Há certo tempo, ouve-se falar em "crise das ciências sociais", com distintos significados para a expressão. Neste trabalho queremos nos referir à crise pela qual passam idéias, valores e imagens que fundamentam o que chamarei de "modo dominante de conceber e praticar sociologia". Basicamente, aplico a expressão às concepções de realidade, homem e conhecimento, que se encontram no interior da prática e do discurso dos sociólogos. Obviamente, não pretendo abranger nas referências ao que aqui denomino "sociologia oficial", "cidadela sociológica", etc., a todos os sociólogos. Tal generalização seria não somente absurda em termos da mais elementar lógica do conhecimento científico, como também - o que é mais importante enfatizar aqui - profundamente injusta. Tais expressões devem ser entendidas como "tipos ideais", no sentido mais originalmente weberiano. Isto é: construções conceituais úteis para conhecer a realidade empírica, sempre outra que as nossas tentativas de apreendê-la significativamente. Tais caricaturas, como terão os leitores ocasião de descobrir na leitura deste trabalho, não pretendem conter nem copiar , e muito menos exaurir a realidade a que se referem.
As concepções e valores que alicerçam a nossa prática profissional, poucas vezes são postas em questão. Os praticantes da disciplina normalmente utilizam o aparelho conceitual adquirido na socialização acadêmica, com escassa ou nula consciência dos pressupostos valorativos que o sustentam. [fim da página 179]
Adotamos deliberadamente um estilo bastante afastado do que se espera normalmente de um texto acadêmico, se por tal se entende um discurso padronizado, deliberadamente obscuro para aparentar profundidade, expurgado de "subjetividade" - e associado, por muitos, ao discurso científico.
É disto que tratamos: do retorno do sujeito. Boa parte dos textos dos cientistas sociais contemporâneos esconde de tal forma a pessoa, o homem vivo e real, que fazem pensar ser a sociedade uma entidade não humana. E a sociologia uma instância de saber acima e fora do condicionamento social do conhecimento e dos valores que fundamentam a nossa disciplina. Devemos caminhar para um aparelho conceitual que permita encontrar o sujeito inteiro - o homem nas suas múltiplas dimensões - na trama das relações sociais, tanto quanto na prática científica voltada para a compreensão dessas mesmas relações.
Devemos caminhar também para um aparelho conceitual ao mesmo tempo suficientemente fino como para captar as partes mais sutis da existência social (os símbolos, as representações, os motivos da ação), e grosso o bastante para surpreender o lado mais objetivo da mesma (a força da rotina, a determinação do econômico, a coerção do político, a constrição do coletivo).
Não esconder o sujeito da ação social nem o sujeito daquele especial tipo de ação social que é a atividade científica do sociólogo. E não se trata de caminhar para uma sociologia de base psicológica, nem tampouco de um subjetivismo que se sobreponha à realidade exterior ao indivíduo. Trata-se, isso sim, de uma atitude diante do afazer científico, de envolvimento pessoal, de paixão, de vocação vital, muito distante da frieza e distanciamento pessoais que alguns praticam em nome de uma "postura profissional" pretensamente neutra. A omissão é cumplicidade, quando se trata de questões humanas vitais, hoje tão fora de moda do discurso dito acadêmico. Por isso, a explicitação dos nossos próprios valores pessoais não pode ser confundida com qualquer afã proselitista camuflado de "verdade científica universal", ou seu menos estentóreo parente próximo, a indiferença ética que é generalizada de forma alarmante no nosso ambiente profissional. É como se um torpor tivesse ocupado o lugar deixado pelas utopias que incendiaram tantos corações latinoamericanos há poucas décadas atrás. Arriar bandeiras; trocar lealdades por prebendas, ideais por cargos de poder, se tornaram tão freqüentes entre nós, que parecemos a anos-luz de distância dos tempos em que sonhávamos com uma América Latina autônoma e justa, com o [fim da página 180] homem novo, a revolução na consciência, a revolução social, enfim...uma vida mais feliz, mais plena, mais digna de ser vivida.
Não podemos aceitar que, sob o manto da "cientificidade", "modernidade", "neoliberalismo", "globalização", e demais engenhocas lingüísticas muito do gosto da intelectualidade corrupta, queira continuar se perpetrando a difusão de um retrato de Max Weber que o põe do lado da resignação, da claudicação frente à irracionalidade do capitalismo, o sistema que quis trocar o homem pela coisa, deus pelo dinheiro, consciência por conveniência. Não deixa de ser sintomático que o primeiro escalão da devastação da educação, a ciência, a economia e a cultura brasileira, seja alguém que soube retirar boas vantagens de uma aura de "esquerdista", "marxista", "democrata," "antiautoritário", e outros que tais, suficientemente bem explorados comercialmente pela indústria eleitoral.
Nos dias de hoje, o sociólogo maior do País lidera um regime antisocial e entreguista, canalha e suicida. A história tem um lugar para os traidores: a memória, Sr. Presidente.
E neste cambalacho ideológico, não está sozinho. Conta com aliados professores, economistas, sociólogos e antropólogos que, um dia, terão que prestar contas dos malabarismos que os puseram do lado do Sr. Maciel, do Sr. Magalhães, dos Srs. desemprego, deseducação, reescravização dos brasileiros.
O pior é o cinismo com que se quer, desde a intelectualidade corrupta, justificar o troca-troca de favores, em nome de uma concepção moderna e científica do mundo, como se "a ciência", "a sociologia", pudesse gerar - ademais de representações do mundo e da sociedade - ideais, normas ou valores que seriam bons para todo homem., para toda sociedade em todo tempo.
A sociologia já passou por essa tentação normativista. Chegou a enunciar um código de valores universais sob a forma de Catecismo. Mas, a antítese de uma sociologia normativa não é, como vamos mostrar, uma "sociologia para qualquer fim", neutra, domesticada pelos poderes (político, econômico, corporativo), eticamente indiferente. É uma sociologia valorativa, como não poderia deixar de sê-lo qualquer tentativa de interpretação científica da realidade social, como bem ensinou Weber .
Queremos resgatar para a sociologia um lugar tão diferente daquele que ela ganhou no esquema comteano das ciências, como [fim da página 181] distante da rigidez a-histórica de um certo marxismo, ou das pretensões universais de um certo racionalismo cientificista. Sobretudo, um lugar diferente daquele que desfruta no contexto do "modo sociológico dominante de ver o mundo".
O conhecimento científico social é uma das formas de representar significativamente a sociedade. Em seu interior coexistem perspectivas valorativas diversas, alicerçando teorias mutuamente incomensuráveis. Esta pluralidade guarda correspondência com a realidade de que pretende dar conta. Um intelectualismo cientificista e teoricista que ganhou ares de "voz oficial" na nossa disciplina, nos acostumou, contudo, à unilateralidade de uma certa "racionalidade", apresentada como sinônimo do que seja "científico" e "verdadeiro". A sociologia dominante quis esconder a subjetividade do investigador, para tornar seu conhecimento mais "objetivo". E quis também eliminar a subjetividade dos homens em sociedade, mediante a utilização de vários artifícios. O lado "irracional" da conduta humana (os afetos, as crenças, os impulsos, a imaginação, a intuição) foi eliminado como objeto legítimo de investigação sociológica, supostamente por pertencer ao domínio de outra ciência, a psicologia. Ou, também, porque se postulara sua irrelevância explicativa frente às "leis", "estruturas", ou aspectos mais "racionalizáveis" do social.
Nosso interesse inicial, a motivação principal deste trabalho, foi, então, a desumanização implícita na forma habitual de se praticar sociologia, entendendo por tal o desenvolvimento unilateral do conhecimento numa perspectiva intelectualista-racionalista-cientificista. O leitor conceda a sua indulgência para essa indigesta sucessão de "ismos" que --esperamos-- irá cedendo lugar ao exame de questões precisas concernentes à nossa pretensão de rascunhar os traços de uma sociologia ... mais pluralista, mais aberta a uma renovação do pensar e do agir indispensáveis nestes intransparentes tempos modernos. O "Zé Ninguém" de Wilhelm Reich, o "blasé" de Georg Simmel, o "alienado" de Karl Marx, os "últimos homens" de Friedrich Nietzsche e Max Weber, evidenciam os traços de um fastio espiritual, um esvaziamento de sentido da vida, um tédio que se mostram como a nota cotidiana da sociabilidade atual. Um tipo humano muito do gosto do "cidadão mínimo" neoliberal: retraído da vida pública, cético, resignado a uma subsistência quase animal.
Queremos recuperar o papel ativo do sujeito - você, eu, os seres humanos, os agentes sociais - no conhecimento sociológico, entendido como uma forma particular de ação social. [fim da página 182]
Há, em alguns trabalhos de Marx, Weber e Durkheim, trechos pouco lidos - aos quais a estreiteza perceptiva de um certo establishment acadêmico não deu valor - em que os fundadores da nossa disciplina têm sugestivos insights acerca do papel da imaginação, da intuição, da paixão, como fonte de conhecimento do homem e da sociedade. São trechos, fragmentos ou parte de textos, que promovem uma revisão em profundidade de alguns dos pressupostos da sociologia. Durkheim, reconhecendo a origem religiosa do conhecimento; Marx, admitindo a independência de certas obras de arte frente às determinações econômicas; Weber, combatendo a burocratização do saber pelos "especialistas sem alma".
O distanciamento da sociologia de matrizes valorativas (filosofia, religião, valores que dêem sentido à vida, em geral), em nome de uma certa concepção de "objetividade", levou ao expurgo dos aspectos espirituais, afetivos, intuitivos da realidade humana, bem como do conhecimento científico sobre a mesma. O conhecimento que se esperava da nascente ciência da sociedade, certamente guarda correspondência com as características do processo de secularização da vida e do conhecimento em cujo bojo foi gestada. Contudo, a crise da civilização assentada sobre esses valores é também a crise da ciência que com ela nasceu. Atualmente, a sociologia retorna a suas raízes rediscutindo fundamentos, valores, idéias e imagens de mundo sobre os quais se constituiu - e aos quais deu força e legitimidade. A força com que se processa esta revolução perceptiva não poderia estar dissociada da intensidade com que, pessoal e socialmente, é vivida a "crise dos paradigmas" da nossa disciplina.
Cabe esperar que a sociologia seja capaz de devolver ao homem sua imagem inteira, um reflexo multidimensional do seu ser completo? Em outras palavras: pode a sociologia gerar um conhecimento "holográfico", não fragmentador? Recorrentemente, desde o seu nascimento, a sociologia buscou se afirmar como forma científica de conhecer a realidade social, adotando modelos explicativos e linguagem inspirados nas ciências biológica, física, matemática, cujo status científico costumava ser reconhecido sem questionamento.
O ideal de um conhecimento (científico) capaz de dar conta do mundo tal como ele é, independentemente dos pontos de vista dos sujeitos ocasionalmente voltados para as tentativas de o representar, [fim da página 183] alentou posturas objetivistas sustentadas no positivismo, funcionalismo e marxismo.
No que diz respeito a Marx, entretanto, a sua atualidade e fecundidade para a análise sociológica deriva mais do seu pressuposto antropológico do que da sua epistemologia. Estamos nos referindo ao conceito de alienação, insuficientemente explorado pelo pensamento marxista posterior, freqüentemente autoaprisionado em um esquema perceptivo unilateral em favor de perspectivas macrossociais que destituíram o sujeito individual, a pessoa concreta, o acontecimento singular, de qualquer papel ativo numa dinâmica sócio-histórica na qual é apresentado como mera marionete.
Escrevia Marx em um de seus Manuscritos de 1844, que o homem na sociedade capitalista alienara todos seus sentidos, todas suas formas de se apropriar do mundo, ao sentido de ter, à apropriação privada.
"Cada uma de suas relações humanas com o mundo - ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, agir, amar -, em suma, todos os órgãos da sua individualidade são (...) no seu comportamento para com o objeto, a apropriação deste" (Marx, 1983: 144-9) .
"A propriedade privada tornou-nos tão néscios e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc., em síntese, utilizado de alguma forma. (...) Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos eles, pelo sentido de ter." (Marx, 1983: 120).
Posteriormente, autores tanto de dentro como de fora do marxismo (Erich Fromm, Wilhelm Reich, Agnes Heller, Robert Nisbet, Martin Nikolaus, Horacio González) recuperaram da ortodoxia este Marx cuja sensibilidade não somente não fora amputada pela sua pretensão de cientificidade, mas, ao contrário, se tornara uma ferramenta indispensável na sua análise da sociedade capitalista. Em nome de que absurdo conceito de "objetividade" e "cientificidade", poderia alguém querer expurgar do texto marxiano esses brilhantes insights salpicados de citações de Shakespeare e Goethe, sem os quais a análise da alienação se torna vazia?
Nestes escritos chamados de juventude, as metáforas, as citações de peças de teatro ou poemas, são evocadas em auxílio do pensamento [fim da página 184] para aprofundá-lo, ou, ainda mais, para dizer aquilo que só pode ser expressado pela arte e a literatura.
Que semelhanças podemos descobrir entre este homúnculo com seus sentidos alienados pelo capital, e aquela outra figura humana, também alienada, o aleijado às avessas que Nietzsche nos mostra em Assim falava Zarathustra? Este é um homem que é apenas um grande olho, ou uma grande orelha, ou algum outro "órgão em demasia, e que está atrofiado em todas suas demais capacidades". Não poderíamos trazer ambos retratos, o científico e o literário, o de Marx e o de Nietzsche, para nossa galeria de paradigmas? Não seriam ambos representativos de desenvolvimentos humanos unilaterais, em que o ser total está atrofiado, com exceção da capacidade, órgão, ou sentido hipertrofiado? E não poderíamos acrescentar a estes dois retratos um terceiro, o do sociólogo diminuído nas suas capacidades perceptivas e de ação, confinado num xadrez teoricista e intelectualista, alienado e alienante?
Em Auguste Comte encontramos, com traços que podem parecer caricaturais, a prefiguração do cientificismo posterior que pretende ter o monopólio da linguagem e da explicação válida acerca do mundo humano-social. Ao mesmo tempo, o fundador oficial da nossa disciplina introduz uma perigosa analogia entre o racional e o real, sobre a qual queremos nos deter alguns instantes.
A trajetória do conhecimento - como da civilização humana - passara, como todos sabem, dos estágios teológico e metafísico, para o científico ou positivo, no esquema comteano. Sua ciência positiva quer subordinar a imaginação à observação, aos dados, que são apresentados como portadores de uma racionalidade implícita. A busca de causas, um ressaibo do passado teológico-feudal a superar, devia deixar passagem para a explicação, concebida como a remissão do singular às leis naturais que regem a marcha da civilização. A sociologia comteana não julga (aprovando ou negando): constata o dado, remetendo-o para a ordem legal correspondente, que é natural, racional, normal.
Essa transposição de um conceito de racionalidade para a realidade é muito perigosa, uma vez que desqualifica de antemão como "irracional" qualquer critica da ordem existente, bem como dos enunciados científicos que exprimiriam essa ordem existente. A razão --identificada com o real-- se entroniza com a autoridade máxima, a autoridade da ciência. Esta, por sua vez, não faz mais do que expressar o dado, na sua pura e simples objetividade, sem ingerência valorativa. [fim da página 185]
Se em Comte, a razão científica se quer única via adequada para revelar sem distorções, em Durkheim - que já foi chamado de um "comteano a desgosto"-, essa pretensão aparece ainda de maneira mais enfática e precisa, sem as roupagens ideológicas do fundador. O objeto da sociologia - diz Durkheim -, o "fato social", pertence a uma ordem de fenômenos irredutíveis à realidade física ou psico-individual. São fenômenos sui generis, a demandarem uma ciência própria para seu estudo. O social, que até então fora objeto da reflexão filosófica, ideológica, psicológica, ou do senso comum, deveria entrar definitivamente para o domínio da ciência. Para isso, a sociologia deveria caminhar para uma completa eliminação das noções sobre o social, que não tivessem sido elaboradas de acordo com os procedimentos científicos. Trata-se da ruptura durkheimiana com as prenoções (noções elaboradas na prática social e para ela) e com o senso comum, que se soma à sua ruptura com as outras formas não científicas de conhecimento do social, já mencionadas.
Ao explicitar como deveria proceder a nova ciência, Durkheim traça com determinação aquilo que marcaria a ferro e fogo boa parte da sociologia posterior, o social deve ser estudado: a) como algo externo aos indivíduos (tanto os observados como o observador: dicotomia sujeito/objeto); e b) deve ser abordado pelo lado em que se apresentar mais afastado de suas manifestações particulares (o geral, o genérico, o legal, o repetido, o regular, privilegiados em detrimento do particular e do singular).
A sociologia durkheimiana quer apoiar sua objetividade em regras metodológicas precisas, capazes de manterem longe do afazer científico os sentimentos, os valores, as visões de mundo. Ela procura "estender à conduta humana o racionalismo científico" que, ao reduzi-la a relações de causa e efeito, "permita formular regras de ação para o porvir". (Dürkheim, 1937: p.132)
Nesta rápida passada pelos clássicos, chegamos a Max Weber. Encontramos, em sua obra, uma peculiar forma de relacionar o conceito e o empírico. A especial arquitetura do conceito weberiano será objeto de exame ao longo deste trabalho. Queremos agora apenas chamar a atenção para os traços de artista que é possível perceber neste cientista que desejava escrever como um músico, orquestrando a harmonia de um texto que seria, assim, polifônico.
Seus vastos estudos sobre as grandes religiões da humanidade e a magia, permitem apreciar um extremado rigor na definição e no uso [fim da página 186] dos conceitos, sem sacrifício da "vivacidade" da realidade social a que se referem. O conceito weberiano consegue não matar seu objeto, embora não pretenda contê-lo nem copiá-lo. Chama-nos a atenção a arte com que este cientista (um filósofo, nas palavras de Karl Jaspers), reproduz conceitualmente a realidade sócio-cultural mediante tipos ideais, cuja verossimilhança com o empírico chega a ser tão realística e impactante como o próprio fenômeno histórico-cultural a que se referem.
Quem não "reconhece" por exemplo - embora para Weber o tipo ideal não possa ser achado empiricamente -, no tipo ideal de autoridade carismática, a figura de um Getúlio Vargas ou de um Perón? Quem não vê, dançando diante dos seus olhos, o mago manipulando oferendas para atrair o favor das forças sobrenaturais? E não é um literato quem escreve, mas um cientista que soube trabalhar racionalmente sem esmagar a riqueza e a multidimensionalidade do real.
A razão weberiana penetrou em esferas e dimensões da vida social aparentemente irredutíveis e impermeáveis ao conhecimento científico (ética, magia, religião), mostrando a necessidade de sutilizar, aperfeiçoar, o instrumental conceitual ou, se se quer, a malha perceptiva do cientista, para acompanhar as nuanças da realidade sem reduzi-la.
A sociologia weberiana não abdica do objeto nem, tampouco, do sujeito. Utiliza a razão, sem desconhecer o chão irracional em que se assenta (imaginação, inspiração, paixão, interesses). Conhece a difusa fronteira que a separa da fé, mas não pretende substituí-la.
Sabe que não há conhecimento dissociado dos nossos valores, interesses, vontades e, no entanto, não abandona o ideal de objetividade. Sem acreditar na possibilidade de um saber sócio-cultural "isento de valor", querendo com isto significar "neutro" quanto a valorações, tampouco acreditava numa sociologia normativa, capaz de ditar rumos éticos aos homens. Sua peculiar postura ética levou autores como Adorno e Horkheimer, a atribuírem a Max Weber a defesa de uma sociologia obediente ao status quo, para qualquer fim, resignada, frente a uma sociologia crítica de base marxista. Estranhamente, é desde as posições de poder nas corporações acadêmicas, que se defende e difunde esse Weber convenientemente domesticado e resignado.
Por não ter proposto um rígido esquema de interpretação monocausal reducionista, tem se dito que Weber cai num relativismo que renuncia à explicação da realidade. [fim da página 187]
Frente ao que gostaria de continuar chamando de crise do "cientificismo teoricista-racionalista-objetivista" impregnando o para-digma de boa parte da atual sociologia, a postura weberiana oferece instigantes possibilidades. Mormente, se pensarmos na fragilidade teórica subjacente a muito do que se faz em nome da contestação à sociologia inspirada nos clássicos.
Weber pratica um pluralismo cognoscitivo como alternativa ao monopólio da ciência enquanto único estilo "verdadeiro", ou sequer "válido" de conhecer. Enfatiza a distância do conceito com relação ao empírico, o que evita a tentação de confundir o pensamento - como a teoria, em particular - com a realidade. Afirma claramente que o nosso saber sobre o real é sempre parcial e provisório, relativo, o que não significa desistir dos nossos esforços por agir segundo as nossas convicções, nem nos resignarmos ao status quo.
Em momentos, como o atual, em que, retomando uma preocupação clássica muitos sociólogos questionam o sentido de fazer sociologia, convém retornar a Weber para reencontrar as referências. Mas cuidado: há um importado fajuto: o Weber domesticado pela academia e os interesses norte-americanos. O Weber de Fernando Henrique Cardoso, o Weber de ... tanto mediocrata sem bandeira, à venda para quem pagar melhor.
DURKHEIM, Émile (1937). As regras do método sociológico. Rio de Janeiro: Cia. Ed. Brasileira.
JARSPERS, Karl (1953). Balance y perspectiva (Discursos y ensayos). Madrid: Revista de Occidente.
MARX, Karl (1983). "Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844", in: Erich Fromm, Conceito marxista do homem.. Riode Janeiro,:Zahar, p. 120.
NIETZSCHE, Friedrich (1967). Assim falava Zaratustra, Rio de Janeiro: Edições e Publicações do Brasil.
WEBER, Max (1944). Economia y Sociedad, México: Fondo de Cultura Económica, [1922].
___________. (1973). Ensayos sobre metodología sociológica, Buenos Aires: Amorrortu Editores.
___________.(1973a). "La objetividad cognoscitiva de la ciencia social y de la política social",.In Ensayos sobre metodología sociológica, Buenos Aires: Amorrortu Editores.
2) Professor do DCS/PPGS/UFPb. Doutor em Sociologia. Membro da International Sociological Association/ISA/AIS (Research Committee on Alienation Theory and Research). Agradecemos comentários: Caixa Postal 5018, CEP 58051-970 João Pessoa, PB - João Pessoa, Paraíba - Brasil. E-mail: cmci@nti.ufpb.br