Este trabalho é parte resultante da pesquisa "Quando os Sinos Dobram... ( Doença, medo e morte nos tempos do cólera - Nordeste: 1856/1862 ), e pretende analisar alguns aspectos da Medicina Social no Nordeste no século XIX e a sua relação com a reorganização do espaço urbano.
As transformações que se deram no campo no final do século XIX e início do século XX foram fundamentais para as alterações do espaço urbano nas cidades nordestinas e consequentemente para as mudanças do seu quadro sanitário.
Neste período, ocorre no Nordeste, a substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado. Entretanto, as transformações ocorridas não apagaram as marcas da sociedade tradicional.
As migrações Nordeste - São Paulo chegam a formar um contigente considerável de trabalhadores que vai suprir os postos de trabalho criados pela industrialização do sudeste e contribuir para manter baixos os níveis de remuneração do trabalho assalariado. Na década de 80 ocorreu uma forte corrente migratória do Nordeste para a zona cafeeira, em função da decadência das lavouras tradicionais.
Pelo interior do Nordeste., encontravam-se ainda imensas terras cercadas com a presença do trabalho escravo, além de pequenos núcleos urbanos pobres, nos quais os únicos edifícios de destaque eram a igreja e a câmara municipal. (Alencar e outros, 1979).
O emprego oferecido pela indústria do açúcar, um dos mais importantes ramos da economia da região, era limitado devido principalmente a substituição do homem pela máquina, com o advento [fim da página 117]da usina em lugar dos antigos bangüês, formando consequentemente, um exercito de desempregados e subempregados. Desses, uma grande parcela passa a prestar serviços domésticos nas cidades, com ordenados ínfimos, além de outros subempregados, vivendo de biscates ou de favores. (Singer, 1977).
Entretanto, Robert Ave-Lallemant (apud Andrade, 1986:88), visitando Pernambuco em 1859, observou que neste Estado houve uma carência de mão de obra, causada tanto pela diminuição do número de escravo, como em conseqüência do surto de cólera ocorrido entre 1855-56.
Era pequena a percentagem de escravo nos estados nordestinos, dos meados para os fins do século passado. Os preços dos escravos se elevaram muito a partir de 1854, depois da extinção do tráfico. Contribuíram também as secas que dificultavam a sua manutenção, além do fato do trabalho escravo não ser o mais rendoso para a cultura algodoeira.
Os trabalhadores viviam em condições precárias de vida, agravadas pelas más condições de trabalho e pela existência de uma grande reserva de mão de obra, formada por moradores, onde apenas parte dela era absorvida pela agro-indústria do açúcar.
Os moradores dos engenhos e fazendas do Brejo Paraibano, eram assalariados que moravam em mocambos de palha, dormindo amontoados em jiraus de vara ou no chão úmido na mais abjeta promiscuidade. Embora tristes, eram dóceis, respeitadores e serviçais. (Andrade,1986).
Para agravar ainda mais a situação, o salário do trabalhador rural sofreu uma queda de 40% a 60% com a expulsão do algodão do mercado europeu e a crise do açúcar, posterior à abolição, pela falta de mercado externo devido a concorrência do açúcar de beterraba europeu e antilhano (: 1986).
A população nordestina espalhou-se por toda a região, ocupando-a quase inteiramente, apesar da distância entre vilas e povoações, onde residiam os homens livres que exerciam ofícios como pedreiro, carpinteiro, oleiro etc.
A miséria da população era muito grande a ponto dos "famintos de má índole"- assim chamados pela imprensa da época - aliarem-se a alguns salteadores de profissão, formando quadrilhas para saquear os [fim da página 118] fazendeiros e os habitantes mais abastados, além de viajantes que por lá transitavam.
Diante de tal situação, surgiu o que se chamou "moradores de condição" constituindo-se grande parcela dos trabalhadores do campo, procurando colocar-se sobre a tutela do senhor de engenho. É que os desordeiros e ladrões de animais que agiam abertamente na região açucareira criavam uma situação de insegurança para a população. Daí os moradores pobres procurarem colocar-se sobre a proteção desses, na busca de amparo e lugar para morar. (:1986).
Isto, por seu lado, era bastante vantajoso para os senhores de engenho, pois dispunham de mais braços para a lavoura. Com as restrições do tráfico e sua posterior abolição, além da venda de grande parte dos escravos para os cafezais do sul que estavam em expansão, os trabalhadores assalariados aumentaram, dessa forma, sua contribuição na indústria açucareira.
O algodão passou a ser um forte concorrente da cana. A agricultura algodoeira, na segunda metade do século XIX, quase não usou o trabalho escravo, sendo preferível pagar os moradores pelas fainas agrícolas. Os salários subiam quando a mão de obra se tornava insuficiente. Mesmo assim era mais vantajoso do que a aquisição de escravos. Uma outra vantagem era o fato do algodão ser um produto facilmente colhido por mulheres e crianças.
Entre 1750 e 1840, o algodão foi um dos principais produtos nordestinos e o único que enfrentou a cana-de-açúcar com algum êxito, na disputa de terras e de preços. Era, segundo Andrade, mais democrático porque era cultivado não só por grandes proprietários mas também por pequenos proprietários, foreiros e moradores.
É no cenário de miséria determinado pelas condições de vida e trabalho que o Nordeste vai sendo invadido pelas epidemias, agravada sobretudo pela migração campo-cidade que provocava amontoamento de pessoas que fugiam da seca, da fome e da própria propagação das doenças.
A cidade de Paraíba, por exemplo, acumulara um contingente populacional significativo, formado por homens pobres, em conseqüência das migrações forçadas que se davam pelas sucessivas secas que assolavam a região. Estes permaneciam na mais completa ociosidade, sem que houvesse programas governamentais que os ocupassem ou outras atividades de caráter privado, que os [fim da página 119 enquadrassem no espaço produtivo. A cidade apresentava entre 1880 e 1920 um crescimento demográfico significativo. A repercussão no aumento do desemprego foi inevitável, piorando as condições de vida e, consequentemente, o quadro sanitário da população. As estatísticas de óbitos cresceram em fins da década de 1910 e princípios de 1920 (Galiza, 1993).
Ao serem expulsos do campo em conseqüência das secas e das mudanças na estrutura agrária, ficavam marginalizados ao migrarem para a capital. Eles reproduziam uma realidade descrita por Simone Weil ao escrever sobre a classe operária: "Eles não estão em suas casas, nem nas fábricas, nem nos partidos e sindicatos, nem nos lugares de prazer..."(1979, p.349)." Ao se aglomerarem artificialmente numa cidade, são privados de sua vida própria, de sua tradição, do seu passado..." (op. cit. p. 251). Em termos de futuro, o que os espera é uma vida de sofrimentos, infelicidade, e de falta de perspectiva.
Apesar da resistência e dos vários conflitos que se desenvolveram no espaço urbano, era reservado às camadas populares uma incessante vigilância policial não só nas ruas e casas como em outros locais que freqüentavam. Nenhum respeito era devido a inviolabilidade de suas moradias, estalagens etc.: a qualquer momento estas eram invadidas por "representantes da lei". Havia um empenho das autoridades para impedir a presença de populares em determinados locais, "reservados" aos ricos. Havia também uma preocupação com o lado estético, pois era necessário dar às capitais uma aparência de "civilização" aos homens estrangeiros que a elas visitavam.(Soihet, 1989).
A transformação da composição da população, causada sobretudo pela chegada constante às cidades de retirantes fugindo das secas, ou mesmo ex-escravos, agravaram problemas como habitação, alimentação e higiene, suscitando problemas de ocupação do espaço citadino. Para amenizar estes problemas, era indispensável promover o saneamento moral e higiênico da cidade. Os migrantes foram o principal alvo de intervenção da medicina higiênica, apesar de não existir recursos municipais para o desenvolvimento de uma política social dirigida à população pauperizada. Neste período, segunda metade do Séc. XIX, a filantropia caritativa não se mostrava mais uma prática social capaz de atender os problemas emergentes.
Por outro lado, as cidades continuavam bastantes atrasadas, sem iluminação pública, sem ruas limpas, sem calçamento etc. Os moradores [fim da página 120] conviviam com a mais completa imundície. Praticamente inexistia a limpeza pública. A remoção do lixo e dos excrementos humanos era feita de forma ao mesmo tempo primitiva e pitoresca. Estes eram colocados em pipas ou barris, chamadas de tigres e carregadas nas cabeças dos escravos, que as despejavam nos rios, nas praias e nos becos. A remoção do lixo e dos dejetos humanos geralmente era feita depois que os sinos da igreja tocavam, as dez horas. Em Pernambuco, os tigres eram derramados pelos escravos nas pontes dos rios Capibaribe e Beberibe. (Freire,1977).
Nos meados do século XIX surgiram em Pernambuco os primeiros serviços públicos de saneamento e de água cujas obras foram realizadas por engenheiros franceses e técnicos ingleses, num momento em que aconteciam duas epidemias: a da febre amarela e a da cólera. Estas obras indicavam sinais de preocupação governamental com a higiene das cidades.
Freire (1977), cita que em 1855 o médico Lima Santos nos seus "Conselhos Higiênicos" transcritos pelo Diário de Pernambuco. comentava que os brasileiros não faziam exercício suficiente ao seu desenvolvimento físico e mental. Ficavam sempre sentados em casa, como sinais de fidalguia, para não se misturarem nas ruas com o povo. O higienista acrescentava ainda que nos meados do século XIX, o Brasil só não tinha algum progresso em termos de higiene, nas cidades, porque a vida privada continuava atrasada, embora o contato com os ingleses tenha contribuído na melhoria do estilo de vida e consequentemente na limpeza da rua e no melhor saneamento da casa.
As mudanças ocorridas na estrutura econômica e social brasileira com o desenvolvimento do mercado interno e o processo de urbanização contribuíram também para paulatinamente alterar os costumes, valorizar o saber e com isso os médicos e outros profissionais ligados à higienização das cidades, ganharam um maior prestigio social.
As informações obtidas sobre o surgimento da Medicina Social no Nordeste, na segunda metade do século XIX, nos permitem compará-la à Medicina Urbana surgida na França na segunda metade do século XVIII.
Os métodos de vigilância e de hospitalização utilizados nos dois modelos são um aperfeiçoamento do esquema político-médico da [fim da página 121] quarentena. A substituição de um modelo religioso por um modelo militar, se expressa nesses métodos e no registro permanente das ocorrências. (Foucault, 1988).
Os hospitais e asilos existentes eram locais reservados aos pobres para esperar a morte. Eram instituições destinadas às pessoas impossibilitadas de terem seus clínicos de família, geralmente administradas pelas Santas Casas de Misericórdia e custeadas com as doações das classes mais abastadas.
A Medicina Social, nas suas origem, buscava relacionar as causas das doenças às variações climáticas, meteorológicas e geográficas. Depois passou a valorizar as estatísticas de saúde, e os registros de nascimentos e de óbitos. (Serrano, 1985).
Acreditava-se que as epidemias eram doenças que vinham pelo ar, pelo vento, pela água e pela comida e não tinham idéia do seu caráter transmissor por se desconhecer a noção de contágio. Na concepção da época, eram doenças que atacavam todos ao mesmo tempo. (Serrano, 1987).
A idéia de que se desconhecia a noção de contágio foi contestada por Scliar (1987) e reforçada por Berlinguer (1988). Ambos citam a obra de Girolámo Fracastoro (1474-1573), como sendo a primeira elaboração teórica do conceito de infecção escrita numa época em que o misticismo da Idade Média não havia ainda desaparecido e a ciência moderna não havia nascido. Sua obra foi realizada sem suporte tecnológico ou científico mas propõe uma teoria lógica da infecção e institui a existência de agentes específicos para cada doença, além de conter idéias importantes sobre a transmissão das mesmas.
Nessa época, apesar da existência da obra de Fracastoro prevaleciam ainda teorias antigas sobre a transmissão da doença, como por exemplo, a de Hipócrates que julgava que as doenças resultavam de maus ares.
Apesar de prevalecer a teoria dos miasmas, tanto no seio dos higienistas como na população em geral, segundo estes autores, a noção de contágio existia pois as pessoas fugiam da peste ou isolavam-se. Estas atitudes eram consideradas como pressentimento do mal, ou uma forma de proteção contra o provável contágio da doença. Este trabalho mostra através dos documentos analisados, que várias localidades espalhadas pelo Nordeste ficaram completamente desertas, na época, quando atacadas pelas epidemias. [fim da página 122]
A saúde pública só adquire características científicas no século XIX, junto com as medidas sistemáticas de prevenção. Segundo Berlinguer (1988), duas justificativas podem ser apontadas: a primeira é que talvez fosse o fato de não se conhecer anteriormente os micróbios e os vírus, visíveis somente ao microscópio e, segundo, porque muitos preconceitos enraizados impediam de se perceber o que era visível aos olhos.
Com a descoberta ainda no século XIX de que os micróbios eram os agentes responsáveis pelas doenças infecciosas, o conceito de "perigo social" foi usado mais como pretexto para um controle sobre as pessoas do que como meio de combater e prevenir as doenças. Fez-se uso cultural e político de medidas importantes para a saúde pública. (Berlinguer, 1988).
No Nordeste, as epidemias eram enfrentadas pela Comissões de Higiene Pública nomeadas com este objetivo e que contavam ainda coma colaboração das Câmara Municipais e Agentes Policiais .
Foi a partir destas comissões e nesse contexto que se desenvolveu a "policia sanitária" como meio de intervenção, visando a higienização das pessoas e das cidades.
O conceito de policia sanitária envolve as quarentenas e as vacinações e o cumprimento obrigatório da lei para circunscrever as epidemias, fazendo fronteira muito próxima com a organização do Estado policial e com outros aspectos da atividades repressiva do Estado" (Berlinguer, 1988). O seu objetivo era prevenir as várias doenças que acometiam as pessoas , mas de forma bastante autoritária, reprimindo o doente mais do que combatendo a doença .
Essa proposta foi desenvolvida através de leis e regulamentos elaborados dentro do conjunto de atividades atribuídas ao Estado e destinados à saúde pública como a vacinação, o controle de grandes endemias, o saneamento básico e a limpeza das casas, ruas e prédios públicos.
Segundo Foulcault (1988), no século XIX houve uma invasão progressiva do espaço da lei pela tecnologia da norma. O Estado Moderno procurou implantar seus interesses servindo-se da norma para obter um controle político da sociedade.
Os estudos de Castel (1978) sobre a loucura e Donzelot (1986) sobre o controle da família mostram como, num determinado momento [fim da página 123] histórico, mecanismos de controle são utilizados para intervir nas questões sociais.
A participação da ciência se dava através da intervenções dos médicos e engenheiros que opinavam sobre quase todos os aspectos da vida urbana. Eram membros das comissões de Higiene Pública que funcionavam com a colaboração das Câmaras Municipais e Agentes Policiais, além de conselhos de Salubridade Pública.
Tanto a Medicina Social no Nordeste como a Medicina Urbana na França tinham como objeto a cidade e seus habitantes. A preocupação com a purificação do espaço urbano, através da circulação da água, ar, vento, alimentos comercializados e a explicação das diversas moléstias pelo excesso de miasmas que desprendiam-se dos inúmeros focos de infecção existentes dentro e fora das cidades, eram elementos centrais nas suas práticas sanitárias, introduzidas com o objetivo de intervir no cotidiano dos pobres e, promover o ordenamento do espaço urbano.
A preocupação das autoridades com o surgimento das epidemias se dava devido aos amontoamento de lixo, dos esgotos nas ruas, da falta de higiene dos matadouros, da forma inconveniente de enterrar os mortos e da má localização dos cemitérios.
A aglomeração de pessoas nas cidades nordestinas, em asilos ou locais designados para este fim, era a principal causa apontada pelos poderes públicos, do quadro sanitário desolador que se apresentava no Nordeste.
Ao contrário da França, este amontoamento não se dava em função do surgimento de oficinas e fábricas que submetiam operários a este tipo de alojamento. No Nordeste, eram retirantes que vinham de diversas regiões, fugindo da fome e da seca, em busca de socorro dos poderes públicos nas cidades.
No Brasil, a relação entre medicina e sociedade não se deu originalmente por intermédio do corpo produtor, mas de um corpo urbano que possui em sua própria essência, que produz em seu próprio funcionamento, a doença e a morte. (Machado, 1978).
Jornais da época noticiavam quase que diariamente, nos momentos de calamidades, , a liberação de verbas para custear a alimentação e outros tipos de assistência a esses indigentes.
Uma outra forma encontrada pelo governo para socorrer essas pessoas era a absorção dos mais habilitados para algum tipo de trabalho. [fim da página 124]
Medidas desta natureza eram necessárias para que houvesse o controle político e sanitário sobre as cidades. Médicos, padres e a polícia se uniam para formar conselhos e comissões visando reprimir e disciplinar os agitadores políticos, os vadios, os desempregados e a pobreza em geral.
A partir de meados do século XIX o Nordeste passa a ser reconhecido não só como "região" (econômica, política e administrativa), mas também na opinião pública e nas políticas e programas governamentais (Oliveira, 1987).
Foi nessa perspectiva que à partir de fins do século XIX, se desenvolveram práticas sanitárias destinadas a assegurar as condições mínimas de saúde a setores da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que buscava forma de higienização das cidades.
As políticas e as ações de saúde neste período intervieram sobre o corpo definindo estratégias de controle sobre a sociedade.
Entretanto, as preocupações dos poderes públicos não se traduziam em serviços de higiene eficientes, tanto assim que epidemias como a febre amarela e a cólera encontraram a Província sem médicos e sem medidas básicas de higiene. Os preceitos higiênicos só eram lembrados quando a seca e as epidemias surgiam. Entre a população desconhecia-se as medidas mais elementares de higiene pública.
A forma de encarar e os recursos disponíveis para enfrentar esses momentos traumáticos vividos pela população variavam conforme o grau de desenvolvimento da ciência médica, encontrando-se semelhanças nos modelos empreendidos em alguns países.
Na França, entre os séculos XVIII e XIX, os agentes da medicina popular incorporaram o saber da medicina cientifica em suas práticas. O conhecimento cientifico penetrava no domínio dos curandeiros das aldeias, inicialmente através da literatura divulgada pelos vendedores ambulantes. Esses livros eram geralmente anônimos, redigidos por gráficos e tipógrafos, que buscavam informações nas publicações do século XVI, existentes no interior de suas oficinas. Os "amadores", "esclarecidos" e caridosos ou o vigário eram também intermediários entre a medicina cientifica e a popular. ( Boltanski, l979). [fim da página 125]
No Nordeste, apesar desses agentes serem reconhecidos pela administração provincial e contratada pela mesma como única alternativa de assistência existente para o interior, eram práticas mais fundamentadas no conhecimento da medicina popular, sobretudo com relação a utilização das plantas medicinais.
Entre caridosos e religiosos, percebe-se semelhanças quanto à sua atuação. No Nordeste, assim como na França, segundo Boltansky (op.cit.), estes eram intermediários entre a medicina popular e a cientifica por possuírem algum tipo de conhecimento. Entretanto, entre médicos de formação européia ou os que não tinham tal formação mas eram brancos, e os curandeiros de formação africana ou indígena, havia uma enorme rivalidade.
Em Pernambuco, sabe-se através da comissão de Higiene Pública, da prisão de um curandeiro africano pelo o falecimento de doentes de cólera que se encontravam sob seus cuidados. Por outro lado, na Bahia, pretos estiveram sob proteção de pessoas que ocupavam posição elevada na sociedade e que acreditavam na eficácia de seus tratamentos.
Através de relatórios de alguns presidentes de Províncias, referidos num outro momento deste trabalho, pode-se constatar que a orientação dada à organização da Medicina Social no Nordeste, na segunda metade do século XIX, foi no sentido de criar elementos constitutivos da policia médica, quais sejam: criação de comissões para coordenar o combate às epidemias: esquadrinhamento urbano ( divisão da cidade em paróquias e estas em distritos, assistência gratuita aos pobres através de casas de caridade e asilos) e inspeção sanitária.
As casas de saúde e os hospitais diferenciavam-se pela raça, classe e religião de origem dos doentes. Os hospitais das Ordens Terceiras eram destinados aos ricos e os hospitais das Santas Casas de Misericórdia aos pobres e escravos.
O acesso da população rural aos serviços de saúde, foi durante muito tempo um processo marginal, principalmente quando se tratava de ações de saneamento.
À semelhança de medidas tomadas pela medicina urbana desenvolvida na França no século XVIII, também na capital da Província da Paraíba, no inicio desse século, foi empreendido um programa de embelezamento da cidade, com o ajardinamento de praças, o calçamento [fim da página 126] e a arborização de ruas, melhorando consideravelmente as condições da higiene urbana.
As transformações propostas na arquitetura foram movidas não só por interesses estéticos, mas também com a preocupação voltada para a salubridade das habitações. Neste sentido foram tomadas medidas como o alargamento das ruas e abertura de avenidas, resolvendo o problema da iluminação e ventilação.
Outras medidas foram tomadas como o fechamento do cemitério localizado dentro da cidade, a fiscalização rigorosa dos gêneros alimentícios, a criação da polícia sanitária marítima, a repressão ao alcoolismo, além da implementação da educação higiênica nas escolas, contribuindo para o decréscimo do índice de mortalidade na cidade de Paraíba.
Apesar dessas medidas, não se conseguia perceber efeitos modernizadores significativos no processo de urbanização, com a implantação desses melhoramentos. Desde a segunda metade do século XIX, sua feição era quase semelhante à do período colonial. Uma rede urbana carente de meios de comunicação eficiente, ruas sem possuírem um traçado regular que lhes desse uma feição de cidade, falta de cuidados no que tange à saúde pública em relação ao escoamento de matérias pútridas; necessidades de reforma do porto; de iluminação pública, abastecimento d'água, modernização no sistema de saneamento, bem como a criação de atividades que ocupasse grande parte da população ociosa advinda de constantes migrações provocadas pelas secas periódicas que assolavam a região. ( Fernandes e Amorim. 1980).
Já a cidade do Recife passou por uma expansão urbana, durante o século XIX. É no decorrer desse século, que o crescimento da cidade começa a se dar em ritmo acelerado, dando à cidade ares de metrópole.
Segundo Singer (1977), o melhor indicador do crescimento do Recife no último quartel do século passado, foi a evolução demográfica, motivada pela expansão do parque industrial da cidade neste período.
O crescimento populacional acelerou-se ainda mais nas duas primeiras décadas deste século, provavelmente por causa das migrações rurais, ocasionadas pelo fechamento dos velhos engenhos e pela instalação das usinas na zona da mata.
O incremento populacional da cidade do Recife, ocasionada pelas razões acima apontadas, apresentou sérios distúrbios pelo agravamento [fim da página 127]dos problemas urbanos, exigindo das políticas sanitárias medidas urgentes e eficientes.
No Nordeste a organização sanitária não esteve tão articulada à consolidação da nova inserção da economia brasileira no quadro do capitalismo mundial, como esteve na produção capitalista do café, que foi buscar padrões de atuação sanitária diferentes do que predominou no período escravista, apesar da ameaça das epidemias, principalmente nas áreas urbanas. Apesar disso, a política de saúde pública atuou contra enfermidades especificas e interveio sobre o espaço urbano e o dia a dia de seus habitantes. (Costa,1986).
A medicina exerce um papel fundamental no combate à "desordem" no processo de modernização da cidade, que era o centro político-administrativo e que deveria espelhar o "progresso". O seu discurso infiltrava-se no senso comum das camadas médias e dominantes, em termos de melhoramentos para deixar a cidade salubre e moderna. A Medicina Social se caracteriza por uma forma de controle constante, por uma vigilância continua sobre o espaço e o tempo sociais. A luta contra as epidemias obedece ao comando político e não médico. (Machado,1978).
O período entre 1877 e 1880, foi considerado um marco na política governamental com relação às medidas adotadas para combater a seca e seus efeitos, já que o problema não era encarado até então, pelos governos provincial e imperial, de forma que se superasse as medidas assistencialistas. Através de alguns estudos desenvolvidos - embora incipientes - foram apontadas soluções possíveis que, postas em execução, amenizariam os efeitos calamitosos.(Ferreira,1980).
Embora se tenha mudado parcialmente o caráter das políticas governamentais voltadas para as calamidades, estas estavam distantes das resoluções dos problemas. Problemas como a fome, a peste e a seca, atravessaram o século fazendo inúmeras vítimas entre a população nordestina, atingindo sobretudo o pobre.
Quadro Sanitário das Cidades Nordestinas
O Nordeste, particularmente os estados da Bahia, Pernambuco e Paraíba a partir da segunda metade do século XIX, vivenciou momentos de grande temor diante das epidemias que surgiram neste período. [fim da página 128]
A população conviveu em lugares e épocas diferentes com a doença, o medo e a morte.
Entre as doenças que acometeram as populações nordestinas nesse período, a literatura e as fontes primárias disponíveis apontam as epidemias de cólera, de febre amarela e varíola como as mais arrasadoras. Estas epidemias conseguiram deixar várias cidades nordestinas em estado caótico e a população em estado desesperador. Por onde iam passando deixavam vítimas incontáveis.
O pavor que se difundia na população em conseqüência da natureza e da gravidade do mal, a extensão que ia adquirindo a cada dia e o elevado número de vitimas, criou situações completamente anormais.
No período em que perduraram as epidemias, os hábitos e os costumes foram totalmente modificados em função das cenas desoladoras presenciadas nas diversas localidades. Eram freqüentes os casos de interrupção de atividades no exercício do Poder Público e no cotidiano da população quando a epidemia se instalava numa determinada região. Por exemplo, diversas assembléias provinciais foram adiadas, por causa da gravidade da situação em que se encontravam as Províncias na época.
Com relação à febre amarela, que fez um número considerável de vítimas, além das medidas empregadas para o socorro das mesmas, a vacinação foi utilizada como meio preventivo, não obstante as dificuldades encontradas para viabiliza-la devido à distancia entre as localidades, a falta de pessoas especializadas e a resistência e repugnância da população a esta medida, por considerá-la a própria peste.
Machado (1978) fez uma comparação entre a campanha sanitária realizada contra a febre amarela em Pernambuco no final do século XVIII e a situação da medicina social no século XIX, estabelecendo o que há de homogêneo e heterogêneo entre os dois processos. Ambas produzem um conhecimento sobre a cidade, designam uma autoridade especial como responsável pelas medidas de controle e organizam estas medidas. A diferença entre as duas é que, no caso da campanha , o que motiva e autoriza as medidas de destruição da desordem sanitária é a própria peste e a medicina social , ao contrário, se caracteriza por uma forma de controle constante, por uma vigilância contínua sobre o espaço e o tempo sociais. Segundo o autor, o momento em que o perigo da [fim da página 129] peste passa a ser constante assinala o início da prevenção. A luta contra a peste obedece ao comando político e não ao médico.
Nos séculos XVIII e XIX, quem não tinha seus clínicos de família, se valia dos asilos ou hospitais construídos para os pobres. Eram instituições filantrópicas, geralmente administradas pelas Santas Casas de Misericórdia, custeadas com esmolas dos ricos e destinadas ao isolamento e morte do pobre. (Serrano,1985).
A precariedade ou a ausência de medidas necessárias à salubridade pública, de responsabilidade das Câmaras Municipais, e a impossibilidade de recorrer à medicina, faziam com que a pobreza contasse quase que exclusivamente com a distribuição de medicamentos gratuitos nas boticas da capital.
No caso da cólera, a principal medida preventiva era a quarentena.
Nos anos que antecederam as epidemias já mencionadas, a população nordestina apresentava um estado de saúde relativamente satisfatório. Apareciam casos de febre amarela e cólera em pessoas que vinham pelo mar, mas não se caracterizavam como sendo epidemias.
Surge então a varíola em caráter epidêmico. A vacina aparece como a principal medida preventiva e passa a ser usada com regularidade, apesar das dificuldades já apontadas no caso da febre amarela.
Por outro lado, as afecções como " febre catarrais intermitentes, anginais, diarréias, a tísica pulmonar, as lesões do aparelho digestivo e a sífilis", eram indicadas nos relatórios dos inspetores de saúde como doenças que fizeram um número considerável de vítimas em ritmo crescente. (2)
Segundo informações prestadas pelos inspetores de saúde o controle destas doenças, inclusive o da febre amarela foi mais eficaz entre a tripulação dos navios. O mesmo não acontecia com a área urbana pela falta de condições favoráveis de higiene. Sempre que havia ameaça de uma peste, uma junta médica era convocada para falar a respeito e encaminhar sugestões de medidas que deveriam ser tomadas para evitar a entrada, principalmente pelas capitais, ou providências no [fim da página 130] sentido de diminuir seus efeitos caso ela penetrasse. Em seguida, posturas eram feitas e encaminhadas às Câmaras Municipais, após serem aprovadas previamente pelos Presidentes das Províncias.
As principais medidas eram:
a) Transferência do matadouro público para um lugar mais afastado, o que, segundo a opinião dos especialistas, era importante para melhorar a pureza e salubridade do ar.
b) Inspeção pelos fiscais do estado dos gêneros alimentícios comercializados, aproveitando os que se encontravam em condições de serem consumidos.
c) Rigorosa quarentena era estabelecida para embarcações procedentes dos portos infectados.
d) Construção de asilos ou lazaretos para recolher os passageiros e bagagens que passavam por inspeção, seguindo as recomendações da ciência.
e) Impressão e distribuição pelas Províncias de folhetos, além de várias exposições, contendo conselhos higiênicos e outras prescrições médicas relativas ao modo de prevenir e de tratar os afetados.
f) Providências no sentido de conseguir médicos, enfermeiros e medicamentos, além da construção de cemitérios e enfermarias.
g) Criação de comissões formadas por pessoas de destaque em cada lugarejo, que se incumbissem de dar conta das principais necessidades, de animar a população através dos meios mais acessíveis de tratamento das moléstias, além da distribuição de impressos contendo as instruções já mencionadas anteriormente.
Algumas dessas medidas não foram viabilizadas. Poucas foram as comissões que corresponderam, sendo grande parte substituídas por pessoas caridosas que tomaram para si estes encargos. Com relação às Câmaras Municipais que deveriam estar à frente das comissões das cidades e vilas, procederam, na sua maioria, com bastante inoperância. [fim da página 131]
Além de um quadro sanitário desolador que imperava no Nordeste no século XIX, a população pobre tinha que conviver com situações que afetavam sem significativamente o seu cotidiano. A seca, fome e a peste atacavam sem piedade a população nordestina, na segunda metade do século XIX, intercalando-se com as enchentes que aconteciam em diversas regiões.
Embora as inundações tenham sido menos freqüentes, os resultados foram catastróficos para a região.
A província da Paraíba teve prejuízo vultuosos com as enchentes. O rio Paraíba durante alguns anos não consecutivos provocou grandes enchentes, invadindo extensas áreas próximas às suas margens, deixando os moradores desabrigados, além dos prejuízos causados às safras dos engenhos e dos plantadores de algodão.
Jornais da época noticiavam casos de família que morriam atravessando o rio, pois o desespero fazia com que as canoas virassem.
Mas, os sertões nordestinos tinham que conviver mesmo era com a seca , aliada a fome e a peste.
O Nordeste é apontado desde a época colonial ora como área das secas, ora como dos grandes canaviais que enriquecem meia dúzia em detrimento da maioria da população. Invariavelmente, porém, é conhecida como região subdesenvolvida devido à baixa renda per capital de seus habitantes (Andrade. 1986).
O Nordeste viveu momentos dramáticos com as sucessivas secas. Segundo José Américo de Almeida, o ano de 1869 foi o mais aflitivo, principalmente porque as conseqüências da irrupção da cólera nos anos de 1856 e l862 ainda podiam ser sentidas.
Jornais da época, como A Opinião, da capital da Província da Paraíba, noticiavam neste mesmo ano, quase que diariamente, a situação do Nordeste diante da seca:
" Os emigrantes dos sertões afluem que diariamente nos brejos em número considerável. Na capital observou-se a entrada de uma família desvalida, com uma canoa de crianças em cassuares."
" Nos sertões as pessoas morriam pelo estado de abatimento com que recebiam algum alimento. A miséria veio juntar-se ao terror, aos assaltos constantes."
" Em Mamanguape se amontoavam cerca de 400 emigrantes quase nus e abatidos. A miséria tem invadido todas as classes da [fim da página 132]sociedade. Tem morrido gente de fome. Pais tem abandonado seus filhos, deixando as ruas cheias de meninos e mulheres nuas."
" Os flagelados amontoavam-se que nem bichos, no saguão do convento de São Bento, na casa do mercado, no edifício da escola pública, e em palhoças improvisadas no terreno do fundo do palácio ( na capital da província da Paraíba) e um avultado número perambulava ao desabrigo e dormia ao relento."
" Para desafogar a capital desse rebotalho, foi criado um núcleo colonial na propriedade Guia pertencente ao patrimônio do convento do Carmo, sob a direção do Frei Alberto."
" Era um lugar insalubre, de forma que as febres intermitentes e de outros caracteres deram cabo em pouco tempo, dos infelizes que haviam sido removidos para esse foco letal."
" As zonas agrícolas da província vinham acolhendo dia a dia, os magotes de retirantes".
Eram essas pessoas que fugiam da seca, as mais susceptíveis de acometerem doenças que logo se tornava uma epidemia, dizimando-as em sua quase totalidade.
Intensificaram-se ao longo dos anos as migrações rumo à capital e Campina Grande era o ponto de passagem dos retirantes.
Conforme o obituário da capital, no ano de 1869, entre os meses de maio e setembro, morreram mais de mil pessoas.
Se a mortalidade na capital era alta, no interior não era diferente. Pelo contrário, a situação era pior pela falta de assistência médica para esses retirantes nas vilas e povoações, fazendo com que o governo contratasse práticos para o tratamento dos indigentes.
Na capital, embora se dispusesse de poucos recursos para tantas necessidades, pelo menos a assistência médica obedecia a certos princípios higiênicos, como por exemplo, a preocupação em deixar esta população pobre e doente afastada de lugares de maior trânsito, construindo lazaretos e hospitais separados da área residencial.
Além da capital da Província da Paraíba, outras capitais foram se modificando não só com o processo de urbanização, mas também com a chegada constante de retirantes que fugiam da seca.
Os locais que serviam de abrigo às pessoas que chegavam às cidades, bem como às instituições de caridade, ao mesmo tempo que eram necessários para a disciplinamento do espaço urbano, eram focos de epidemia e de contágios. Daí a preocupação da Medicina Social em [fim da página 133] retirá-los dos centros, procurando com esta medida neutralizar os seus efeitos.
Esses indivíduos não tinham tempo para solidão e intimidade. Não havia espaço para uma vida privada. Além do mais, a promiscuidade em que viviam nos diversos alojamentos improvisados era tamanha, que o surto pestilencial atingia não só esses indivíduos, mas também a população residente nessas localidades. O que agravava ainda mais era o fato das resistências orgânicas dessas pessoas ficarem fragilizadas diante das longas caminhadas e que famintas, comiam o que aparecia na sua frente, muita vezes substâncias tóxicas, comprometendo significativamente seus organismos.
Na França, pesquisa oficial realizada após a epidemia de cólera de 1832, mostrou que a doença fez 18.602 vitimas na capital. O relatório concluiu que naquela população miserável que se encontrava em alojamentos sujos, exíguos, foi também onde a epidemia multiplicou suas vítimas. Nas ruas mais estreitas e sórdidas, as taxas de mortalidade pela cólera foram 33.87. nas demais, foi 19,25% (Aries,1988).
A medicina urbana desenvolvida na França, à partir de finais do século XVIII, influenciou fortemente as medidas adotadas pela Medicina Social no Brasil, na 2a metade do século XIX. O conhecimento produzido sobre cidades, buscando a identificação dos focos das epidemias com a desordem urbana, a necessidade reestruturação do espaço urbano de forma a prevenir a eclosão de novos surtos epidêmicos, como também a busca de mecanismo sociais de dominação física e moral sobre indivíduos pobres das cidades, são diretrizes comuns aplicadas nos dois países.
A preocupação não era devolver a saúde aos indivíduos, mas sim a saúde às cidades, isto é, à ordem urbana, e é através do enquadramento social e controle da população, inclusive modificando seus usos e costumes "comprometedores". A doença das cidades encontra no mau funcionamento das instituições, na desordem, no desregramento moral, no crescimento desordenado, nas montanhas e pântanos que exalam miasmas as suas principais causas. (Machado,1978).
O imigrante que vive nas cidades é visto como agente de desordem, e como focos das doenças. A sua chegada às cidades, com sua invasão aos lugares públicos, com a fome que os acompanha, é vista como se estes fossem responsáveis por seus próprios males e criassem a pobreza, a insalubridade e a doença. Paralelamente, se difundem [fim da página 134] discursos e práticas protecionistas, dirigidas aos pobres, visando a melhoria das condições de vida e trabalho, seja por razões humanitárias, seja por razões políticas, tanto com relação ao controle sanitário, como no sentido de evitar revoltas e até mesmo conseguir progressos no trabalho.
Segundo Madel(1982), o conceito de epidemias não é um conceito enraizado no biológico, mas está carregado de sentido político. Seu emprego subordina-se mais ao problema de ameaça social que a doença traz, ao atingir indivíduos de diferentes classes sociais, do que ao número de indivíduos da mesma classe social.
A representação mental das epidemias no Nordeste, aparece ligada a dois outros flagelos tradicionais na região: a seca e a fome da população pauperizada, sendo esta conseqüência da primeira. A peste acompanha comumente as grandes fomes.
A fome é presença constante nas crônicas entre os séculos XVI e XIX, mostrando que sempre faltou alimento para a pobreza. (Etzel,1976).
Em Pocinhos, município da Província da Paraíba, a fome foi tão intensa, que os órfãos da casa de caridade do Pe. Ibiapina, além de outros habitantes, se sustentaram, durante vários dias, de carne putrefata das reses que morriam inanimados. ( Almeida,1979).
Um romancista cearense chamado Rodolfo Teófilo, citado por Guerra (1981), narra cenas chocantes de 1877. Muitas famílias, desesperadas para fazerem a travessia dos rios, fugindo da fome e da peste, se separavam. Mães aos gritos, viam seus filhos ficando quando estas já se encontravam nas lanchas desatracadas.
Por outro lado, as conseqüências eram funestas quando aconteciam grandes deslocamento de massas humanas. Mesmo em zonas consideradas salubres se desenvolviam violentas epidemias.
Na cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte, segundo Guerra( op.cit), viviam cerca de 25 mil pessoas no ano de 1877, cuja única ocupação eram terem fome e morrerem de miséria e peste.
Segundo o levantamento realizado pelo vigário desta cidade, entre os anos de 1877 e 1879 foram sepultados 31 mil mortos só no cemitério, estimando-se o total em mais de 40 mil. Em outubro de 1878 o obituário diário era superior a 100 pessoas e quem se aproximava do [fim da página 135] perímetro urbano sentia, segundo o vigário, o mau cheiro que a população "pesteada e imunda" exalava.
Apesar de algumas medidas serem tomadas pelas autoridades, como a proibição dos enterros nas igrejas, outros problemas permaneciam com as sujeiras das ruas e a má qualidade dos alimentos, fontes de propagação da cólera.
Algumas doenças, como por exemplo surtos de desinteria e gripe - se manifestavam aparentemente sem grandes problemas mas se tornavam graves, diante do estado de desorganização social em que se encontravam os retirantes, suas maiores vitimas, permitindo a sua fácil propagação.
A presença da cólera estava sempre ligada ao temor, ao pânico, pois ao atingir a população tinha um caráter devastador.
O comportamento da população se modificava e as autoridades alarmavam-se diante do quadro que se apresentava.
Diante da impossibilidade de dete-la e da catástrofe produzida por ela, a maior preocupação das autoridades sanitárias era no sentido da busca da estabilidade social como sendo uma estratégia higienista que assimilava simbolicamente à desinfecção a submissão. À medida em que as práticas higienista eram implementadas, aumentava o temor da população, pois significava a alteração no seu cotidiano, bem como na forma de tratar seus parentes doentes, (Beltrão.1993).
Durante as epidemias de cólera, as orientações dadas pela higiene eram sobretudo com relação à desinfecção tanto dos locais públicos passíveis de contaminação, como de residências, sobretudo onde havia grandes aglomerações e ocorriam óbitos.
Os métodos modernizantes de desinfecção implantados em época de epidemias, por recomendação das elites dirigentes, se chocavam muitas vezes com os conceitos populares do que significava bem morrer e tratar seus mortos. (op.cit. 1993).
Os anos se passaram e a situação não mudou. A república se iniciou em situação de flagelo. Permanecia o descaso, de modo que a região continuava exposta aos efeitos das calamidades, ou seja, da fome, das epidemias e da seca.
No início deste século, a situação não era diferentes. As poucas chuvas vinham acompanhadas do desenvolvimento de epidemias. O Nordeste estava sempre desamparado e exposto a calamidades e aos [fim da página 136] seus aniquiladores efeitos. Faltavam aos poderes públicos meios preventivos já que a experiência de outros desastres, mostrou que os recursos disponíveis permitiram apenas salvar parte dos flagelados. Os socorros públicos eram paliativos e chegavam sempre tarde para matar a fome, não evitando o prejuízo da violência das epidemias.
No Ceará, entre 1850 e 1930, foram registrados dezenove anos de seca ( Guerra,1981).
A partir de maio de cada ano, quando se perdiam totalmente as esperanças de chuvas, a situação já era de extrema pobreza, fome e desolação. Começava a peregrinação dos retirantes para o litoral, formando aglomerações, geradoras de epidemias, obrigando os poderes públicos a formarem comissões de socorros.
É neste palco de calamidades que se desenvolvia uma medicina autoritária e assistencialista, preocupada com o controle da população pobre. Através de métodos intervencionistas, procurava-se "higienizá-las", com a preocupação voltada para o asseio e embelezamento das cidades.
Na Bahia, a lei número 404, de 2 de agosto de 1850, impõe regras sobre o estabelecimento dos cemitérios. Em seu artigo 1 fala da proibição de sua construção dentro dos povoados. Esta proibição tinha como objetivo propiciar benefícios à saúde pública que, ao longo dos anos, foi duramente penalizada pelos hábitos empregados pela população de fazer os enterros dentro das próprias igrejas. A população reagiu fortemente contra esta medida.
Mas essa reação contra a citada lei não foi a primeira. Em outubro de 1986, na capital baiana, se deu uma revolta que ficou conhecida como a cemiterada, revolta esta iniciada como reação à uma lei idêntica que proibia o tradicional costume de enterros nas igrejas e ao mesmo tempo concedia a uma companhia privada o monopólio dos enterros por 30 anos. este protesto foi iniciado com uma convocação das irmandades e ordem terceiras, além de organizações católicas leigas que, entre outras funções, cuidavam dos funerais de seus membros. Logo depois estendeu-se a toda população que destruiu completamente o cemitério e a capela (Reis, 1989).
As autoridades policiais incumbidas de manter essa proibição se conflituavam constantemente com os párocos e com o povo. Isto porque [fim da página 137] não se habituavam com a prática de enterrar os resto dos seus semelhantes em lugares abertos e devassáveis por animais (visto que eram raríssimos, na época, os cemitérios fechados), como também pelo prejuízo que os mesmos imaginavam ter como paroquianos, uma vez que seus direitos de utilização dos templos para este fim eram assegurados pela igreja.
Quando as doenças não se apresentavam como epidemias, este tipo de proibição era visto como atentado à moral pública e considerado como um desprezo pelos mortos.
Este conflito assume tamanha proporção que um presidente de Província chega a recomendar prudência num de seus relatórios e ao mesmo tempo solicita o adiamento dessa proibição, pelo menos até que sejam estabelecidos cemitérios com uma certa decência. São estas as suas palavras: "Não se destrói um hábito tão enraizado, e sobretudo quando se prende a crenças religiosas, sem que o espírito do povo seja previamente preparado e que se disponham as coisas no sentido de se tornar acessível a inovação que se pretende." (3)
O problema principal enfrentado pela Província na construção dos cemitérios era financeiro. Para amenizar este problema foram criadas Comissões por Paróquias a fim que se carregassem de colher doações dos habitantes para a construção dos mesmos.
A localização dos cemitérios continuou, durante todo o século, sendo um pouco de conflito e resistência popular frente às medidas higiênicas, principalmente em épocas em que o estado sanitário das cidades se apresentava satisfatório, isto é, quando as epidemias não estavam ameaçando e espalhando temor e medo na população, modificando seu comportamento diante dos mortos.
Durante as epidemias de cólera e outras doenças que arrasaram as cidades nordestinas na segunda metade do séc. XIX, deixando-as em situação católica, a população "aceitava" que fossem cercados às pressas alguns lugares onde se enterravam as vítimas dessas epidemias. Muitos desses cemitérios improvisados e construídos sem o menor cuidado foram destruídos e os restantes permaneceram em péssimo estado de conservação. A lei nº 404 de 02 de agosto de 1850, regulamentada em 5 de julho de 1856 e que proibia os enterros nas igrejas e mandava que [fim da página 138] fossem feitos em cemitérios públicos, continuava a encontrar dificuldades para o seu cumprimento, principalmente por falta de cemitérios fechados, o que obrigava o governo a ceder em algumas circunstâncias e permitir os enterros nas igrejas.
O cumprimento deste regulamento, tão reclamado pela saúde pública, só se tornaria viável quando fossem construídos cemitérios nas diferentes paróquias da Província. Na época eram raras as freguesias onde eles existiam.
Em quase todas as localidades das Províncias, os enterros continuavam sendo feitos nas igrejas, apesar da expressa proibição contida no citado regulamento e dos graves inconvenientes que resultavam de tal prática.
A construção de cemitérios nas diversas freguesias constituiu uma das principais preocupações de higiene. A meta era a construção de cemitérios de alvenaria em substituição aos que já existiam, cercados de estacas. Na impossibilidade de construí-los em toda a freguesia com recursos da Província começou-se a viabilizar a construção dos mesmos com recursos de doações feitas por pessoas de cada localidade conseguidas através de uma comissão formada por policiais e membros da igreja.
No momento em que se constatava a necessidade de se conseguir recursos para a construção de um cemitério, o primeiro passo era nomear uma comissão composta de médicos e um engenheiro para indicarem o lugar que melhor satisfizesse em termos de salubridade.
Na Paraíba, por ocasião da epidemia de cólera, foi ordenado pelo presidente da Província aos vigários, com a licença do bispo, que estes tratassem imediatamente da construção de cemitérios em todos os povoados de sua freguesia. A urgência fez com que estes cemitérios fossem construídos de forma bastante precária. O desenterramento de cadáveres e o revolvimento de terras provocados por estas construções ou reforma eram tidos como principal causa da persistência dessas doenças.
Havia freguesias nas províncias onde ainda se faziam enterros nas igrejas por falta de cemitérios. Outras em que os cemitérios consistiam apenas em uma certa extensão de terras sem cerco algum e alguns em que se iniciavam as obras mas não foram concluídas.[fim da página 139]
Os presidentes lamentavam o fato de em algumas localidades os habitantes não se mobilizarem para conseguir doações e ou serviços gratuitos para resolver este problema.
Neste sentido, apelavam não só para o sentimento religioso para com os mortos, como também para o interesse da salubridade pública que deveria pesar neste empenho.
A principal argumentação dos governos neste tipo de orientação era a impossibilidade financeira das Províncias de atender ao mesmo tempo tantas localidades. De toda parte eram solicitadas quantias avultadas para a construção dos cemitérios, quando, na visão deste, se poderia construir em dimensões mais simples, possibilitando o atendimento a um maior número de cidades. O sistema das Catacumbas deveria ser dispensado porque além de dispendioso não era recomendado pela salubridade.
Vários movimentos populares surgiram em reação às medidas autoritárias de higienização das cidades. Em 16 de fevereiro de 1852, na Paraíba, mais precisamente na vila do Ingá, um grupo de indivíduos composto por mais de cem homens invadiu esta vila em oposição à execução do Regulamento de 18 de janeiro de 185l, que disciplinava o registro dos nascimentos e óbitos. Durante o mesmo ano, novos motins populares surgiram, pelo mesmo motivo, em várias localidades.
Na serra de Araruna as mulheres chegaram a ir à missa armadas de cacete e com pedras no seio, protestando contra o mesmo regulamento.
Este episódio ficou conhecido como a revolução "Ronco da Abelha".
A idéia que a população tinha sobre esses registros era que eles tinham como objetivo manter o controle de negros e pobres para colocá-los em cativeiro. O Presidente da Província da Paraíba enviou um relatório à Assembléia Provincial descrevendo os fatos e ao mesmo tempo fazendo a sua avaliação a respeito. No seu ponto de vista, eram pessoas armadas nas ruas, cometendo atrocidades contra homens pacíficos e outros atos de loucura e selvageria, desobedecendo formalmente às autoridades. Em contrapartida, o Presidente enviou instruções às diferentes autoridades, no sentido de que, com "meios brandos", reprimissem esses motins e quando estes não resolvessem, o chefe de polícia fizesse o uso moderado e prudente da força , de modo que conseguisse restabelecer a ordem pública. (Pinto,1977) [fim da página 140]
Para cessar de uma vez com os enterros nas igrejas, os presidentes expediam circulares às delegacias determinando que se mantivesse a maior vigilância possível. Paralelamente, foram reiteradas ordens para nomear comissões que seriam auxiliadas com a liberação de verbas para a construção ou conclusão de cemitérios onde ainda eram necessários.
Essas providencias contribuíram decisivamente para diminuir o número de enterros nas igrejas.
Entretanto, para aquelas pessoas que podiam comprar sepultura, ainda se faziam enterros nos templos, mesmo contrariando os princípios da higiene. Nos cemitérios administrados pelas Stas. Casas de Misericórdia, e nos que pertenciam ao governo, eram enterrados os que faleciam nos hospitais administrados pela mesma.
Na Província da Paraíba é mantido pela Santa Casa o privilégio do serviço mortuário e dos carros fúnebres, podendo também, se necessário, fazer contrato com empresas particulares, sendo que o mesmo deve ser devidamente aprovado pelo provedor do Estado. No artigo 46 que dispõe sobre o contrato para o serviço de carros fúnebres, serão observadas as seguintes condições : as exumações dos adultos se dividem em duas classes. Nas duas os carros são puxados por dois cavalos, sendo que o primeiro é coberto com veludo preto, com bordas com galão ou franjas de ouro e o segundo é coberto com pano de lã e franjas de prata; o da pobreza ou da caridade, será puxado com dois cavalos e o carro apenas pintado com tinta preta; os irmãos da Santa Casa tinham direito à primeira classe pagando somente à metade; os das donzelas, obedecem os mesmo critérios, sendo que podem ser pintados de roxo e enfeitados com flores brancas; para os anjos existiam também duas classes. Os de primeira classe eram os mais luxuosos. Os de segunda eram cobertos de seda branca e os dos pobres eram simplesmente pintados de branco.
O custo da construção de cemitérios pela Celestial ordem terceira da Ss. Trindade e demais instituições públicas e religiosas elevou-se a partir do momento em que nestes estabelecimentos foi banido o trabalho escravo, substituído pelo trabalho livre.
A Celestial Ordem Terceira era mantida com loterias autorizadas pela lei no. 1843\1878 e outras leis que estabeleciam o número de loterias. [fim da página 141]
Os recursos das loterias eram destinados à construção de igrejas, cemitérios e colônias para órfãos e desvalidos. Em algumas igrejas as catacumbas ainda permaneciam devido ao alto custo de sua demolição e remoção dos entulhos.
Nos cemitérios da Ordem eram sepultados gratuitamente todos aqueles cujas famílias apresentassem atestado de pobreza fornecidos pelos reverendos e outras autoridades paroquiais.
A criação de cemitérios públicos fora das cidades, cortando a relação milenar de proximidade entre vivos e mortos, foi, como vimos, motivo de resistência e de lutas, pois significava alterações na sensibilidade e atitudes diante da morte e dos mortos.
2)As informações sobre as doenças são dadas pelos inspetores de saúde e comentadas nos relatórios dos Presidentes de Província enviados a Sua Majestade o Imperador.
3) Relatório escrito entre 1856 e 1857, na Bahia, sem autor.
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