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Política e Trabalho 13 - Setembro / 1997 - pp. 165-177


A ANTROPOLOGIA E OS NOVOS DESAFIOS NOS ESTUDOS DE CULTURA E POLÍTICA(1)

Guita Grin Debert(2)


Falar de tendências atuais de uma disciplina como a antropologia - cujo fascínio está especialmente no fato de nunca ter se prendido a fronteiras geográficas, temáticas e metodológicas - é correr o risco de privilegiar locais, métodos e temas para a pesquisa antropológica. Por isso, dizer de onde se fala de novas tendências e dos nossos desafios é uma das formas de evitar dissolver o charme de indisciplina que caracteriza a reflexão antropológica. A área em que estou envolvida é a que, de maneira pioneira no Brasil, tem sido chamada de estudos da Cultura e Política. Esses estudos se institucionalizaram com os grupos de trabalho na ABA e na ANPOCS e constituíram-se em uma área de ensino e pesquisa no Programa de Doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP.

Posso resumir o argumento que venho defendendo na maior parte dos debates que tenho empreendido nessa área nos seguintes termos: os estudos e pesquisas na área de Cultura e Política no Brasil trouxeram frutos extremamente interessantes quando, analisando nossa própria sociedade, constituímos os pobres, os desprivilegiados e as minorias étnicas discriminadas em nosso objeto privilegiado de pesquisa, em nosso "outro". Com estudos minuciosos mostramos como esses grupos desafiavam as formas de dominação de maneira inusitada pelas teorias sociológicas, que enfatizavam a função homogeneizadora e opressora das tecnologia de poder. Atualmente, contudo, o desafio mais instigante da antropologia brasileira é a busca de acessos privilegiados para a compreensão deste "nós" que tão prontamente opomos aos "outros", de forma a problematizar a familiaridade com que eles têm sido tratados pelos antropólogos e outros cientistas sociais. [fim da página 165]

Considero que as discussões em torno da pós-modernidade fizeram deste desafio um convite irrecusável para a antropologia, mesmo que ele já tivesse sido colocado para a nossa disciplina muito antes do que o que se convencionou chamar de antropologia pós-moderna ganhasse visibilidade.

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Quando penso em novas tendências da antropologia tenho sempre como referência um artigo de Laura Nader, publicado em 1969, numa coletânea organizada por Dell Hymes, intitulada Reinventing Anthropology (3). Nesse artigo é feito um apelo aos antropólogos norte-americanos para que se voltem ao estudo de sua própria sociedade, especialmente para a compreensão de como o poder e a responsabilidade são exercidos nos EUA. Três razões são alegadas pela autora para justificar a importância desse novo programa de pesquisas: o programa teria um "efeito energizador" da disciplina; a antropologia estaria "cientificamente adequada" para tal empreendimento; e tratar-se-ia de um empreendimento que tem "relevância democrática". Vale a pena retomar cada uma dessas razões que considero centrais na avaliação de novas tendências da disciplina, de novos programas de pesquisa ou de novos temas para a investigação.

Com a expressão "efeito energizador", Nader procurava chamar a atenção para a importância da indignação como um motivo na definicão dos temas da pesquisa antropológica, lembrando que desde os primeiros estudos dos sistemas de parentesco e organização social - como em Morgan, por exemplo - não esteve ausente a indignação com a forma pela qual os índios americanos eram tratados e expulsos de seus territórios. Entretanto, os jovens estudantes de antropologia norte-americanos não se voltam para pesquisas que provocam seus sentimentos de indignação. Os jovens antropólogos sabem que existem problemas fundamentais que afetam o futuro do Homo Sapiens, mas ainda estão presos a uma agenda de pesquisas que, depois dos anos 50, deixou de provocar esse tipo de emoção.

A antropologia, de acordo com Nader, estaria especialmente qualificada para refletir sobre a forma como poder e responsabilidade são exercidos. Suas pesquisas sempre tiveram que ser ecléticas nos [fim da página 166] métodos utilizados, e sua abordagem do que está envolvido na compreensão da humanidade é ampla, posto que os antropólogos se especializaram na compreensão de culturas em contextos transculturais. Os antropólogos aprenderam ainda a encontrar e analisar redes de poder, descrever costumes, valores e práticas sociais que não estão registrados em linguagem escrita. A leitura da quantidade avassaladora de material escrito, que instituições poderosas produzem, ajuda pouco na compreensão de como decisões são tomadas no Congresso ou em uma empresa, de como determinadas políticas são implementadas ou temas para pesquisa são definidos como prioritários, recebendo assim financiamentos específicos. Para entender essas questões é preciso se debruçar sobre redes de relações, valores e práticas que dificilmente são identificadas no papel. Essa compreensão exige o treino e a familiaridade com que o antropólogo trabalha com o princípio de reciprocidade e com a dimensão cultural, quando analisa práticas que não podem ser explicadas como frutos de cálculos racionais.

A "relevância democrática" de tal programa de pesquisas, ainda de acordo com essa autora, estaria no fato de que o povo americano não conhece suas próprias leis e não sabe como funcionam as organizações burocráticas que usa. Não podemos deixar que o aprendizado de nossos direitos fique inteiramente a cargo da mídia. A antropologia pode e deve ampliar o escopo do seu público, e está bem equipada para descrever um sistema que se conhece vagamente e que tem um peso fundamental no direcionamento da nossa vida.

Esse tipo de proposta, no contexto norte-americano, causa ainda uma série de objeções, relacionadas com a idéia de que o trabalho de campo - de modo a garantir o estranhamento - deve ser feito em uma outra cultura, de preferência não-ocidental. Nader considera, entretanto, que a pesquisa num banco, numa firma americana, num laboratório ou no Congresso pode ser para o antropólogo uma experiência mais bizarra do que uma aldeia mexicana.

Esse não é um problema sério para o antropólogo brasileiro porque sempre por diferentes razões estudamos nossa própria sociedade. No artigo "A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas", Eunice Durham, mostrou que, apesar de nossos "deslizes semânticos", fomos capazes de produzir uma nova e instigante antropologia de nós mesmos, especialmente quando os grupos pesquisados pelos antropólogos, e que eram vistos como marginais, ganharam centralidade na cena política emergindo como os [fim da página 167] novos atores políticos (4). Os estudos detalhados da vida nos bairros de periferia, dos novos movimentos sociais, da umbanda, das comunidades eclesiais de base, do pentecostalismo, feminismo e sexualidade ofereceram um novo panorama da vida política brasileira. O estilo quase desprovido de termos técnicos, com o qual apresentamos nossos dados, favoreceu o acesso a um público que ultrapassa antropólogos ou cientistas sociais; nossas discussões se ampliaram para além dos muros da universidade, com o consequente sucesso de uma disciplina que antes era vista como marginal ou menor nas Ciências Sociais.

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Entretanto, o efeito energizador da antropologia norte-americana não veio do texto escrito por Laura Nader em 69, e sim do que mais tarde se convencionou chamar de antropologia pós-moderna. Efeito energizador, talvez não no sentido que Nader tinha proposto; mas no sentido de que revitalizou a disciplina, dando espaço para que uma geração mais nova de antropólogos colocasse suas idéias, criasse novos conteúdos para as polêmicas no interior da disciplina, elaborasse uma crítica à forma tradicional de fazer antropologia. Mostrou-se assim como a autoridade do antropólogo é construída, operou-se uma revisão definitiva da idéia das culturas como totalidades autônomas e integradas e, sobretudo recolocou-se no coração da disciplina a importância da crítica cultural. Mas houve uma desproporção entre a paixão vinda à tona na crítica do fazer antropológico tradicional e as alternativas encontradas (5). A alternativa foi basicamente textual: como criar uma nova maneira de escrever sobre culturas, incorporando no texto a consciência de seus próprios procedimentos como, por exemplo, a polifonia e a relação dialógica entre observador e observado. A crítica cultural foi uma promessa não realizada; não foi além de menções vagas ao colonialismo e às relações de poder que se estabelecem entre observador e observado.

Considero que a dificuldade de ir mais fundo na crítica cultural está relacionada com o tipo de conhecimento que o antropólogo tem da sua própria sociedade. Os debates em torno da idéia de pós-modernidade mostraram definitivamente o quanto esse conhecimento é vago. [fim da página 168]

Em outras palavras,todos nós sabemos que:

Entretanto, o que talvez seja menos evidente é o quanto somos nativos das nossos próprias culturas e sociedades, quanto os nossos conceitos sobre elas são o que Geertz chama de "experience near concepts" (6), principalmente nos contextos em que a antropologia se desenvolve de maneira distanciada da sociologia, da ciência política e da economia.

***

No caso brasileiro, como estudamos nossa própria sociedade, as noções de totalidade e de crítica cultural se colocaram de maneira distinta. O nosso "outro" foram os grupos marginalizados, discriminados, explorados e por isso mesmo nunca perdemos de vista que eles eram parte de um sistema maior, o sistema capitalista, em um mundo globalizado e mundializado que perpetuava sua condição de dominados. Em certos momentos enfatizávamos os elementos que nas práticas cotidianas reproduziam a dominação, em outros privilegiávamos as formas de resistência à dominação. Nossos dados permitiam não apenas o debate nas ciências sociais, mas exigiam uma sofisticacão dos grandes conceitos utilizados pelas teorias da Sociologia e da Ciência Política, encarregadas das visões totalizadoras, das teorias acabadas da vida social.

Entretanto, meu argumento é que é preciso energizar a antropologia brasileira e que esse impulso energizador vem dos trabalhos que procuram, mais do que fazer uma antropologia pós- [fim da página 169] moderna, fazer uma antropologia da pós-modernidade (7). O próprio desta nova tendência é explorar o convite que a idéia de pós-modernidade faz a um novo programa de pesquisas empíricas, na medida em que chama nossa atenção para a fragilidade dos conceitos que usamos para dar conta das mudanças em curso, as quais caracterizam a vida social contemporânea.

Em outras palavras, o próprio da noção de pós-modernidade é, por um lado, o questionamento da autoridade das meta-narrativas que orientavam a ação sobre o mundo e a proposta de novas formas de representação de realidades e de novas maneiras de escrever sobre as culturas. Entretanto, por outro lado, é próprio também deste conceito o esforço de caracterização das descontinuidades entre as instituições e os processos sociais que marcariam uma ruptura com a modernidade. Na caracterização destas descontinuidades não há um acordo entre os autores: grande parte do debate está centrado na questão de se saber se vivemos uma nova etapa do capitalismo; se passamos do capitalismo industrial para o capitalismo de consumo; da sociedade industrial para a sociedade informacional; se é correto falar de pós-modernidade ou se seria mais apropriado entendermos a fase atual como de alta modernidade. É, no entanto, parte deste debate - em torno de saber se vivemos ou não uma fase suficientemente distintiva, merecedora de nova conceituação - o convite para um trabalho mais cuidadoso na caracterização de processos de mudança, na identificação do que é novo na experiência contemporânea.

Ou seja, o conceito de pós-modernidade tem exigido da parte dos cientistas sociais não apenas uma série de reformulações teórico-metodológicas, mas também tem dirigido nossa atenção e aguçado nossa sensibilidade para um trabalho mais cuidadoso na caracterização da experiência cotidiana.

A antropologia, pelas razões mencionadas por Laura Nader, está especialmente bem colocada para fazer face a esse convite, que envolve um conhecimento mais elaborado do "nós" e das formas específicas que a dominação assume contemporaneamente. Contudo, atender a esse convite exige reformulações na forma em que o trabalho antropológico vem sendo tradicionalmente realizado; demanda também revisões nos instrumentos metodológicos e nos pressupostos éticos com os quais temos trabalhado.

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[fim da página 170]

Este convite requer, em primeiro lugar, uma refocalização dos objetos tradicionalmente estudados pela antropologia urbana brasileira. Em um mundo em que globalização e fragmentação se combinam de maneira inusitada, em que as fronteiras entre os grupos não são nítidas, mas exaltam-se as particularidades e o conhecimento local, fica cada vez mais claro que não podemos nos limitar ao estudo de grupos que se definem como estando mais ou menos isolados.

O estudo de cada parte revela pouco sobre processos mais gerais que combinam integração e fragmentação. É preciso privilegiar as formas de interlocução entre esses grupos. Um bom começo para isso, como tem mostrado Featherstone, é olhar com mais cuidado para o que ele chama de "intermediários culturais". A massificação do ensino superior criou um sem-número de profissionais com alto nível educacional, que têm se especializado na producão de bens e de serviços, e cuja marca fundamental é exigir a participação de agentes que gosto de chamar de "interpretativistas culturais". Entre esses agentes estão desde os assistentes sociais, passando pelos criadores na mídia e publicitários, até os assessores do grande capital, cujos serviços de consultoria implicam imaginar e definir qual será o comportamento de indivíduos do outro lado do mundo, na Coréia ou no Japão, diante dos derivativos colocados no mercado financeiro. São especializados, portanto, na promoção de uma interlocução entre os fragmentos, a qual, por sua vez, dá uma dinâmica específica a cada um deles. Para Featherstone, os intermediários culturais são por excelência os produtores, disseminadores e consumidores do simulacro e do conjunto de bens identificados com a experiência pós-moderna. Meu interesse é ressaltar essa característica de "interpretativistas culturais", a qual marca a atuação destes profissionais nas empresas, em orgãos do governo ou em associações da sociedade civil como as ONG's (8). Entender a lógica pela qual eles estabelecem uma interlocução entre fragmentos aparentemente desconexos é um novo desafio para a antropologia.

A pesquisa sobre meninos de rua, grupos de idosos, minorias étnicas ou moradores da periferia não pode se limitar a uma análise de representações ou a uma descrição de estilos de vida destes grupos. Exige também que se leve em conta a trama institucional envolvida nos [fim da página 171] espaços percorridos por esses grupos (9). Os diferentes órgãos do poder público e as organizações não-governamentais, que atuam em cada um destes espaços, competem por recursos materiais e políticos para fazer valer sua agenda. As ONGs e as diferentes instituições governamentais são compostas e têm sua dinâmica própria dada por funcionários que não apenas vêm dos mesmos estratos sócio-econômicos, mas também fazem parte da mesma geração; e operam com o mesmo corpo conceitual e ideológico, próprio de um contexto em que houve uma massificação do ensino superior e a abertura de espaços para novos tipos de profissionais. A competição por recursos que estes profissionais mantêm - na medida em que estes estão alocados em diferentes instituicões (governamentais ou privadas), que disputam o monopólio sobre questões envolvendo as populações-alvo de suas ações - é fundamental para entendermos a dinâmica das representações e estilos de vida dos grupos tradicionalmente estudados pela antropologia.

Em segundo lugar, é preciso repensar na centralidade que a observação participante tem na definicão dos projetos de pesquisa em antropologia; mais do que compreender o ponto de vista do nativo, é importante ver a forma específica em que se dá a interlocução entre grupos, em um contexto em que as fronteiras perdem nitidez, enquanto a afirmação das particularidades locais é exacerbada.

A definição dos temas de pesquisa não pode se prender à possibilidade de delimitação de um lugar, em que a observação participante poderá ser realizada de acordo com os cânones tradicionais do fazer etnográfico.

Os trabalhos antropológicos sobre a mídia, ao elegerem os estudos da recepção, fazem observações minuciosas sobre a reinterpretação das imagens televisivas por grupos sociais específicos; neste aspecto, estes trabalhos foram fundamentais para rever a idéia de que a indústria cultural produz uma cultura de massa homogênea que põe em risco a individualidade e a criatividade do receptor. O estudo da recepção mostrou o papel ativo dos receptores na criação de novos [fim da página 172] significados (10). Não podemos supor, no entanto, que qualquer mensagem se presta a qualquer interpretação.

Esther Hamburguer, no estudo que empreende sobre a produção da mensagem televisiva, aponta o processo de interlocução entre emissores e receptores na produção da novela, através da análise de cartas, dados do IBOPE e especialmente da dinâmica dos focus groups, criados para avaliar a recepção das mensagens televisivas. Conta que no início de sua pesquisa achou que haveria grande resistência, por parte dos produtores da novela, para que pudesse assistir à gravação dos programas, mas logo percebeu que o acesso às gravações era aberto ao pesquisador externo. O difícil era observar a realização das pesquisas qualitativas de opinião e a consulta de seus resultados, que é a forma em que se dá a interlocução entre os criadores da novela e seu público consumidor. O acesso a esse material tornou possível uma compreensão mais completa de como o ponto de vista dos receptores da novela é nela incorporada; e como valores próprios do ideário feminista, por exemplo, combinam-se com a propaganda de produtos que são apresentados como maneiras ideais de liberar a mulher de seus afazeres domésticos (11).

Ou seja, quando o interesse é a interlocução entre os fragmentos é preciso procurar novos acessos para a pesquisa, e nem sempre esses acessos são aqueles que possibilitam a realização da observação participante nos moldes tradicionalmente propostos pela pesquisa antropológica. Mais do que um lugar, precisamos de uma agilidade mais próxima daquela dos "intermediários culturais" que tiveram em nós, antropólogos, os responsáveis por boa parte de sua formação profissional.

Em terceiro lugar, é preciso abandonar a idéia de que é necessária uma identificação empática com os nossos informantes, com a população estudada, para apreender as categorias culturais através das quais ela articula sua experiência social e ordena práticas coletivas.

É necessário explorar o potencial da pesquisa antropológica para entender a lógica a partir da qual os grupos mais poderosos operam, mesmo quando eles provocam nossos sentimentos mais fortes de indignação. Pode-se dizer que é nessa direção que Geertz aponta quando considera que uma etnografia do pensamento moderno é um [fim da página 173] "projeto imperativo", mostrando o interesse do instrumental antropológico no estudo dos cientistas e acadêmicos (12).

O potencial da pesquisa antropológica não pode, entretanto, limitar-se a mostrar como os cientistas ou os acadêmicos organizam seu mundo de significados ou simplemente descrever o mundo em que esses significados ganham sentido. É especialmente importante analisar como esses significados afetam de maneiras distintas a nossa vida cotidiana e dos grupos tradicionalmente pesquisados pelos antropólogos, politizando o debate em domínios que reagem veementemente a qualquer tentativa de politização.

Minha pesquisa sobre a velhice teve início com a descrição de como os idosos representavam sua experiência de envelhecimento, com a busca de locais como praças e jardins públicos, asilos e programas para a terceira idade. Entretanto, em um segundo momento, era preciso: refletir sobre o que tenho chamado de "Formas de Gestão do Envelhecimento"; analisar como um saber, respaldado na autoridade da ciência se constitui e transforma a experiência da velhice em um assunto de experts, encarregados de definir não apenas quais são as necessidades dos idosos, os problemas que eles enfrentam na atualidade, mas que também se incumbem da formação de outros especialistas para atender a essas necessidades e resolver esses problemas; reconhecer que existiam forças dinâmicas situadas fora dos grupos de idosos pesquisados - como os gerontólogos, de um lado, e a mídia, de outro - em um processo dinâmico de interlocução que exige redefinições constantes em seus respectivos discursos, ao mesmo tempo que dispõem de aparatos extremamente eficazes para divulgá-los. Esses discursos impregnavam a reflexão de cada idoso sobre o que é a velhice e a sua experiência pessoal (13).

Falar da velhice como um problema social não é apenas propor um combate aos preconceitos, ao isolamento e à solidão, nem apenas sugerir formas de melhorar as condições de vida do velho pobre. É também fazer cálculos dos custos financeiros que o crescimento da [fim da página 174] população idosa traz para a sociedade, transformando o envelhecimento em um perigo, em uma ameaça para a perpetuação da vida social.

O discurso gerontológico é um dos elementos fundamentais no trabalho de racionalização e de justificação de decisões político-administrativas e do caráter das atividades voltadas para um contato direto com os idosos. Mesmo quando o poder de decisão não é do gerontólogo, ele é o agente que, em última instância, tem a autoridade legítima de definir as categorias de classificação dos indivíduos e de neles reconhecer os sintomas e os índices correspondentes às categorias criadas.

Instituições sociais como a aposentadoria, criadas para gerir riscos, são transformadas em fontes de produção de outros riscos, considerados inviabilizadores do sistema. Daí a urgência na compreensão da lógica que organiza suas concepções do que é a boa vida e a dignidade humana, e na politização desse campo que se apresenta como sendo de pura neutralidade contábil.

Tratar do envelhecimento, num contexto em que ele se transforma em um novo mercado de consumo é, também, perceber a criação de uma série de etapas intermediárias que separam a vida adulta da velhice, como a menopausa, a terceira idade, a aposentadoria ativa. Neste contexto a juventude deixa de ser algo que se possui ou não, uma etapa no desenvolvimento de cada um, e se transforma em um bem, um valor que pode ser conquistado em qualquer momento da vida, independentemente da idade cronológica, através da adoção de estilos de vida e formas de consumo adequadas.

A velhice pode assim ser transformada em ameaça à perpetuação da vida social ou em uma responsabilidade individual, um problema dos indivíduos que não souberam permanecer jovens, consumindo as tecnologias capazes de adiar indefinidamente os problemas do envelhecimento.

***

No estudo dos grupos e instituições mais poderosas, o potencial da pesquisa antropológica tem sido pouco explorado na análise dos conflitos e das disputas entre grupos dominantes, com o intuito de monopolizar e estabilizar hierarquias, e de como esses conflitos afetam a nossa própria vida e a dos grupos tradicionalmente estudados pela antropologia. [fim da página 175]

Esse novo desafio coloca questões que exigem uma revisão dos pressupostos éticos com os quais os antropólogos tradicionalmente trabalharam. O problema não se reduz a tornar esse novo "outro" menos enigmático, como quer Geertz, mas politizar os campos em que eles atuam. Além disso, não se trata apenas de mostrar que os cientistas não têm a neutralidade científica pretendida, mas de analisar como os significados por eles produzidos afetam de maneiras distintas a nossa vida cotidiana e dos grupos tradicionalmente pesquisados pelos antropólogos, redefinindo vínculos sociais, projetos e expectativas.

A antropologia, explorando sua competência no desvendamento das lógicas através das quais o "outro" opera, tem sua relevância democrática na medida em que pode politizar o debate em domínios pouco constituídos politicamente, os quais têm servido de oportunidade para o exercício de magistraturas que se pretendem meta-políticas.

Boa parte da discussão empenhada em caracterizar a experiência contemporânea se concentra na revolucão tecnológica que, a partir dos anos, 70 dá uma nova configuração à produção de bens e às formas de comunicação: a massificação do acesso à mídia eletrônica, as novas tecnologias de comunicação, a informatização dos locais de trabalho e de outros espaços.

Menos ênfase tem sido dada às biotecnologias e às formas como elas redefinem nossa vida. Não se trata de dizer que essas tecnologias que envolvem a vida, o corpo, a sexualidade sejam monoliticamente demoníacas nem que tenham potencial como forças libertárias. Quando se fala em biotecnologias é sempre preferível ser o mais concreto possível.

Entretanto, quando olhamos para as novas tecnologias de informação, é possível pensar em uma ampliação e democratização do acesso à informação. É possível descrever um processo através do qual grupos excluídos passam a ser ativamente incorporados e têm sua participação na política ampliada. As biotecnologias, entretanto, são um reino privilegiado para o exercício de poderes que se pretendem politicamente neutros - daí a urgência na compreensão de como nesse campo o poder é instaurado e monopolizado - e do tipo de lógica que organiza as concepções de seus produtores sobre o que é a boa vida e a dignidade humana.

Há alguns anos era fácil, nas associações de gerontologia, identificar a oposição entre médicos geriatras e gerontólogos, cientistas sociais que, contra o determinismo biológico dos primeiros, [fim da página 176] empenhavam-se em mostrar que a velhice é uma construção sócio-cultural e histórica. Hoje essa afirmação significa arrombar portas abertas, pois os médicos geriatras, os que praticam a medicina ortomolecular e especialidades afins radicalizaram a idéia da construção cultural. Para eles a juventude, há muito tempo, não é mais uma etapa da vida, um momento de passagem em um contínuo que caracteriza o desenvolvimento biológico universal e de cada um, como os cientistas sociais sempre se apressaram em mostrar. Na prática, eles são hoje agentes ativos em propor uma parafernália de receitas de consumo e estilos de vida, que indicam que a eterna juventude é um bem, um valor que ninguém pode pensar em desprezar.

Politizar os campos de saber, especializados em práticas que reconfiguram o destino do Homo Sapiens, requer uma revisão dos pressupostos éticos da pesquisa antropológica, os quais tiveram como base o estudo de grupos discriminados e desprivilegiados. O Código de Ética dos Antropólogos, elaborado pela Associação Brasileira de Antropologia, considera que as populações pesquisadas têm direitos, tais como:

A relevância democrática da antropologia exige que possamos denunciar práticas que afetam e podem ser nefastas ao destino do Homo Sapiens. Para fazer a pesquisa com esses experts, não podemos dizer com clareza o que de fato estamos pesquisando, qual o objetivo e as hipóteses que organizam o nosso trabalho. Politizar as questões por eles tratadas é prejudicar a neutralidade pretendida dos domínios que eles controlam.

Em suma, acredito que a contribuição da antropologia, no estudo dos processos de globalização e mundialização, foi descrever as formas específicas em que se operam as rearticulações locais. O desafio mais instigante para os estudos de Cultura e Política, na atualidade, é procurar entender como se dá a interlocução entre os fragmentos em uma sociedade que tem, como condição de sua própria reprodução e integracão, o acirramento das particularidades e a fragmentação do público de consumidores. Se esse novo desafio exige a revisão de alguns dos procedimentos clássicos que marcaram a disciplina, a antropologia encontra-se especialmente adequada para responder a ele.

Notas

1) Texto apresentado na Mesa-Redonda Tendências Atuais da Antropologia IV Reunião de Antropologia - Norte e Nordeste -Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa - 28 a 31 de maio de 1995).

2) Professora do Departamento de Antropologia - IFCH/UNICAMP.

3) NADER, L. . (1969). "Up the Anthropologist - Perspectives Gained from Studying Up". In: HYMES, D. (ed.). Reinventing Anthropology. New York, Vintage Books.

4) DURHAM, E. R. . (1986). "A pesquisa antropológica com Populações urbanas: Problemas e Perspectivas". In: CARDOSO, R. (org.). A Aventura Antropológica. Rio de Janeiro Paz e Terra, 1986.

5) Ver também, sobre as críticas à antropologia pós-moderna, OLIVEIRA, R. Cardoso de (1988); PEIRANO, M. G. S. (1992); TRAJANO, W. (1988); CALDEIRA, T. (1988).

6) GEERTZ, C. . (1983). Local Knowledge. Further essays in interpretative anthropology. New York, Basic Books.

7) Ver a esse respeito FEATHERSTONE, M. (1995). A Cultura do Consumidor e o Pós-Modernismo. São Paulo, Studio Nobel.

8) Sobre o tipo de controle emocional que caracteriza esses profissionais ver LASH, S. e URRY, J. . (1994). Economies of Signs and Spaces. London, Sage.

9) Empresto a idéia de "trama institucional" do trabalho de GREGORI Maria Filomena. (1994), "A Imprensa e os Meninos de rua", ANPOCS, em que é mostrada a competição entre diferentes instituições públicas e privadas, que atuam nesta área, para fazer valer sua agenda, e como essa competição marca as representações e modos de vida dos meninos de rua.

10) Ver como exemplo LEAL, O. F. . (1986). A Leitura Social da Novela das Oito. Petrópolis, Vozes.

11) HAMBURGUER, E. . (1994). "Telenovelas, Gênero e Política no Brasil", ANPOCS.

12) GEERTZ, C. . (1983). Local Knowledge. Further essays in interpretative anthropology. New York, Basic Books. Ver, nessa linha de pesquisas, a tese de doutorado de PONTES, Heloisa André . (1996). Destinos Mistos: o grupo Clima no sistema cultural paulista (1940-1968). USP/FFLCH; e a de CARVALHO, Cintia Avila de. (1995). Os Psiconautas do Atlântico Sul: uma etnografia da psicanálise. IFCH/UNICAMP.

13) Discuto essa questão em "O Discurso Gerontológico e as Novas Imagens do Envelhecimento". São Paulo em Perspectiva, Revista da Fundação SEADE. São Paulo, outubro/dezembro de 1993, vol 7, n.4.

14) Cf. o Código de Ética da ABA.


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Este site foi modificado pela última vez em 18 de Outubro de 1999, por Carla Mary S. Oliveira.

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