IDENTIDADE E POLÍTICA CULTURAL EM JOÃO PESSOA
Esta resenha tem como objeto o vídeo Para'iwa, produzido em 1994 por Durval Leal, direção e roteiro de Durval Leal, Marcus Vilar e Torquato Joel. Com 11': 45" de duração, Para'iwa constitui uma chamada de alerta contra a descaracterização do Centro Histórico de João Pessoa. Quando exibido atingiu em cheio olhos e corações da cidade, e mereceu referências e deferências diversas de críticos e articulistas da imprensa local, que o compreenderam como porta-voz do sofrido desfalque a que vem sendo acometido o patrimônio artístico e de modo particular arquitetônico de João Pessoa, erigido principalmente ao tempo do Brasil-Colônia. O centro antigo da cidade é o mais autêntico contador da sua história. [fim da página 257]
Outrora Filipéia de Nossa Senhora das Neves, João Pessoa nasceu cidade sem jamais ter sido vila (Freire, 1978:19)2. Foi conquistada aos 05 dias de agosto de 1585, dia de homenagem a Santa que lhe deu o nome e ao Rei Felipe da Espanha, e somente teve sua oficialização em 04 de novembro do mesmo ano. Nesses 410 anos de vida ostenta um dos patrimônios histórico, artístico e cultural, destacadamente arquitetônico, mais significativos do Brasil, uma vez que também é a sua terceira cidade mais antiga.
Assoma-se a sua riqueza patrimonial dois outros fatores que constituem a singularidade da sua natureza: é a segunda cidade mais verde do mundo em mata urbana nativa, e aloja no seu território, precisamente no seu litoral, na Praia do Cabo Branco, o Ponto Extremo-Oriental do Continente Americano.
A idéia aqui presente é analisar a cidade de que fala Para'iwa e o discurso do seu idealizador acerca dessa cidade, procurando configurar a identidade que aí se desenvolve. O intuito é entender que tipo de experiência subjetiva vive o homem urbano - aqui representado pelo produtor, em relação ao espaço público e coletivo que circunda o seu cotidiano de trabalho - a cidade em que vive. Tentando ainda compreender em que nível de influência os lugares interferem na construção de algum sentido de identidade pessoal e comunitária, e que contraponto distingue a cidade de que fala - a virtual, da cidade concreta que o testemunha - a da vida real.
Para tanto, realçando o papel do espaço como configurador de uma realidade, essa iniciativa procura observar essa possibilidade de comunicação. Comunicação captada através de paisagens representativas da cidade. Recorte visual delineado pelo produtor de cultura que promovendo o seu trabalho, promove a terra em que mora. João Pessoa para esse constitui o "seu" lugar de "ganha-pão" e o palco preferido de seus espetáculos.
Constitui assim uma tentativa de interpretação do espaço urbano de João Pessoa através da leitura de Para'iwa e o poder de comunicação das suas primeiras paisagens enquanto expressão cultural de sua sociedade, caracterizadas em símbolos, instrumentos por excelência de "integração social" (Bordieu,1989:10).
A imagem da cidade possibilita inferir sobre essa trajetória - conjecturas que se afirmam categoricamente no olhar instantâneo e passante que absorve verdades instáveis. O recorte visual constitui essa perspectiva - de inferir sobre realidades traduzidas no seu aspecto, embora emaranhadas por relações de comunicação que de modo inseparável configuram relações de poder (Bourdieu, 1989:11).
Na experiência em questão é fundamental resgatar o sentido de identidade com "seus" lugares que se articula no discurso do produtor. Harvey, analisando a condição pós-moderna (1993), realça repetidas vezes o valor do lugar enquanto promotor de imagens constituídas [fim da página 258] de significados, relacionando ainda "a construção dos lugares com a construção de algum sentido delimitado e limitador de identidade no turbilhão de uma colagem de espacialidades implosivas"(: 270).
A cidade constituída pelos lugares que traduzem para o observador reminiscências significativas, cujas expressões remetem a um passado re-experienciado. Identidade que se configura na concepção de que "ser significa comunicar (...) ser significa ser para o outro e, através do outro, para si próprio. O homem não tem um território soberano, mas está sempre e inteiramente nos seus limites e, olhando para dentro de si, olha nos olhos do outro e com os olhos do outro" (Bachtin, citado por Canevacci,1993:26), onde esse outro é a própria cidade como continuação de si mesmo, enquanto receptáculo de acontecimentos acumulados no tempo, e proporcionador de identidade.
Nesse sentido, é fundamental destacar dois pontos essenciais a essa análise - a cidade de que fala o homem (o produtor) e os elementos em que nela se reconhece, destacando os conceitos de cidade e identidade que aqui se estruturam.
Cidade na sua acepção mais vulgar, constituindo o lugar onde se concentram todos os meios de vida, trabalho e lazer e o agrupamento populacional caracterizadores da urbanidade. O reino da complexidade configura o lugar da cidade em que fato e imaginação se fundem, embora vitimado por um sistema crescentemente racionalizado e automatizado de produção, fundamentalmente de signos e imagens através do qual se conferem as marcas de distinção social em longa medida pelas posses e pela aparência e mais fortemente por essas últimas (Raban, citado por Harvey, 1993:15)8.
Decorrente do conflito simbólico posto pela diferença de classes é que a cidade também se coloca como "um lugar em que as pessoas têm relativa liberdade para agir como queriam e para se tornar o que queriam". A identidade pessoal tendo se tornado fluida, interminavelmente "ao exercício da vontade e da imaginação" (Harvey citando Raban, 1993:17).
Embora Raban não achasse que tudo corria bem na vida urbana, afirmava: a cidade "para o bem e para o mal, o convida a refazê-la, a consolidá-la numa forma em que possa viver nela. Você também. Decida quem você é, a cidade mais uma vez vai assumir uma forma fixa ao seu redor. Decida o que ela é, e a sua própria identidade será revelada, como um mapa fixado por triangulação. As cidades, ao contrário, dos povoados e pequenos municípios, são plásticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos moldam por meio da resistência que oferecem quando tentamos impor-lhes nossa própria forma pessoal. Nesse sentido, parece-me que viver numa cidade é uma arte, e precisamos do vocabulário da arte, do estilo, para descrever a relação peculiar entre o homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana. A cidade tal como a imaginação, a [fim da página 259] suave cidade da ilusão, do mito, da aspiração, do pesadelo, é tão real, e talvez mais real, quanto a cidade dura que podemos localizar nos mapas e estatísticas, nas monografias de sociologia urbana, da demografia e da arquitetura" (Citado por Harvey:17).
Por isso compreendia a cidade semelhante "a um teatro, uma série de palcos onde os indivíduos podiam operar sua própria magia distintiva enquanto representavam uma multiplicidade de papéis"(:15). Entendia que os "sinais, estilos, sistemas de comunicação rápida altamente convencionalizados são o sangue vital da cidade grande (...) A cidade, nossa grande forma moderna, é suave, acessível à estonteante e libidinosa variedade de vidas, de sonhos, de interpretações. Mas as próprias qualidades plásticas que fazem da grande cidade o liberador da identidade humana também a tornam especialmente vulnerável à psicose e ao pesadelo totalitário" (Raban, citado por Harvey:18).
Perdida em uma trajetória de 400 anos de vida, a cidade de João Pessoa fala a cada ano que passa da ausência de investimentos que viabilizem a manutenção de sua memória. Testemunha um presente em conflito com o passado, seduzido por modismos fugazes copiados de outras paisagens. Um presente que cede seu espaço a paisagens estéreis e deprecia paisagens densas de história e identidade. Que garante paulatinamente a uniformização e se desfaz da peculiaridade - onde o indistinto vai se assentando na negação absoluta da história, descortinando uma cultura urbanística que deseja transformar seus lugares "com uma velocidade maior do que o suceder das gerações (...) será mais fácil jogar o edifício fora, quando envelhece, como se fosse apenas um par de calças jeans gasto, e 'vestir' um outro edifício, novo em folha"(Canevacci, 1993: 73).
Empenhado em combater esse pensamento que cada vez mais se alastra nas cidades brasileiras, Para'iwa chama a atenção para lugares de João Pessoa que estão no cotidiano do percurso desatento de seus cidadãos. Fala do Centro Histórico que por sua vez ainda é o principal núcleo comercial da cidade e mostra como através dele, ignorando a riqueza patrimonial de seus edifícios centenários, percorre a maioria de seus habitantes.
Embora sob encomenda, Para'iwa parece ter caído como luva nas mãos de seu idealizadores. Aos que o assistem, a deferência ao passado é evidente. O amor à cidade transmite a idéia de zelo e respeito a história contada pelo legado arquitetônico protagonista de seu enredo. Da conquista do desconhecido se descortina sua primeira imagem, imagem do mar, mar das grandes navegações, presença tão marcante na cidade: a reverência ao marco geográfico, extremo-oriental das Américas, é o seu ponto de partida.
Já não apenas a cidade a contar a história. A arte oferecendo o braço ao recurso tecnológico conquista também esse ofício. O vídeo detém-se no seu objetivo. Conta dos [fim da página 260] primeiros lugares e enfatiza a sua reserva de verde natural. O apelo natural de seus verdes ares não se compraz apenas no discurso do idealizador no valor de uma classificação estrangeira que a intitula segunda cidade mais verde do mundo.
Através de valores que lhe são muito peculiares mergulha na imensidão da história, no desenvolvimento parcimonioso e no descaso a que estão sendo relegados hoje vários de seus principais monumentos:
O rico patrimônio colonial, testemunho do cruzamento das influências européias -holandesa, francesa, espanhola e portuguesa, expresso em pedra (como fala o vídeo), não é suficiente para chamar a atenção do Estado que abriga a história. Para'iwa deixa ver que é o capital espanhol que num passo a frente revigora a nossa história que se funde com a sua própria. Resgate que se faz a partir de uma perspectiva de revitalização dos ambientes degradados que clamam por uma função a mais que somente falar do passado - predispondo-se ao presente, põem-se em conflito com o pensamento de planejadores 'modernos' para os quais a revitalização de edifícios históricos é uma marcha-a-ré na condução do progresso. Noção de progresso expressa no caos das grandes cidades adornadas pelas vivas cores das torres de concreto e o traslúcido dos vidros e espelhos a esconder
A posição velho-novo desenhada no vídeo, entretanto, arrisca-se na incerteza de uma interpretação: A cidade deu as costas ao rio que lhe serviu de nascedouro. Encantou-se com o canto das ondas.
Nele o rio é o berço, o mar a negação da origem. Entretanto, lá estava há 400 anos o mar da conquista, imagem primeira do vídeo para lembrar esse fato nele mesmo não ignorado. A ênfase a essa oposição configura o prato cheio de que precisam os "progressistas". Essa bipolaridade entrementes impõe-se inoportuna. O resgate do passado constitui a referência ativa à história do hoje e à construção do futuro. Um futuro que expande-se para além dos limites do passado, cuja prova concreta de seus equívocos incita a reflexão do porvir, para além de uma estratégia puramente saudosista.
João Pessoa do rio ao mar. João Pessoa do Varadouro, João Pessoa de praias belíssimas, muitas inexploradas e próprias a servir a seus habitantes.
O natural crescimento demográfico da cidade requer a conquista de espaços ainda inexplorados pelo homem. A cara do novo se marcará em pedra tanto quanto o passado, caracterizada por expressões próprias do seu tempo. Embora desde 1585 o mar já compusesse a realidade dos limites de João Pessoa e já se pusesse a falar de um futuro longínquo.
Para'iwa e idealizador falam de uma mesma João Pessoa. Até porque foi mesmo a realização do vídeo que lhe serviu de exercício de observação da cidade antes só parcialmente percebida.
A cidade tão conhecida reapresenta-se ao olhar agora atento de um presente preocupado com o [fim da página 261] futuro. A cidade de João Pessoa antes e depois do Para'iwa guarda apenas essa dessemelhança. A atenção desperta pela feitura do vídeo evoca ao produtor a importância do testemunho que é o espaço para a sua própria história.
Esse Centro Histórico passa a ser a célula base para onde converge o pensamento cuidadoso com os seus desdobramentos. É a partir dele que o produtor, e porque não dizer morador, apresenta a cidade ao estrangeiro dentro do viés comandado pela cronologia de seus 400 anos. É a história contada nos recantos da cidade, nos detalhes e adornos de edifícios. História e propriedades naturais contribuem para o regozijo e o prazer pela cidade do pessoense expresso no produtor de cultura.
Contemplada também por representantes que professam uma cidade para o progresso, nem sempre balizado com a garantia de vida de qualidade para seus habitantes, João Pessoa tem conseguido manter-se num crescimento ainda moderado, embora o perfil urbano recaracterize-se radicalmente em relação ao da cidade velha. O edifício em altura se consolida à medida do seu desenvolvimento empunhado antes pelo lucro imobiliário desmedido que pela democratização do acesso a terra, embora seja esse argumento retoricamente utilizado por empreendedores locais que barganham, até agora sem sucesso, a liberação do gabarito das construções na primeira via das praias, defendendo a necessidade de a cidade se abrir ao turismo de massa. Embora se saiba que o turista anda em busca do diferente, do exótico, de paisagens incomuns, e é o que confirma o crescente fluxo ano a ano em João Pessoa, com sua reserva de verde natural e sem arranhas-céus. Espigões como a imprensa local se refere que não está no desejo de cidade do produtor.
Em Para'iwa o ideal é o passado que fundou as razões sentimentais da cidade e do seu viver no presente. Nele a retomada do passado situa moralmente o presente, como descomprometimento com as raízes históricas de fundação e construção da cidade (Koury,1995:03).
Embora fragmentando a realidade da cidade através da perspectiva das raízes fundadoras, parece reconstruir "o real a partir dos detalhes focados, tomando-se a própria realidade como passado a ser evocado pelas asas da saudade" (:03, citando Barthes). Como espaço nostálgico, a realidade que a Para'iwa transmite é de um passado em conflito permanente com o presente. Os problemas se existiram, se colocam exclusivamente no contraponto velho-novo. Surgem em sucedâneo para reafirmar o destrato do presente contornáveis apenas pelo esforço público e iniciativas privadas. No vídeo, o progresso reclamado parece ser "sentido e buscado como extensão da tradição" (:08).
Outra questão que se acentua em Para'iwa é a vida em público e a natural limitação da ação individual em relação ao uso coletivo. A cidade do produtor considera valores que não são aqueles que parecem predominar. Não exclusivamente por posições antagônicas, [fim da página 262] embora estas caracterizem claramente a oposição com o pensamento do poder público, mas antes por uma certa desconsideração coletiva da importância do viver a cidade e do resgate da sua memória.
A vida na cidade já se depara há mais de um século com a crítica à vida na grande cidade. A impessoalidade, uma das propriedades mais marcantes do advento da cidade moderna, constitui um claro confronto com a 'lógica emocional da comunidade' (Arantes,s.d.:2). A cidade moderna é a imagem da desindentificação e da exposição do viver coletivo. Talvez assim se explique a razão da desatenção do público.
A transição do antigo para o moderno também coloca essa oposição território privado e território público com o avanço da insegurança e do viver coletivo. Essa desatenção coletiva, "desresponsabilização" generalizada face ao público se molda justamente no foco da confirmação que se alastra pelo corpo social à medida que o público se transforma na reunião de proprietários. Face a essa polarização, a cada indivíduo cabe o seu "pedaço", submerge assim o público ao cuidado de ninguém, quando muito ao poder público e cada vez mais articulador de uma política urbana intolerante para com a herança do passado.
Para'iwa, ao realçar a iniciativa de autoridades brasileiras isoladas e de governos estrangeiros, confirma a quem está relegada a preservação da memória da cidade: ações fragmentariamente desenvolvidas através de esforços individuais, impulsionados por valores representativos de faixas de grupos sociais, o que, na maioria das vezes, não configura ação de rebatimento de um anseio público.
Denominando "desenraizamento", Arendt explica a ausência de humanidade onde perde-se cada vez mais o espaço cívico, e sua "concentração implica em um certo número de imagens espaciais sugestivas de correspondência entre reflexão sobre a condição humana moderna e a organização social do espaço" (citada por Arantes:05).
Mesmo assim surge como uma das estratégias propostas como alternativa ao vazio e ao caos das nossas cidades: a de reordenação urbana a partir da revitalização de pontos estratégicos do sítio histórico - lugares de forte significado coletivo(:09). A intenção de Para'iwa se reveste aqui de uma função para além de um traço de identidade.
É nesse viés que Giedion, já em 1944, como um dos dissidentes do movimento moderno proclamava a necessidade de uma nova monumentalidade: "A multidão quer que se exprima a sua necessidade de luxo, de alegria, de exaltação interior", embora ele próprio reconhecesse que o sentido de monumentalidade teria sido perdido juntamente com o de uma "vida comunitária ativa" (citado por Arantes (:05).
A antítese entre o mundo moderno e o antigo configura-se sobre essa perda, e é o que também para Canevacci, refletindo o senso do monumental, explica uma nova sensibilidade para com o gosto [fim da página 263] leve, com o prático, com o efêmero, com o veloz: "sentimos que não somos mais homens de catedrais, palácios, tribunas, mas sim de grandes hotéis, estações ferroviárias, imensas estradas, portos colossais, mercados cobertos, galerias luminosas, de perspectivas retas, de demolições necessárias (utilizando uma compreensão do arquiteto Sant Elia ,1993: 59).
Por isso, a necessidade de uma reformulação concomitante das cidades e da vida coletiva, e cuja responsabilidade fundamental está sobre as mãos do Estado. "É quando Giedion revela a sua preocupação em a economia pública destinar a criação de lugares de agrupamento em que o homem retomaria a consciência das necessidades enterradas em sua alma e que, em nossos dias, estão atrofiadas" (Arantes,s.d.:09).
As estratégias do poder público quando existentes, não passam de fato de "estratégias asseguradoras" diante da ameaça do desmoronamento das crenças nos grandes valores tradicionais. A evocação do passado sob a ótica do Estado desencadeia uma "lógica que mais funciona como uma anti-memória coletiva: a preservação e restauração de muitos dos monumentos passados, em especial a limpeza dos velhos centros urbanos com seus edifícios públicos, na maior parte das vezes apenas esconde as marcas do tempo e, reprimindo suas metamorfoses, acarreta uma redução ao idêntico, uma espécie de ordem branca da memória" (:10). Entretanto, "se uma gestão da cidade que contemple um poder regenerativo da cultura pode levar a um sistema de signos petrificados, a uma simulação teatral da vida urbana inexistente, pode também (...) gerar transformações culturais - uma recuperação do passado tendo em vista uma verdadeira ação perspectiva cultural polivalente" (:10).
Por isso, para Arantes, é preciso passar a um outro lado, "evitar a preservação que supervaloriza a monumentalidade, substituindo-a por uma que estabeleça contradições ativas entre conservação e memória, que articule o patrimônio passado ao futuro, que volte ao simbólico como antecena de uma história social, que se atenha tanto ao que há de residual na tradição cultural de um povo quanto à polissemia dos objetos culturais. Ou seja, um processo de 'anamnese' coletiva que revele os traços culturais autênticos, ou mesmo uma identidade cultural passada, mas numa interpretação ativa por parte do próprio grupo social, e que seja portanto prospectiva e transcenda o sentido identitário que congela as diferenças" (:11).
O choque das ideologias do novo e do velho dinamiza a cidade. "A reciclagem de edifícios antigos, a preservação de sítios históricos e a recuperação, por meio de novas construções, de casas abandonadas, constituem algo mais que (...) intervenções culturais. São, no fundo, um reconhecimento dos valores éticos e estéticos de entornos de outros tempos e uma demonstração de indivisibilidade entre pessoa e lugar, de vida e memórias urbanas" (Glüsberg, 1995:90). [fim da página 264]
O movimento cultural identificado com valores a preservar, reativa simbolicamente a experiência extraordinária do estado nascente (Alberoni, 1991), justamente para dar um sentido à vida dos indivíduos e da coletividade.
A ausência da mensagem, teorizada na era da acumulação flexível (Harvey, 1993), ainda não encontra abrigo no cotidiano de João Pessoa. Embora de sua parte empreendedores imobiliários imprimam a conquista de espaços cada vez mais amplos, via sedução pública, através da mídia local. Um conceito vertical de viver é um dos seus slogans para uma cidade que teima em não perder a sua identidade, legitimando sua distinção da cultura do progresso de exclusão social, "num ambiente que promete poder, crescimento, transformação para o mundo, e, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e o que somos" (Haryvey, 1993:21).
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1) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.