisas e de formulações teóricas sobre a condição feminina no mundo do trabalho, buscando dar-lhe "visibilidade". Essas pesquisas foram importantes para levantar alguns dos véus que recobriam a assexuada classe trabalhadora brasileira, urbana e rural.
Além de formadoras de opinião estas pesquisas empíricas e análises conceituais serviram de estímulo e de subsídios para a organização da mulher-trabalhadora, oferecendo dados para a formulação de suas pautas de reivindicações e melhores instrumentos no encaminhamento de suas lutas específicas. Juntamente com suas análises e observações, inúmeras foram as pesquisadoras que se colocaram no papel de assessoras dos grupos de mulheres trabalhadoras, da cidade e do campo.
Ao demonstrar que "A classe operária tem dois sexos" (6), os estudos feministas revelaram a situação de subordinação da mulher na esfera do trabalho, sua menor qualificação profissional, sua remuneração inferior por trabalho igual, sua alocação em funções de menor prestígio dentro das empresas. Demonstraram igualmente que, não apenas o trabalho, mas que o poder também tem dois sexos (7).
Visto que a "trabalhadora" não existia enquanto "mulher", a "mulher-trabalhadora" submergia numa totalidade chamada Classe trabalhadora: Uma classe assexuada, pura em sua origem, dispondo de uma ideologia própria e distinta da classe dominante, necessitando apenas tomar consciência de seu próprio valor para colocar-se em ação rumo à tomada do poder. Assim era definida pelos dirigentes sindicais e pela esquerda a classe trabalhadora brasileira, desde o início do processo de industrialização brasileiro até os anos 80. A multiplicação dos estudos [fim da página 110] sobre a condição feminina somados às reflexões sobre a queda do modelo socialista provocaram, sem dúvida, a revisão de muitos destes pré-julgamentos.
"A libertação da mulher virá como uma conseqüência "natural" da libertação da classe trabalhadora do jugo do capitalismo". Entrevistando um alto dirigente sindical:
O binômio mulher-trabalhadora não existia para o movimento sindical e ainda menos para a esquerda, em suas mais diferentes vertentes. Os intelectuais, inclusive os chamados intelectuais orgânicos, ou seja, os dirigentes políticos e sindicais oriundos das camadas populares, consideravam um atraso ou um desvio a introdução de reivindicações específicas da mulher nas pautas de negociação. A mulher deveria "esquecer" sua condição de mulher, para lembrar-se apenas que era uma trabalhadora a mais dentro de uma classe em luta. Opiniões como estas foram compartilhadas, à direita e à esquerda, por vários atores sociais.
Locus apropriado para o acolhimento das reivindicações provenientes das parcelas organizadas da classe trabalhadora, os sindicatos e as centrais sindicais deveriam ser o núcleo mobilizador do conjunto dos associados e da sociedade a fim de encaminhar suas lutas. Porém, como diz [fim da página 111] o velho ditado popular, "na prática, a teoria é outra", nem sempre a realidade corresponde ao modelo idealizado. A mulher trabalhadora, rural ou urbana, sempre teve muita dificuldade para se fazer representar nos seus órgãos de classe e para encaminhar suas reivindicações.
Nos anos 70, em meio ao surgimento dos sindicatos de trabalhadores rurais, o processo de sindicalização adotado obedeceu às mesmas regras instituídas para o tradicional recrutamento da mão de obra, ou seja, o recrutamento familiar, que já havia perdido o seu vigor dado que se instalava no campo o processo de assalariamento. Sem estar atento a esta mudança, ou por estar atento demais, os sindicatos procediam apenas a sindicalização do homem, alegando que a esposa já era sua beneficiária não havendo, portanto, necessidade que ela fizesse uma sindicalização própria. Este procedimento excluía, em primeiro lugar, toda trabalhadora maior de idade que não fosse casada, em segundo lugar, o status de beneficiária do pai ou do marido, não lhe dava o direito de votar e de ser votada (MIELE, 1985). Contra isso as mulheres se rebelaram, denunciando o fato no Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais de 1985.
Como analisou Paola Cappelin, "A resistência do movimento sindical em aceitar a presença feminina traduz-se inclusive no fato de impedir que as mulheres se associem aos sindicatos, especialmente os rurais. Isto impulsionou-as a denunciarem este fato no 4o Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em 1985" (CAPPELIN, 1989) Interrogando-se sobre o significado da clara disputa travada entre os dirigentes sindicais e as trabalhadoras, estas exigindo o cumprimento do seu direito à sindicalização e aqueles reagindo, como se isto se constituísse numa ameaça, Cappelin conclui que "a demanda de sindicalização por parte das trabalhadoras pode questionar a representação política exercida até agora pelos homens no interior da família trabalhadora"(op. cit.,1989).
Tive oportunidade de confirmar este argumento (8). Na cidade de Araruna, na Paraíba, nos anos de 1983-84, houve uma enorme movimentação de trabalhadoras rurais lutando pela preservação de sua terra, de seus roçados, contra um despejo promovido por um proprietário que acabara de comprar a propriedade onde viviam há mais de meio século. Após haverem lutado contra os tratores do proprietário, contra seus mandatários, contra a polícia e, inclusive contra a inércia do presidente do sindicato, estas mulheres resolveram lutar por sua sindicalização, contra a qual o presidente resistia : "Ora, porque querem elas se associar se já podem utilizar os serviços do sindicato? Associar mais um significa que a família [fim da página 112] vai ter que gastar mais dinheiro por um benefício que já tem. O que as mulheres querem é acabar com a família e com o casamento. Se o homem deixar a mulher entrar no sindicato, seu casamento está perdido!" (In: MIELE, 1992).
Sentir-se "ameaçado" em seu papel de chefe da família quando a mulher reivindica a ampliação do seu estatuto de esposa e mãe, não é nenhuma novidade, nem exclusividade dos representantes da classe trabalhadora. Toda vez que os homens sentem que podem perder suas prerrogativas cedendo algum espaço à mulher, a primeira reação é a de invocar a preservação da família, da moral e dos bons costumes. Duas décadas antes da proclamação da República, comenta Heleieth Saffioti, reagindo à introdução das idéias inspiradas no liberalismo e cientificismo estrangeiros, o judiciário brasileiro negou à mulher qualquer participação política ou administrativa, invocando a preservação da família (9).
O confinamento da mulher oculta, na verdade, a preservação das prerrogativas masculinas. Aceitar que a mulher se associe aos organismos de classe implica em aceitar compartilhar com ela a direção destas entidades, o que implica por sua vez em abrir mão das prerrogativas de chefe inconteste, concedidas ao homem pela sociedade patriarcal. Aberto este flanco no espaço público, certamente advirão conseqüências no espaço privado. Conscientes disto, instintivamente os homens resistem.
É necessário ressaltar, entretanto, uma diferença de atitude nos homens que estão em posição de comando dentro dos sindicatos e aqueles que são apenas associados. Estes últimos elegem com seus votos, chapas sindicais encabeçadas por mulheres, às vezes chapas compostas exclusivamente por elas. Entretanto, é importante verificar que o estatuto pelo qual elas são eleitas, pode não ser o de mulher, mas o de mãe. Quando a mulher atinge a idade próxima da menopausa, quando ela perde a capacidade procriadora, ela torna-se uma espécie de ser amorfo, assexuado, mas que dispõe de muito poder. Nesta fase, já não é mais de uma mulher que se trata, ela assumiu a figura arcaica da Divina-Mãe. Os homens não se sentem ameaçados, ao contrário (10). Se isto funciona para o conjunto dos associados, quando se trata dos dirigentes sindicais, dos seus pares, a coisa será bem diferente. Aí é a guerra! [fim da página 113]
A resistência à presença feminina no meio sindical não se dá apenas no meio rural, ela se dá igualmente no meio urbano. Apesar dela, as mulheres continuam lutando em várias frentes no mundo do trabalho. De um lado, buscando romper os guetos ocupacionais e as ditas profissões femininas (11). De outro, fazendo valer seus direitos de participação nas entidades sindicais, através do reconhecimento o seu estatuto de mulher-trabalhadora. Nem só mulher, tomada exclusivamente no seu papel de esposa-mãe, nem só trabalhadora, reduzida a um ser assexuado.
Cristina Bruschini (1994), ao apresentar algumas perspectivas de políticas sociais para o futuro, aponta a necessidade de ampliar a atuação na luta contra os estereótipos e preconceitos que têm encaminhado as mulheres para trabalhos femininos, desenvolvendo uma política de livros didáticos não-sexistas, uma atuação ao nível da mídia, estimulando a veiculação de programas que mostrem a mulher em novas ocupações, até o estabelecimento de medidas que encorajem as empresas a admitirem mulheres em cargos inovadores. Reforçando esta análise, Paola Cappelin (1994) demonstra que na redação definitiva da Constituição de 1988, a mulher não é considerada enquanto ser humano, mas apenas em seus papéis de esposa, mãe e trabalhadora.
Observamos que as mulheres têm tido a capacidade de introduzir suas reivindicações específicas nos momentos de crise aguda e esta tem demonstrado ser uma boa estratégia : assim foi com a luta sufragista, com o direito à educação e à profissionalização, assim como em várias reivindicações específicas. Entretanto, o que caracteriza atualmente a luta já não são mais as reivindicações pontuais como no passado. Hoje, busca-se uma nova concepção de "ser humano", como diz Paola, e o fim dos "estereótipos e preconceitos" que discriminam a mulher, como propõe Bruschini. [fim da página 114]
Tendo em mente estas diretrizes apontadas, é fundamental revisitar as velhas e sempre atuais bandeiras de luta do Movimento Feminista : Igualdade entre os sexos ou reconhecimento de suas diferenças.
A bandeira da igualdade já tinha sido adotada, desde 1949, por Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo: "Um mundo em que os homens e as mulheres seriam iguais. (...) As mulheres, educadas e formadas exatamente como os homens, trabalhariam nas mesmas condições e pelos mesmos salários; a liberdade erótica seria admitida pelos costumes, mas o ato sexual não seria mais considerado um `serviço´ que se remunera".
Por outro lado, Roger Garaudy (1982), ao analisar o movimento feminista como um caminho para a libertação da humanidade do jugo do sistema capitalista, afirma que "devemos e podemos ir mais adiante: não basta mais apenas reivindicar com as mulheres o direito à igualdade, mas o direito à diferença. Já não basta exigir que as mulheres tenham lugar igual ao dos homens no âmbito de uma mesma sociedade de dominação, mas de criar, na esteira do movimento feminino, uma sociedade que ultrapasse as dominações".(grifos nossos)
A reivindicação da igualdade entre os sexos colocada por Simone de Beauvoir, talvez revele muito mais o sentimento de injustiça contra as mulheres, do que o verdadeiro desejo de igualdade com os homens. A cultura foi perversa com ambos, dividindo homens e mulheres ao meio, reduzindo-os à metade do que poderiam ser e, neste processo, ambos saíram perdedores, mesmo que, aparentemente, o homem desfrute os privilégios de sua pseudo "superioridade". Sendo os homens apenas a metade do que poderiam Ser, quais vantagens teriam as mulheres em lutar para se tornarem iguais à sua metade oposta? (12)
O Ser humano já foi uma totalidade, um Ser por inteiro e, de algum modo, guardamos no fundo de nós mesmos este desejo de voltar a ser um Ser completo. No Banquete, Platão saborosamente nos relata o discurso de Aristófanes, no qual afirma que, num passado muito remoto, os seres humanos tinham uma forma esférica, possuíam os dois sexos e eram perigosamente auto-suficientes. Esta auto-suficiência incomodava os deuses do Olimpo, que decidiram então dividi-los ao meio, para melhor se fazerem reverenciar, e assim foi feito. Divididos, estes seres ficaram tristes e, desesperadamente, passaram a viver em função da busca de sua metade perdida, esta mesma metade que buscamos ainda hoje, tantos séculos depois, [fim da página 115] esta mesma "metade arrancada de mim" cantada nos versos do poeta Chico Buarque, ou ainda quando alguém interroga outro alguém se já encontrou sua "cara-metade".
Esta incessante busca de complementaridade nos remete à discussão sobre a dualidade masculino-feminino. Por um lado, nada pode ser explicado em termos de si-mesmo. Nada existe sem o seu contrário. Por outro, existem duas formas de conceber a dualidade : seja de forma linear, onde os opostos se excluem, raciocínio herdado da lógica formal pelo pensamento ocidental, seja de forma circular, onde os opostos convivem dentro da mesma unidade, interagindo e se complementando, formando uma totalidade que não exclui a existência dos opostos, ao contrário. Esta circularidade envolvente, como a serpente que engole a própria cauda, é típica do pensamento oriental.
A justaposição dos atributos masculinos e femininos à concepção que temos sobre o homem e sobre a mulher resultaram que: os atributos opostos que formam a bipolaridade que compõe o ser humano, cessam de ser apenas "atributos" ou "qualidades" relativas ao Ser, para tornarem-se o Ser ele mesmo. Ou seja, para tornar-se socialmente reconhecido enquanto homem, é necessário que ele apresente somente os atributos culturalmente reconhecidos como masculinos. Se o rapaz se mostra diferentemente do esperado, a sociedade será implacável com ele. Com a mulher tudo se passa da mesma maneira. Para não ser considerada como "masculinizada", a mulher deve apresentar unicamente os atributos culturalmente reconhecidos como femininos. Esta "colagem" resultou na redução do Ser a um conjunto exclusivo de atributos, ficando excluídos os atributos opostos. O resultado desta oposição linear e excludente dos atributos femininos e masculinos que compõem o ser humano reduziu o homem à sua "masculinidade" e a mulher à sua "feminilidade".
Cada ser humano é uma Totalidade, ou como disse David Bonh, "um inteiro não dividido" (13), na concepção da física quântica. Esta visão é igualmente partilhada por Carl G. Jung ao estudar os fenômenos do psiquismo humano. Jung parte do princípio que o ser humano é um todo original, um ser pleno em sua totalidade, um Ser que nasce completo, inteiro. Entretanto, em sua existência, fruto de suas experiências individuais e culturais, este Ser perde sua unidade primária e, aquilo que era inteiro, foi dividido. [fim da página 116]
Comentando este conceito junguiano, Marie Louise von Franz afirma que, "este conceito de um Todo original da personalidade pode parecer evidente. Entretanto, existem outras correntes que afirmam que a personalidade é adquirida gradativamente e que somente mais tarde aparecerá um tipo de unidade coerente e organizada. Jung não aceita esta concepção fragmentária da personalidade" (FRANZ, 1991).
Segundo Jung, o Ser não luta para se tornar um Todo, ele nasce como um Todo. O que ele faz durante toda a sua existência é desenvolver este Todo original ao mais alto grau de coerência e harmonia e cuidar para não se deixar fracionar em sistemas autônomos e conflituais. Para Jung, o trabalho psicanalítico não faz mais que ajudar os pacientes a reencontrar sua unidade perdida.
Nosso psiquismo é formado pelos aspectos feminino e masculino, que Jung chamou de anima e animus (14), obedecendo a mesma lei biológica pela qual a Natureza concebeu nosso corpo. Em sua sabedoria, a Mãe-Natureza não partilhou a produção hormonal em exclusividade : hormônios masculinos para os homens, hormônios femininos para as mulheres! Em nosso corpo, sejamos homens ou mulheres, circulam os dois tipos de hormônios, equilibradamente dispostos em quantidades diferentes garantindo assim a especificidade das funções biológico-anatômicas de cada sexo. Mas, quando o equilíbrio é rompido e a produção de um deles se desorganiza, seja por falta ou por excesso, a saúde se degrada. A saúde é assegurada pela dualidade não antagônica dos componentes masculinos e femininos, muito mais próxima da concepção oriental de unicidade entre os opostos, que a dualidade linear ocidental, que os torna antagônicos e excludentes.
Da mesma maneira que no plano físico, a saúde mental é mantida pela necessária harmonia entre os princípios masculino e feminino da personalidade. Para que esta seja equilibrada, o lado feminino da personalidade do homem, assim como o lado masculino da personalidade da mulher devem poder se exprimir ao nível da consciência e do comportamento. Quando um homem revela unicamente os traços masculinos de sua personalidade, seu lado feminino permanecerá inconsciente em como conseqüência deste não-desenvolvimento permanecerão em seu estado primitivo. Eis porquê os homens que mostram uma aparência demasiadamente viril são freqüentemente frágeis e submissos interiormente.
Tomando o Ser Humano em sua dimensão integral, no harmonioso equilíbrio da multiplicidade que o compõe, nos damos conta do reducionismo [fim da página 117] cultural sobre o que é um Ser Homem e um Ser Mulher. Cada qual foi reduzido à seu sexo biológico, à sua própria metade. Esta "cirurgia cultural" produziu dois seres divididos, seccionados, reduzidos à metade da Totalidade que poderiam ser. Homens e mulheres saíram perdedores deste processo.
Habituados à divisão das coisas, fomos conduzidos a considerar o Todo pelas suas partes, a essência por sua aparência. O resultado é que os atributos bipolares masculinos-femininos, que compõem cada indivíduo, foram de tal forma sendo subdivididos e excluídos, que terminaram por seccionar o próprio ser humano, transformando-o num ser que não é mais que sua própria metade. Em conseqüência, para ser reconhecido enquanto "homem", o garoto deve aprender desde cedo a esconder seu lado sensível, intuitivo, e por que não, "frágil", tornando-se assim apenas a metade do que potencialmente ele é. Homens e mulheres deixaram de ser uma Totalidade, para transformarem-se na metade aparente do SER que potencialmente poderiam ser. O resultado deste massacre de nós mesmos é evidente: passamos a vida inteira buscando nossa metade perdida, nossa Totalidade fracionada, nosso "inteiro que foi dividido".
Aprisionados nas malhas da aparência, o velho racionalismo cartesiano nos levou a tudo conceber em termos antagônicos : "A" é diferente de "B". Ou isto ou aquilo. Vencer este esquema e pensar em termos da multiplicidade que compõe a unidade - isto E aquilo - exige uma mudança de paradigma, ou seja uma mudança de modelo, uma mudança de visão de si-mesmo e do mundo. Em outros termos, é neste jogo incessante entre os opostos que podemos encontrar a chave para chegar à harmonia e plenitude do ser. Neste sentido, torna-se enganosa a oposição entre estas duas bandeiras de luta levadas pelo movimento feminista. Não só é falsa a oposição entre o direito à igualdade contraposto ao direito à diferença, mas, reconhecer que a harmonia e plenitude do ser só será atingida pelo jogo incessante entre estes opostos.
Em artigo de Heloisa de Souza MARTINS (1994) sobre os dilemas do movimento sindical em face da terceirização, a autora retoma as idéias de Flávio PIERUCCI (1990), de como o "respeito às diferenças" e o "direito à diferença" propostos tão enfaticamente pela esquerda, acabam se encontrando com a direita, que sempre reconheceu a diferença e, portanto, a desigualdade. No campo do pensamento de direita, o diferente não é e não pode ser igual, ao passo que o reconhecimento da diferença pela esquerda implica em não abrir mão da igualdade. Ao se pautar pelo discurso da diferença, portanto da desigualdade, a direita sempre justificou seus direitos, prerrogativas e privilégios, justificando igualmente a [fim da página 118] não-posse de tais bens pela maioria dos comuns dos mortais. No combate às desigualdades impostas pela direita, a esquerda contra-atacava com o discurso da igualdade, buscando uma sociedade mais justa, sem classes, sem oprimidos nem opressores. No entanto, a esquerda custou a se dar conta (se é que tenha se dado), que esta "igualdade" é tão massacrante quanto à descarada "desigualdade" justificada pela direita. As dificuldade enfrentadas pelas mulheres ao defender a incorporação de reivindicações específicas nas pautas sindicais mostra o quanto é perversa essa "igualdade", dentro de uma classe trabalhadora assexuada. As mulheres foram as primeiras a reivindicar o "respeito às diferenças" entre os sexos no mundo do trabalho, sem, contudo, deixar de exigir o igualmente necessário "direito à igualdade de direitos" entre os sexos. Contraditório? Talvez menos do que se imagine.
Cuidando para não cair nas ciladas da diferença, que mal usada pode comprometer as esperanças de igualdade, a única alternativa é recusar-se a opor a igualdade à diferença e insistir continuamente nas diferenças como a condição das identidades individuais e coletivas, como desafio constante à fixação dessas identidades, e como o verdadeiro sentido da própria igualdade.
Um número cada vez maior de cientistas e intelectuais ressaltam que um novo paradigma está se construindo, determinando uma nova forma de olhar para si-mesmo e para o mundo, uma nova maneira de se relacionar consigo próprio e com o outro, uma nova consciência de si, do planeta e do universo. Ou seja, um novo modelo para a compreensão da realidade esta sendo forjado. Na esteira de todas estas transformações, a vida em sociedade também está mudando.
"As mulheres sustentam a metade do céu", diz um provérbio chinês. O Céu é uma totalidade sustentada por duas forças em equilíbrio, o princípio masculino e o princípio feminino. O mesmo se pode afirmar do ser humano, ele também é uma totalidade. Assim como o Céu, ele é um amálgama dos princípios. Vítima da cultura, homens e mulheres resultaram em seres fragmentados, enfraquecidos, mutilados, metade da totalidade que potencialmente cada um já foi. Homens e mulheres foram igualmente vítimas da cultura, dos estereótipos e dos preconceitos sexistas. Da mesma forma que cada indivíduo sai fortalecido pelo "reencontro" de sua metade perdida, que não é o outro, mas que está dentro de si-mesmo, a sociedade pode igualmente se beneficiar da equanimidade na divisão do poder entre os sexos. Se as mulheres conquistaram outros espaços sociais, os homens já começam, mesmo que timidamente, a empreender uma viagem para o interior do lar e, sobretudo, para dentro de si-mesmos. [fim da página 119]
Às denúncias feministas de opressão da mulher, seguiu-se a consciência de que, finalmente, todos os seres humanos foram vitimados pela opressão imposta pela cultura. Ao oprimir a mulher, o homem não se tornou um vencedor, ao contrário, ele apenas revelou o que havia de pior nele mesmo. Igualmente nefasta, seria o uso exclusivo do poder pelas mulheres. Na falta do necessário equilíbrio, qualquer uma das polaridades atuando em exclusividade, apenas mostraria o seu lado obscuro.
Para onde quer que olhemos, no domínio da Natureza, encontraremos polaridades e não predominâncias. A imagem de uma Mãe-Toda-Poderosa é tão nefasta quanto a imagem de um Pai-Todo-Poderoso. Nenhum em exclusividade, pois a vida provém de ambos. O princípio feminino é o fluido cósmico, que dá forma e organização, assim como o princípio masculino é a centelha da criação. Homens e mulheres os possuem, apenas em graus diferentes nas diferentes ocasiões. Estas polaridades nada mais são do que as partes que compõem a totalidade que é cada ser humano. Basta reconhecê-las em si-mesmo. Dentro desta visão de polaridades que se complementam ao invés de se excluírem, a luta pela "libertação feminina", tomou novos rumos e imprimiu uma nova consciência social. Hoje a tendência da luta é a sua evolução para a "libertação do ser". Uma luta por novos relacionamentos, alicerçados em novas bases. O outro não é reduzido à metade buscada, mas é respeitado em sua unicidade. O relacionamento passará a ser de dois inteiros e não de duas metades que se destroem num processo de "fagocitose" mútua.
Todas as instituições organizativas da sociedade estão vivendo uma profunda reestruturação, a fim de se tornarem mais compatíveis com a redefinição de valores e de papéis vividos pelas gerações atuais. Um novo estilo de família, de escola, de universidade, de indústria, de governo, um novo modo de trabalhar e fabricar mercadorias, um novo modo de viver, de amar, de se relacionar já se mostram como possibilidades efetivas (MIELE, 1994b). Mesmo que à custo de lutar contra os mais empedernidos defensores do tradicionalismo, o movimento sindical não tem outra saída que não a de tornar-se sensível a estas mudanças, que preconizam as novas tendências, sob o risco de "perder o bonde da História". [fim da página 120]
As Mudanças na Família
Desde o seu surgimento a humanidade já conheceu diversas formas de família, compatíveis com as diferentes necessidades que caracterizam cada momento histórico. Antes que a Revolução Industrial se expandisse por todos os quadrantes, onde quer que a agricultura predominasse, as pessoas tendiam a viver em grandes grupos multigeracionais, formados por tios, tias, avós, primos e afins, todos vivendo sob o mesmo teto, todos trabalhando juntos numa mesma unidade de produção : o campo. A família era ampliada, imóvel e enraizada no solo. O contrato de trabalho era feito com o chefe da família, mas o empregador logo se interessava em saber com quantos braços adicionais ele poderia contar. Naquele tempo, no campo ou na cidade, a família era numerosa.
Quando a produção econômica deslocou-se do campo para a cidade já não interessava mais ao capital a contratação familiar da mão-de-obra, por não ser adequado às necessidades da indústria. Esta, precisava de um trabalhador independente, "livre". A família numerosa, enquanto valor cultural, começou a ceder espaço para uma família reduzida, ágil, desvencilhada de todos os seus pesos e contrapesos.
Sobrecarregada por parentes, às vezes velhos e doentes, e tendo uma quantidade enorme de filhos, a família rural era tudo, menos móvel. Gradual e penosamente a estrutura familiar começou a mudar. Desagregada pela migração, desalojada pelo êxodo para as grandes cidades, abaladas por tempestades econômicas, as famílias livraram-se de parentes indesejáveis, ficaram menores, móveis e mais adequadas às necessidades da realidade industrial. A chamada família nuclear, composta por pai, mãe, dois ou três filhos, tornou-se o padrão "moderno" socialmente adaptado à sociedade industrial. Para liberar braços para o serviço na fábrica, algumas das funções básicas da família foram distribuídas para novas instituições. Assim nasceu o ensino público, ficando a educação das crianças entregue à escola. O cuidado com os idoso foi entregue aos asilos de velhos. Acima de tudo a nova sociedade exigia mobilidade. Precisava de trabalhadores que seguissem os empregos para onde as indústrias ou os bancos se instalassem.
As mudanças na família não pararam por aí. Hoje, a família nuclear característica da sociedade industrial está mudando. Ela está se tornando uma família complexa, visto que complexas são as novas relações estabelecidas: A partir da separação do casal, a mulher assume outro [fim da página 121] "casamento" (15), podendo ter outros filhos com o novo companheiro, o ex-marido também se "casou" com outra e nos fins de semana vai passear com os filhos da primeira esposa. No reveillon, para facilitar as coisas, reunem-se todos para comemorar a chegada de um novo ano...
As Mudanças na Escola
Quando o trabalho se deslocou do campo para as indústrias, era de fundamental importância preparar as crianças, futuros operários, para a vida da fábrica. A escola veio como resposta a um grave problema enfrentado pela sociedade industrial: era quase impossível converter trabalhadores tirados das ocupações rurais, ou de ofícios artesanais, em operários adaptados à realidade da fábrica. Se a mão de obra jovem pudesse ser preparada com antecedência os problemas da disciplina industrial seriam mais facilmente resolvidos. O resultado foi a criação de uma estrutura centralizada, que garantisse a educação em massa.
Nascida para servir às necessidades do modelo industrial, a escola primária ensinava leitura, escrita, as quatro operações, um pouco de história e geografia. Este, segundo Alvin Toffler (1980) era o curriculum visível. Entretanto, por debaixo dele existia um outro, "oculto", tão ou mais importante que o primeiro. Consistia (e talvez ainda persista em alguns países) de três "cursos preparatórios": o primeiro, de "pontualidade", o segundo, de "obediência" e o terceiro, de "resignação" ao trabalho repetitivo.
O trabalho na fábrica exigia trabalhadores que se apresentassem pontualmente, especialmente os operários das linhas de montagem, razão pela qual os portões da escola fechavam impreterivelmente na hora. O trabalho fabril exigia pessoas que aceitassem sem objeções as ordens da hierarquia. Regüadas, bolos nas mãos ou ajoelhar sobre grãos de milho garantiam a autoridade da professora sobre os alunos, bem como a futura subordinação destes ao chefe da sessão. A linha de montagem exigia homens e mulheres dispostos a realizar operações brutalmente repetitivas, Não por acaso o castigo escolar mais comum, algumas décadas atrás, era escrever 100, 200, 500 vezes a mesma frase num caderno... É inquestionável que a educação pública foi um passo humanizante. Ela proporcionou a socialização do conhecimento, ela democratizou o acesso ao saber. Não obstante, as escolas que surgiram sob a égide da industrialização, [fim da página 122] buscaram padronizar a mão-de-obra, geração após geração, procurando transformá-la numa força de trabalho maleável e adaptada às exigências da produção em série. Estabelecendo sistemas de educação de massa, o governo acelerava a adaptação da estrutura familiar às necessidades do sistema fabril, orquestrando a complexidade dos interesses em jogo.
A partir das mudanças introduzidas pela Era da Informática, a sociedade industrial está cedendo lugar a um novo modelo de sociedade. Vivendo as novas regras da globalização, do rompimento de fronteiras, dos ships, da comunicação celular, o modelo educativo característico da sociedade industrial já não serve mais às novas necessidades. O que se espera da mão-de-obra atual é raciocínio, criatividade, rapidez, capacidade de solucionar problemas, exigências que estão longe de ser preenchidas pelo "modelo" imposto pela sociedade industrial. Pontualidade, obediência e resignação deixaram de ser úteis.
Na sociedade pós-industrial, os super e minis computadores eqüivalem à máquina à vapor da era industrial. Imprescindíveis à maioria das atividades contemporâneas, os computadores invadiram lojas, farmácias, livrarias, locadoras, indústrias, laboratórios, universidades e nossos lares. Destinados a remodelar não apenas a esfera da produção, da atividade científica ou do comércio (hoje qualquer balconista tem que saber lidar com um computador para ser admitido no emprego), seu impacto mais profundo está na transformação da própria sociedade.
As Mudanças de Paradigma
Aprisionado nas malhas da aparência, o velho racionalismo cartesiano nos levou a tudo conceber em termos de uma dualidade anatagônica : "Ou isto, ou aquilo". Vencer este esquema e raciocinar em termos da multiplicidade que compõe a unidade exige uma mudança de paradigma, ou seja, um novo modelo de construção do saber.
Habituados à divisão das coisas, como processo primário para poder conhecê-las, fomos conduzidos a considerar o todo pela parte, a essência pela aparência. Hoje, o que podemos verificar é uma tendência à reunificação de tudo o que foi anteriormente separado. Estamos vivendo o momento dos "novos relacionamentos", na reaproximação entre matéria e espírito, no rompimento das barreiras entre ciência e religião sem que nenhuma perca a sua especificidade, mas, ao contrário, amplie seus horizontes ao se utilizar de uma perspectiva que não é originalmente a sua.
Estes novos relacionamentos também estão sendo buscados pelo próprio ser humano, quando este busca encontrar sua verdadeira identidade. [fim da página 123] Enquanto apenas as mulheres estavam lutando pela libertação dos preconceitos e contra a dominação masculina, tinha-se a impressão que o homem era o grande privilegiado. Hoje, muitos e muitas já estão se dando conta que, tanto quanto a mulher, o homem foi submetido aos valores produzidos pela cultura, transformando-se num ser ainda mais frágil do que a pretensa fragilidade que ele se acostumou a imputar à mulher. O resultado desses novos relacionamentos é que uma gama inimaginável de possibilidades se abrem em todos os campos. Nada está delimitado, nenhum modelo se mostra capaz de predizer o futuro, este está por ser construído.
Quanto ao movimento sindical, mais do que nunca deve estar atento às mudanças que, ao menos à curto prazo, não estão sendo benéficas ao trabalhador. Pensando e agindo com base num referencial já superado, lutando com os parâmetros da sociedade industrial contra as investidas de uma sociedade ordenada pelos novos padrões, ele não poderá ser um legítimo defensor dos interesses dos trabalhadores. Assim como outras instituições, não há outra saída que não a de sua transformação, a partir dos novos elementos colocados pela sociedade.
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2) Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB.
3) Em 1914, o assassinato do herdeiro do trono da Áustria, Francis Ferdinand, na cidade de Sarajevo, serviu de pretexto para que o Império Áustro-Húngaro declarasse guerra à Servia, alastrando rapidamente o conflito por toda a Europa.
4) Nísia Floresta Brasileira Augusta, (1810-1885), primeira feminista brasileira, traduziu e publicou em Recife o livro da inglesa Maria Woolstonecraft, Direitos de Mulher, no ano de 1832, aos 22 anos de idade. Depois de ter vivido seus últimos 28 anos na Europa, morreu em Paris.
5) Em 1930, o Estado de São Paulo contava com 10 escolas normais públicas, sendo duas na capital e oito no interior, que formaram neste ano 137 normalistas homens e 1.066 normalistas mulheres. Com este contingente, o corpo docente das escolas primárias passou a ser quase que exclusivamente feminino, como era o caso do Rio de Janeiro que, em 1935, contava com 99% de mulheres em seu quadro. (Saffioti, 1976, 221)
6) Este título foi utilizado por duas importantes estudiosas da condição feminina: Elizabeth Souza-Lobo (1991) e Danielle Kergoat (1994).
7) Resultado de um Seminário realizado em Paris, o livro Le sexe du pouvoir : femmes, hommes et pouvoirs dans les organisations, foi um marco na construção de um referencial teórico no campo dos estudos das relações de gênero.
8) Em pesquisa de campo realizada para elaboração de minha tese de doutorado.
9) "A mulher não deve figurar nas assembléias eleitorais, nos parlamentos, nos conselhos supremos do Estado, nos cargos públicos de qualquer ordem, por motivos morais e sociais". Sá e Benevides, Filosofia Elementar do Direito Público, Interno, Temporal e Universal. SP, 1887, (apud Saffioti, 1976: 205)
10) A Paraíba conta com 20 mulheres presidentes de Sindicatos de Trabalhadores Rurais, das quais 14 ainda estão em exercício, eleitas por uma maioria de associados do sexo masculino. Para uma análise mais detalhada desta questão veja Miele 1994a.
11) A segregação profissional da mulher não se dá apenas entre profissões diferentes, mas igualmente no seu âmbito interno. A medicina é um caso típico. As médicas são sobretudo pediatras e ginecologistas, reproduzindo, ao nível profissional, as "tarefas femininas" dispensadas dentro do lar, ficando as especialidades de maior prestígio e ganho salarial para os profissionais do sexo oposto. Raras, quase inexistentes, são as cardiologistas, neuro-cirurgiãs ...
12) Faço aqui um pequeno resumos das idéias em torno desta questão, que foi longamente discutida em minha tese de doutorado. (Miele, 1992).
13) David Bohn (1992) afirma que "A realidade é um inteiro não dividido! Esta maneira de conceber a realidade exige que se depasse a linearidade para privilegiar a circularidade, como o símbolo da serpente que morde a própria cauda, antigo símbolo da unidade. Esta circularidade permite ir além da simples diversidade e estabelecer a união entre a parte e o Todo, muito mais profunda que a simples adição das partes".
14) Anima é o lado feminino da personalidade masculina e Animus é o lado masculino da personalidade feminina.
15) "Casamento" neste novo contexto não pressupõe registro civil ou ato religioso. É um contrato estabelecido apenas entre as partes, a ser dissolvido caso não dê certo.
RELAÇÕES DE GÊNERO E PRÁTICAS SINDICAIS: Estratégias e Perspectivas (1)
Neide Miele (2)
Uma Retrospectiva : 1900 - 1995
Lutas Femininas no Século XX
As Lutas Femininas no Mundo do Trabalho
Lutas Femininas no Mundo Sindical
"Esta questão me preocupa verdadeiramente. É claro que deve haver um espaço democrático dentro do MS que permita também a participação da mulher na vida sindical, Mais que elas participem sem pré-julgamentos e sem discriminações. Com isso a gente pode evitar que a mulher se organize fora do movimento sindical, em paralelo. É preciso que a mulher tenha uma consciência de classe, que ela lute ao lado do seu marido. É dentro desta ótica que a CONTAG está estimulando a criação de programas específicos para as mulheres dentro dos STRs. Não podemos deixar de reconhecer algumas reivindicações específicas das mulheres, mas temos que tomar o cuidado de não estimular nenhuma organização fora do MS. Se as mulheres se organizarem paralelamente, isto vai enfraquecer a luta maior, que é contra o capitalismo" (In: MIELE, 1992)
Estratégias de Luta e Perspectivas
Mudanças e Perspectivas
Bibliografia
BARROSO, C. (1982). Mulher, Sociedade e Estado no Brasil. São Paulo: UNICEF/Brasiliense.
Notas
1) Texto apresentado no VII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 4 a 6 de setembro de 1995, no IFCS/UFRJ.