Francesco De Gregori
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Caetano Veloso
Pretendo discutir aqui o papel e os significados das histórias de vida de gente pobre do Brasil, a história de vida considerada como uma possibilidade e uma eventual modalidade de "autobiografia popular". Mas, justamente enquanto modalidade popular, ela tem características próprias, tanto no plano da sua forma e da sua realização, quanto no plano do seu significado, a ser captado e discutido na fase de análise e interpretação.
Uma diferença entre história de vida e autobiografia é apresentada por Maria Isaura Pereira de Queiroz no seu conhecido texto Relatos orais: do "indizível" ao "dizível". Cito:
[fim da página 223]
Muitas das características que a autora relaciona à autobiografia - em particular as referências à escrita - permitem transferir a oposição autobiografia / história de vida para a mais ampla e significativa oposição cultura erudita / cultura popular, de forma que não me parece totalmente descabido falar em história de vida como forma popular de autobiografia. Entretanto, o segundo elemento destacado pela socióloga paulista, o que remete à intervenção do pesquisador na elaboração/realização da história de vida, também interessa ao nosso campo de atuação. Ambas as questões (o caráter popular da história de vida e a presença do pesquisador e seu relacionamento com o narrador) serão abordadas daqui a pouco.
Antes de entrar no mérito das minhas considerações, gostaria de informar que elas se originam de uma comunicação apresentada na Universidade de Campinas, em junho de 1995, mas que sofreram uma significativa reformulação, em particular em alguns dos seus pressupostos teóricos, depois de discussões e debates realizados em João Pessoa com o grupo de pesquisadores coordenado pela professora Maria Ignez Novais Ayala, e sobretudo com ela, com o professor Marcos Ayala (ambos da UFPB) e com o professor Zenir Campos Reis, da Universidade de São Paulo.
Num primeiro estágio, por assim dizer epistemológico, a história de vida popular precisa ser posta em articulação com as produções simbólicas das classes subalternas - a princípio, a "literatura oral" mais ou menos propriamente dita - e também com as autobiografias não-populares, produzidas pelas camadas hegemônicas da sociedade e transmitidas em forma escrita. Se tal articulação carece de fundamentações teóricas que ajudem, essencialmente, a estabelecer a distinção entre as noções de "subalterno" e de "hegemônico", das quais [fim da página 224] falarei daqui a pouco, por outro lado é necessário, parece-me, explicitar desde já uma espécie de paradigma metodológico que vai nortear a própria pesquisa. E desde já, também, é preciso declarar que essas considerações estão intimamente ligadas a uma certa tradição das ciências sociais italianas, em particular quando elas se têm articulado com o marxismo, ou melhor o "gramscismo", na busca de uma definição das relações entre pesquisa social e ideologia de classe, assim como de uma precisa determinação do caráter científico das ciências sociais e da sua base e função histórico-social (cf., sobretudo, Sepilli, 1979 e Padiglione, 1979).
Tal paradigma metodológico articula-se basicamente em quatro considerações gerais.
1. Em primeiro lugar, a recusa radical de qualquer enfoque naturalístico ou meramente sociográfico (3).
2. Em segundo lugar, a atenção para com os problemas científicos, morais, políticos e relacionais colocados pela dialética sujeito/objeto ao longo da pesquisa: do problema inicial que dá origem à pesquisa até a comunicação e a utilização dos resultados.
3. Em terceiro lugar, uma concepção explícita da pesquisa como um diálogo aberto, cuja finalidade de transformação da realidade se realiza já no próprio processo da pesquisa.
4. Finalmente, a opção clara por uma metodologia qualitativa, capaz de levantar em profundidade os níveis sintéticos - biográficos e cotidianos - do comportamento dos narradores, independentemente da situação considerada (Padiglione, 1979: 206).
Em particular, chamo a atenção para uma possível articulação entre o segundo e o terceiro "princípios", que me levaria a considerar a entrevista demológica (4) como o momento de encontro de dois sujeitos que dialogam (alterando, assim, as velhas e duvidosas séries alternativas "observador/observado", "pesquisador/informante", "sujeito/objeto"), [fim da página 225] resultando daí uma nítida opção para o ponto de vista do protagonista do relato. Em outras palavras: o "segundo sujeito" do diálogo (outrora "objeto") é proprietário de um conjunto (agora, talvez, sim) de "objetos" (comportamentos, expectativas, visões do mundo, manifestações, histórias, palavras), que eu só apreendo através do diálogo com ele.
Este conjunto de considerações remete novamente para aspectos que permitem considerar a história de vida enquanto uma modalidade autônoma da produção oral das classes subalternas, ainda que articulada com outras formas de produção discursiva, uma modalidade que possui características próprias e formas próprias de produção, essencialmente ligadas às condições de realização. De fato, no complexo da narrativa popular, ela é a manifestação menos tradicional, a que nasceu por último, por ser constitucionalmente condicionada pela presença de um "espectador", de um "forasteiro", de alguém estranho à comunidade, diante do qual o narrador conta e se conta. Justamente devido a essas características, a história de vida é a manifestação demológica que mais mutuou da cultura oficial e escrita algumas modalidades de representação: entre todas as formas narrativas em que um homem pobre pode falar de si mesmo, a história de vida apresenta o maior nível de conceitualização. Esse nível de conceitualização, que parece diretamente ligado ao caráter "objetivo" da autobiografia, enquanto gênero "neutral" - escrito ou oral - deve, entretanto, ser relacionado com o caráter propriamente oral da história de vida. Ou melhor dizendo, ao caráter popular da autobiografia oral.
Com efeito, pode-se dizer que toda a narrativa popular é, de alguma forma, autobiográfica, no sentido de que ela, por definição, nasce e se transmite em relação a este determinado emissor e a este determinado receptor. Como já foi apontado por Bogatirëv e Jakobson (1967: 2231), para o estudo da cultura popular, o que interessa não é a origem e a existência de fontes externas ao folclore, mas a função de empréstimo, a escolha, a seleção e a transformação do material. Paradoxalmente, portanto, a cultura popular, que poderia aparecer como o domínio da langue sobre a parole, do código sobre a expressão individual, revela-se, nesse sentido, um patrimônio cuja existência e transmissão são sempre condicionadas pela presença seletiva e organizadora de indivíduos (sujeitos) que a atualizam continuamente. Entretanto, se é possível falar de "autobiografismo" para toda a narrativa de tradição oral, é também possível indagar os níveis nos quais, a cada manifestação ou modalidade, se manifesta a possibilidade [fim da página 226] de contar a si próprio, a própria história e a própria condição. Ao mesmo tempo, porém, como nota, entre outros, a própria Maria Isaura Pereira de Queiroz (ibidem: 24), é possível utilizar a técnica de história de vida buscando "encontrar a coletividade a partir do indivíduo", desde que o objetivo de um pesquisador seja "captar o grupo, a sociedade" de que aquela vida narrada é parte.
Nesta perspectiva, com relação à história de vida, é necessário introduzir uma distinção entre dois subgrupos. Já foi dito que a condição para a formulação das histórias de vida é a presença de um estranho cultural; mas se deve acrescentar que as histórias de vida podem ser contadas também a pessoas ausentes aos acontecimentos, mas não necessariamente estranhas: é o caso dos relatos de guerra ou de fatos relativos a migrações, narrados para parentes ou amigos que não os presenciaram; em outras ocasiões, as pessoas que não estavam presentes são os ausentes geracionais, como os jovens, destinatários das histórias de família ou dos relatos sobre as condições de vida do passado. É diferente, entretanto, o caso dos relatos feitos para um interlocutor realmente externo à comunidade.
A distinção entre os dois subgrupos leva essencialmente a duas considerações:
1. Podemos chamar os primeiros relatos de histórias de fatos vividos, enquanto parciais e episódicos. Já os segundos constituem de fato a inteira história da própria vida, cuja linha é resumida e selecionada entre os mil acontecimentos através dos quais o protagonista passou.
2. Consequentemente, e justamente devido a esta seleção, os segundos apresentam, como se disse, um maior nível de abstração e de conceitualização ( Milillo, 1983: 80).
Contar, por exemplo, um episódio acontecido no local de trabalho, perto do rio ou, de qualquer forma, dentro da própria paisagem quotidiana e familiar comporta apenas o problema de contar o acontecimento nu. Já uma história de guerra ou de emigração acrescenta um confronto, de que o narrador se torna mediador, entre a realidade da comunidade e a outra, distante, na qual o episódio ocorreu. Surge daí um relato em que, além do dado referencial, há também um desvio, um sair de si, do próprio horizonte, para entrar, provisória mas profundamente, no horizonte do interlocutor. O mesmo acontece [fim da página 227] quando, por exemplo, falando para os jovens, se comparam (acarretando inevitavelmente um juízo) os tempos de hoje aos de antigamente.
Este processo de definição assume o maior grau quando se narra a pessoas conotadas como estranhas ou diversas por língua, classe social, escolaridade, procedência ou idade. Esta questão, entretanto, permite também colocar numa perspectiva inédita um dos problemas fundamentais da pesquisa demológica, constituído pela interferência provocada pela presença do pesquisador e dos seus instrumentos.
Tradicionalmente, tende-se a reduzir esta presença, a escondê-la, a abafá-la, com vários meios técnicos e psicológicos ao mesmo tempo. Todavia, pelo menos no que diz respeito à questão das histórias de vida, é possível afirmar, como já foi dito, que é justamente a presença do pesquisador que cria o momento de produção da narração, inexistente no cotidiano - narrar de si para quem não nos conhece. Esta é a única condição que permite a produção oral desta modalidade narrativa.
Ao mesmo tempo, a referência à falta de cotidianeidade da história de vida e à sua correlata característica de conceitualização afirmam como que a sua existência virtual. A história de vida manifesta-se como narração tecnicamente "ausente", mas recheada de fatos reais e de significados também reais. Ela, a princípio, veicula conteúdos e pontos de vista presentes no horizonte significativo do narrador - ou da comunidade -, ainda que ausentes na forma em que o pesquisador os solicita. Quero dizer, enfim, que da narração das histórias de vida pode-se apreender um conhecimento real, objetivo na medida em que traduz significativamente dados subjetivos do protagonista.
Nesse sentido, e na perspectiva da minha pesquisa, verifica-se a possibilidade de utilizar a história de vida como técnica para a reconstrução do olhar que uma comunidade, ou uma parcela dela, tem sobre ela própria. Isso porque o conjunto das narrações individuais, cada uma delas autobiográfica no sentido que foi atrás exposto, formaria, como que epistemologicamente, uma narração coletiva e comunitária, por sua vez, também - e mais latamente - autobiográfico. Mas também - e aqui gramscianamente - não deixaria de veicular uma determinada (e conceitualizada) "visão de mundo", onde este mundo voltaria a ser representado pela própria comunidade. [fim da página 228]
Ora, a referência a Antonio Gramsci remete para outro tópico fundamental das minhas observações, agora mais teórico do que metodológico. E devo confessar que o instrumentário teórico que vem me acompanhando ao longo dos anos e que projeto agora na minha pesquisa atual é fundamentalmente de procedência italiana, e gramsciana.
Se o ponto de partida é essencialmente representado pelo corpus do conjunto das considerações de Gramsci que os editores italianos reuniram sob o título de "Osservazioni sul folclore" no volume Letteratura e vita nazionale, o desenvolvimento dessas idéias orienta-se pelas reflexões que a partir das notas gramscianas fizeram alguns estudiosos italianos, entre os quais, sobretudo, Alberto Mario Cirese, Luigi Lombardi Satriani, Pietro Clemente, Tullio Seppilli, Diego Carpitella, Vincenzo Padiglione e Aurora Milillo. Lembro que o nó principal do texto de Gramsci aponta para a consideração do folclore como expressão de uma "concepção do mundo e da vida" para a qual é possível determinar uma precisa colocação sócio-cultural com relação às outras concepções do mundo. Tal concepção, com efeito, é própria de "certas camadas da sociedade [...] determinadas no tempo e no espaço", ou seja do "povo", considerado aqui como "o conjunto das classes subalternas e instrumentais de todas as formas de sociedades até agora existidas" (Gramsci, 1977: 267-268).
Considerando o texto gramsciano na sua globalidade, e para o qual remeto, inclusive na precisa tradução brasileira de Carlos Nelson Coutinho, parece-me que coexistem em Gramsci duas distintas concepções:
1. A primeira é dada pela oposição folclore/cultura oficial, onde a noção de folclore parece referir-se principalmente a grupos sociais e a fatos culturais que, independentemente da sua colocação de classe, ficaram mais distantes da cultura moderna e conservaram características arcaicas. Aqui, o folclore é caracterizado pela perifericidade, pelo atraso, pelo arcaísmo.
2. A segunda é dada pela oposição entre concepções do mundo das classes subalternas e cultura oficial. Embora Gramsci utilize ainda a mesma noção de folclore para designar "concepções do mundo das classes subalternas", a referência social de tais concepções não é apenas a perifericidade ou o atraso, mas, pelo [fim da página 229] contrário, e explicitamente, o conjunto das camadas populares e das camadas subalternas, na sua oposição, ainda que implícita, às camadas hegemônicas e dominantes; e isto, vale acrescentar, também nas diversas fases históricas. Há portanto uma ênfase de tipo fortemente generalizador e, tendencialmente, de "fundação" de uma disciplina específica em esfera claramente histórica, que mal corresponderia à noção de arcaísmo e de atraso.
Nesse sentido, e como foi sublinhado na Itália desde a década de Sessenta (cf. Apergi, 1979), é a própria condição cultural de subalternidade, no estudo das classes populares, o campo específico do "demólogo" e o seu possível limite disciplinar. Daí surge claramente a contigüidade entre o conceito de folclore ou de cultura popular e o estatuto da disciplina que se encarregaria de estudá-lo. Seppilli (1977), Cirese (1973, 1976) e Carpitella (1972), por exemplo, usam a noção de folclore para indicar uma área da consciência social contemporânea, limitada a alguns setores de algumas camadas subalternas (camponeses, pastores, artesãos, em condições de acentuada marginalidade territorial e social). Nesse sentido, o folclore reduziria cada vez mais a sua presença, acossado pelos processos de modernização protagonizados por dois pólos principais, entre si antagonistas: as classes dominantes e o movimento operário.
Já Luigi Lombardi Satriani (1967, 1968a, 1968b, 1979) considera o folclore como o conjunto das concepções das classes subalternas, que compreenderia também aspectos de "contestação". Nessa perspectiva, o autor determina (1968b), como "filão problemático", a possibilidade de estabelecer quatro "níveis" de contestação da cultura subalterna para com a hegemônica: "1) de contestação imediata com rebelião, explícita ou implícita, ao status quo; 2) de contestação imediata com aceitação, explícita ou implícita, do status quo; 3) de contestação implícita (ou por posição); 4) de aceitação da cultura hegemônica. Neste último nível, Lombardi Satriani identifica três áreas de confronto, ou planos sócio-culturais, de forte embasamento histórico. Por um lado, um plano "comum" à cultura subalterna e à cultura hegemônica; em segundo lugar um plano "ex-comum", formado pelas manifestações que hoje possuem difusão limitada ao mundo subalterno mas que no passado eram patrimônio comum às duas culturas, e, finalmente, um plano "autônomo", que compreende manifestações passadas e presentes próprias de uma cultura subalterna e popular, modificada por sua vez pelas relações com as classes hegemônicas. [fim da página 230]
Tentando uma síntese das várias posições, que ao mesmo tempo permita uma transferência dessas questões - que me parecem fundamentais para o próprio destino das nossas pesquisas - para a realidade brasileira contemporânea, acho que se pode considerar a coexistência substancial de três planos sócio culturais: a cultura burguesa hegemônica; uma cultura popular "de contestação" (em contato, por exemplo, ou mesmo protagonista do movimento operário e/ou das várias formas de luta pela terra); e uma cultura popular "de resistência", mais periférica e caracterizada por um mais acentuado contexto de atraso social, marcado inclusive por um quadro de extrema indigência material. Vou esclarecer, mais adiante, com um exemplo tirado do meu atual campo de pesquisa.
Se a minha síntese for correta, parece-me que a essa última parcela sócio-cultural se pode atribuir um comportamento particularmente "não-hegemônico" ou, se preferirem, mais acentuadamente subalterno. A minha perspectiva teórica e metodológica, o meu interesse prioritário é essencialmente o comportamento não-hegemônico das classes populares, cada vez mais forte quando se considere a diminuição da subalternidade ideológica e política de amplos segmentos dessas mesmas classes populares. Não há como negar, infelizmente, que existe uma distância significativa, em termos de acesso às condições básicas da vida, entre as camadas integradas ao processo industrial do sudeste e do sul do país, por um lado, e as massas de despossuídos do nordeste e do norte, embora ambos esses segmentos sócio-econômicos se oponham, objetivamente, às camadas hegemônicas da sociedade brasileira. Em particular, parece-me significativa a situação de crise em que se encontram os vários grupos de Maracatu, Caboclinhos e Bumba-meu-Boi da favela de Nova Goiana (Pernambuco), onde estou realizando a minha pesquisa. A comunidade, recente mas articulada em suas coordenadas sociais, é formada basicamente por famílias oriundas da economia canavieira, com forte presença de desempregados e de aposentados rurais, e nela se manifesta, entre outros, um quadro grave de desnutrição infantil. Os depoimentos colhidos até agora mostram a evidente inviabilidade, para os próximos carnavais, da apresentação da maioria desses grupos, sem patrocínios nem verbas próprias. Assim, inclusive, parece-me que deve ter chegado a hora em que se comece a refletir com mais coragem sobre que o fato de que o agravamento das condições de vida de amplos segmentos da população brasileira, enfim, numa palavra - feia - [fim da página 231] a extrema pobreza, é que está ameaçando a continuidade de muitas práticas populares. O lema "registre antes que acabe", que tanto tem preocupado legiões de folcloristas brasileiros, haverá, mais cedo ou mais tarde, de se defrontar com esta desagradável realidade, tão freqüentemente escamoteada por esses mesmos folcloristas.
Ao mesmo tempo, é justamente a história de vida que poderia testemunhar da inserção ou da não-inserção do indivíduo e da comunidade nesse processo, até porque, como sublinha Maria Isaura Pereira de Queiroz (ibidem: 36), ela é capaz de captar o que ocorre na "encruzilhada da vida individual com o social".
Narrar sua própria existência consiste numa autobiografia, e toda história de vida poderia, a rigor, ser enquadrada nesta categoria tomada em sentido lato. Mas no sentido restrito a autobiografia existe sem nenhum pesquisador, e essa é sua forma específica. É o
narrador que, sozinho, manipula os meios de registro, quer seja a escrita, quer o gravador.. Foi ele também que, por motivos estritamente pessoais, se dispôs a narrar a sua existência, fixar suas recordações; deu-lhes o encaminhamento que melhor lhe pareceu e, se utilizou o gravador, não raro ele mesmo efetua em seguida a transcrição, ou, pelo menos a corrige. Na autobiografia não existe, ou se reduz ao mínimo, a intermediação de um pesquisador; o narrador se dirige diretamente ao público, e a única intermediação está no registro escrito, quer se destine ou não o texto à publicação
(1988: 23).
Gostaria de finalizar estas notas com a referência às pesquisas reais onde a questão tem se agitado. Ambas têm como lugar de realização a cidade de Goiana, na zona da mata de Pernambuco, exatamente a meio caminho entre Recife e João Pessoa.
A primeira realizou-se aproximadamente entre 1985 e 1986, com um apêndice em 1988, e resultou numa dissertação de Mestrado, sob a orientação da professora Idelette Muzart Fonseca dos Santos, centrada sobre o romanceiro de tradição oral, ou narrativas cantadas. Ela procurava estabelecer um corpus de cantos populares de estrutura narrativa, essencialmente ligado, por sua vez, a um corpus de procedência ibérica mas já fortemente abrasileirado nas formas e nos conteúdos. Esse conjunto de cantos foi relacionado com as suas formas de produção individual e comunitária, atentando-se também para o papel que eles representam nas condições contemporâneas da área considerada. Nessa perspectiva, o recurso à história de vida foi bastante reduzido, concentrando-se basicamente à narração de uma lavadeira de Goiana, dona Josefa, possuidora do maior e mais significativo repertório romancístico da comunidade.
A partir da própria relação com dona Josefa, surgiu a percepção da necessidade de um aprofundamento teórico e metodológico que, por sua vez, está agora se traduzindo numa verdadeira guinada. A segunda pesquisa em Goiana, que começou em junho de 1995, se integra ao mais amplo projeto coordenado pela professora Maria Ignez Novais Ayala, e utiliza a história de vida como seu instrumento prioritário, instrumento [fim da página 232] que, de um certo ponto de vista, se transforma no próprio objeto da pesquisa.
De fato, a pesquisa articula-se em torno de duas questões:
1. Existem formas expressivas literárias através das quais os moradores pobres de Goiana contam a sua vida e a si mesmos?
2. Se existem, de que maneira tais formas se estruturam e em que consiste a sua especificidade, com relação às demais formas de narrativa popular, por um lado, e às formas usuais da autobiografia não popular?
Desta forma, as histórias de vida, agora consideradas como narrações de acontecimentos, individuais, comunitários e até "extra-comunitários", tornam-se "instrumentos" para o questionamento de outros problemas de pesquisa e de interpretação. Grosso modo, os seguintes:
1. Quais os acontecimentos e as características salientes do espaço e da história da comunidade que entraram na consciência e na expressão das classes subalternas de Goiana.
2. Em que medida esta consciência do espaço e da história e a sua expressão se relacionam com a cultura popular e em particular com a presença, no espaço considerado, de grupos que praticam manifestações como, por exemplo, o Maracatu, os Caboclinhos e o Bumba-meu-Boi.
3. Enfim. qual é a consciência e a concepção do espaço e da história comunitários que a própria comunidade possui.
Espero que, embora na sua definição sintética, fique claro que a questão não é a reconstrução da história da comunidade, mas a história da comunidade narrada pela comunidade, em sua articulação com a consciência individual e coletiva veiculada pelas histórias de vida (5). [fim da página 233]
Em última síntese, pode-se dizer que se pretende, delimitado um mundo - a comunidade - e dada expressão a uma visão de mundo - a história de vida - articular as duas esferas numa interpretação dialética, ao mesmo tempo literária e cultural, que invada dois territórios alheios ao horizonte subalterno, a autobiografia e a história, modalidades escritas e, por isso, monopolizadas pela cultura hegemônica.
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2) "A história somos nós,/Cuidado: ninguém se sinta excluído./A história somos nós,/Somos nós estas ondas no mar,/Este barulho que quebra o silêncio,/Este silêncio tão duro de se contar".
3) Nesta perspectiva, a pesquisa assume um caráter "militante", que não abre mão da obrigação de articular os seus materiais com uma análise aprofundada das condições de produção das manifestações e das atitudes registradas no campo.
4) Mutuo aqui as expressões "demologia" e "demológico" da tradição recente da antropologia italiana de procedência gramsciana, numa tentativa de superação das ambigüidades contidas nas expressões "folclore", "folclórico" e "tradições populares". A palavra, evidentemente, é formada com a raiz do vocábulo grego demos (= 'povo').
5) Resultados importantes e significativos, neste sentido, estão sendo alcançados pelas duas pesquisadoras do "PIBIC", Edinilza Barbosa e Walquiria Araujo, que estão ligadas a este projeto. Em particular, este segmento da pesquisa está sendo desenvolvido no povoado de São Lourenço, na região litoral do município de Goiana.