"A diminuição da miséria mental dos desenvolvidos
permitiria rapidamente, em nossa era científica, re-
solver o problema da miséria material dos subdesen-
volvidos. Mas é justamente desse subdesenvolvimen-
to mental que não conseguimos sair, é dele que não
temos consciência".
Edgar Morin
Este trabalho expõe o produto de uma pesquisa exploratória, realizada a partir de dados secundários - livros e artigos científicos- publicados sobre a questão ambiental. Mais especificamente, sistematiza e problematiza o debate recente sobre a relação entre desenvolvimento e meio ambiente, se detendo sobre tópicos como: os fundamentos críticos ao modelo de desenvolvimento econômico dominante no mundo ocidental e difundido para o terceiro mundo no pós segunda guerra; a construção do conceito de desenvolvimento sustentável; as principais interpretações da crise sócio-ambiental dentro do pensamento ambientalista mundial e sobre avaliações dos avanços, limites e dilemas da nova concepção de desenvolvimento. O objetivo central da pesquisa consistiu em resgatar a discussão crítica sobre a questão ambiental recente, de forma a contribuir na compreensão da crise que se interpõe nas relações entre a sociedade humana e a natureza, que se reveste de singular complexidade e lança ameaças ao destino da espécie, no longo prazo, caso não se formulem respostas adequadas aos desafios colocados. [fim da página 201]
A década de 70 figura como um marco de emergência de questionamentos e manifestações ecológicas, à nível mundial, que defendem a inclusão dos problemas ambientais na agenda do desenvolvimento das nações e das relações internacionais como um todo. Tais preocupações refletem a percepção de um conflito crescente entre a expansão do modelo de crescimento econômico, de base industrial, e o volume de efeitos desagregadores sobre os ecossistemas naturais. O conjunto de impactos ambientais, até então percebidos como resíduos inevitáveis do progresso e da expansão capitalista, passam a assumir uma nova dimensão, e a despertar atenção, interesse e novas leituras.
A intensificação de problemas sócio-ambientais como: os processos de urbanização acelerada; o crescimento e a desigual distribuição demográfica; a expansão descontrolada do uso de energia nuclear, com finalidades bélicas ou pacíficas; o consumo excessivo de recursos não-renováveis; os fenômenos crescentes de perda e desertificação do solo; a contaminação tóxica dos recursos naturais; o desflorestamento; a redução da biodiversidade e da diversidade cultural; a geração do efeito estufa e a redução da camada de ozônio e suas implicações sobre o equilíbrio climático, têm impactado a opinião pública mundial e atraído atenção para uma realidade, até então pouco observada. Mais recentemente, os analistas da problemática ambiental têm reconhecido que pobreza e ecologia são realidades interdependentes, que precisam ser compreendidas e abordadas de forma integrada, na busca de um equacionamento mais adequado. Isto porque, se a degradação ambiental agrava as condições de vida dos mais pobres, a pobreza destes conduz a uma exploração predatória dos recursos naturais, fechando um ciclo perverso de prejuízos sócio-ambientais. (Sachs, 986) .
De fato, a multiplicação de problemas sócio-ambientais tem contribuído para a emergência e difusão de uma consciência ecológica, assim como para um questionamento da atual forma de relacionamento entre sociedade e natureza e da desintegração dos conhecimentos da economia, da ecologia, da sociologia e da biologia, no sentido de uma aproximação das ciências naturais e sociais. Esse despertar de uma nova consciência ecológica, entretanto, apesar de sua importância, ainda não se refletiu em mudanças significativas nos rumos das políticas governamentais e dos estilos de vida individuais. É natural, que o nível de preocupação e de iniciativas visando a superação dos problemas ambientais, seja mais intenso nas regiões onde o problema é mais presente. [fim da página 202] Assim, as necessidades mais prementes dos países industrializados, aliado aos mais altos níveis de informação de suas populações têm contribuído para o crescimento da consciência ambiental nestes países. No caso dos países do terceiro mundo, outros fatores fazem com que essa consciência seja menos presente, intensa e organizada. Contudo, de formas mais ou menos articuladas e aceleradas, a consciência ecológica cresce e se materializa em movimentos sociais, no seio da opinião pública, em iniciativas científicas, nos meios de comunicação, nas políticas governamentais, nos organismos internacionais e nas atividades empresariais, entre outros. Viola e Leis analisam detidamente a evolução recente do movimento ambientalista global, e sobretudo do ambientalismo brasileiro. Constatam que o movimento iniciado, no início da década de 70, a partir de minorias de estudiosos e militantes ambientalistas, organizados em torno da denúncia de agressões e da defesa dos ecossistemas, vai gradualmente se ampliando, conquistando novos espaços até ganhar a feição multissetorial que hoje o caracteriza. Do ponto de vista das preocupações e temáticas orientadoras do movimento, amplia-se o foco de atenção para incluir questões como a ecologia política, a questão demográfica, a relação entre pobreza e ecologia , a questão técnico-científica, a questão ética, as relações norte-sul e a busca de um novo modelo de desenvolvimento. (Viola & Leis, 1991). O perfil multissetorial assumido pelo ambientalismo, não significa uniformidade de posições, apenas indica uma pluralidade crescente de setores sociais que reconhecem a legitimidade da questão ambiental e a necessidade de incluí-la , como variável indispensável, no planejamento do desenvolvimento nacional e mundial..
Embora um pensamento crítico dirigido à sociedade urbano-industrial e a seus impactos sócio-ambientais remonte aos séculos 18 e 19, as críticas de ontem e de hoje têm significados diversos. O abundante estoque de recursos naturais disponível, nos primórdios da revolução industrial, e a larga capacidade de absorver e reciclar os resíduos da produção, afastava qualquer possibilidade de crise. Por outro lado, o ritmo e o volume da produção mundial, o tamanho da população e seu estilo de vida e consumo não representava um problema a ser considerado. As críticas de hoje, por sua vez, surgem num contexto onde os problemas já são evidentes, modificam a qualidade de vida de milhões de pessoas, assumem uma escala planetária e permitem antever situações de alta gravidade e irreversibilidade a longo prazo, caso não se tomem providências efetivas. Um dos focos privilegiados da crítica ao modelo de desenvolvimento econômico dominante é a contradição existente entre uma proposta de desenvolvimento ilimitado a partir de uma base de recursos finita. Esta contradição básica tem sido analisada [fim da página 203] de diversas perspectivas, todas elas evidenciando a insustentabilidade da proposta à longo prazo. A disponibilidade limitada de matérias-primas, a velocidade de reprodução dos recursos renováveis e a capacidade de absorver os detritos do sistema industrial são insuficientes para acompanhar o ritmo de crescimento acelerado, por um longo tempo. Mais cedo ou mais tarde, tal situação conduziria a um colapso ecológico. (Lago & Pádua, 1992) . Buarque aborda o mesmo problema pelo ponto de vista das limitações da ciência econômica que, segundo ele, não considera em sua análise dimensões sociais e ecológicas da realidade. Adverte para os prejuízos do economicismo, com sua tendência a reduzir a complexidade do real e a fragmentar a globalidade dos fatos. Aponta, também, para outras limitações das análises econômicas que se expressam, por exemplo, na perspectiva imediatista, e de curto prazo, incompatíveis com o longo prazo das mudanças e ciclos naturais, e no divórcio entre técnica e ética que caracteriza certa economia subordinada a racionalidade do capital. (Buarque,1990). Georgescu Roegen, por seu turno, interpreta os limites do crescimento econômico por uma perspectiva biofísica, introduzindo princípios da teoria da entropia, para demonstrar a total impossibilidade de um desenvolvimento exponencial a partir de uma base de recursos escassos. Contribui assim, de forma inovadora para o debate econômico e ecológico ao propor a consideração da natureza no cálculo econômico, ou melhor, para sugerir que o sistema econômico, apesar de sua aparente autonomia, não passa de mero subsistema do ecossistema biofísico, do qual depende como fonte supridora de recursos e como meio onde deposita os resíduos finais das atividades de produção e consumo.(Roegen,1971).
Um outro foco de crítica relevante, dirigida ao modelo de desenvolvimento do capitalismo industrial, diz respeito a algumas de suas características intrínsecas e constitutivas. São elas: a orientação segundo princípios do mercado; a busca da lucratividade, produtividade e competitividade máximas. Tais características, centrais ao processo de reprodução e expansão do capital tem impactos diretos sobre a qualidade do desenvolvimento sócio-ambiental. O sistema de mercado não existe para satisfazer as necessidades das pessoas mas sim para atender aos desejos dos consumidores e a lucratividade dos produtores. Por consequência, o resultado dessa equação não poderia ser outro senão a divisão da sociedade em zonas de inclusão e de exclusão social, num processo crescente de desigualdade social. Conforme veremos adiante, são igualmente adversos os impactos da racionalidade capitalista sobre os ecossistemas naturais. No tocante ao problema da desigualdade econômico-social, dados da Comissão Econômica para a América Latina - CEPAL (que definem como pobres as famílias com renda inferior ao [fim da página 204] dobro do custo da cesta básica), no início da década de 1980, mostram que a população em situação de pobreza na América Latina alcançava 41% do total, porcentagem que subiu para 43% em 1986. Revelam ainda que do aumento no volume da população pobre (34.3 milhões) 55% (19 milhões) correspondem a pessoas em estado de miséria, cuja renda não atinge sequer os custos da cesta básica. (CIMA, 1991). Outros dados, do Relatório do Banco Mundial de 1990, veiculados por Cavalcant , revelam que neste ano 1.116.000.000 (um bilhão e cento e dezesseis milhões) de pessoas viviam com menos de um dólar por dia, o que contabiliza o total de no máximo 30 dólares mensais. (Cavalcanti,1996). Esses dados revelam uma das facetas da aplicação de receitas desenvolvimentistas no terceiro mundo. Já nos referimos acima à conexão cíclica dos fenômenos da pobreza e da degradação ambiental, que evidenciam as desvantagens de um crescimento apoiado na desigualdade social. Assim, se os pobres são compelidos a destruir, no curto prazo, os recursos dos quais dependem para subsistir no longo prazo, os ricos tendem a desperdiçar recursos, através de um consumo ostentatório, que em geral afeta desfavoravelmente os mais pobres. (Sachs,1986). Esse modelo de modernização conservadora, caracterizado por um crescimento econômico não distributivo também tem resultados políticos nocivos , na medida em que fragiliza a democracia e os processos de participação política e cria condições propícias às formas autoritárias de governo, já que as propostas verdadeiramente democráticas dificilmente se sustentam sobre padrões de distribuição de renda muito desiguais. A experiência terceiro mundista, em geral, e latino americana, em particular, tem evidenciado os elos entre a desigualdade econômica a instabilidade política e as saídas autoritárias tão frequentes em nossa história.
Na análise das relações entre desenvolvimento e meio ambiente, merece consideração a forma diferenciada como a degradação atinge os países ricos do norte e pobres do sul. Em primeiro lugar, o norte sofre efeitos de uma poluição da riqueza: usinas nucleares, chuvas ácidas, consumo suntuário, dificuldade em dar destino ao lixo, doenças provocadas por excesso de alimentos, álcool, drogas e medicamentos. No sul, concentra-se a poluição da miséria: subnutrição, falta de água potável e esgotos, lixões a céu aberto, falta de atenção médica e medicamentos, consumo de álcool e drogas. Some-se a isso a exportação de indústrias sujas no sentido norte-sul, como as químicas, petroquímicas e de celulose, e as intensivas em energia como as de alumínio. Agrava, sobremodo, esse quadro a situação de dependência e subordinação determinada pela gigantesca dívida externa dos países do sul, que os obriga a um esforço desmedido de exportação para pagar os elevados juros da dívida, em [fim da página 205] detrimento da degradação descontrolada de seus recursos e patrimônio natural.(Viola & Leis, 1991).
Críticas consistentes também apontam para o caráter imitativo e inadaptado das fórmulas de desenvolvimento transferidas desde os países industrializados, durante todo esse período. Numerosos estudiosos têm chamado atenção para esse problema de consequências tão abrangentes quanto danosas para os países hospedeiros.(Sachs,1986; Buarque,1990; Morin & Kern, 1995; Rattner,1980; Correia de Andrade, 1993). Sachs, em especial, em sua reflexão sobre o desenvolvimento econômico e social e sobre o Ecodesenvolvimento, enfatiza, repetidamente, o crescimento imitativo ou mimético como um dos principais erros a evitar na construção de uma nova concepção de desenvolvimento. Para ele, o crescimento mimético é um dos sinais que distinguem o desenvolvimento do maldesenvolvimento. A tentativa de reproduzir o caminho histórico dos países industrializados acarreta custos sociais e ambientais excessivamente elevados. Embora evitando xenofobismos, salienta como efeitos nocivos da imitação apressada: o aprofundamento da desigualdade social, a dependência cultural e os danos ambientais - decorrentes de transferências não seletivas de tecnologias concebidas em outros contextos - como males estruturais de onde outros se desdobram.(Sachs,1986).
Outra referência indispensável, na análise crítica do modelo de desenvolvimento de base industrial, encontra-se no trabalho "O Mito do Desenvolvimento Econômico" de Furtado. Nele demonstra as falácias da idéia de desenvolvimento econômico e da impossibilidade de sua universalização como pretendiam seus ideólogos. Furtado desmistifica a doutrina do desenvolvimento que prega que os povos pobres têm a possibilidade de atingir os padrões de vida dos povos ricos, desde que sigam o exemplo e as recomendações dos países industrializados. O autor mostra ser essa uma meta irrealizável, já que os custos para tanto, em termos de depredação do mundo físico, seriam tão elevados ,que toda tentativa de generalizá-la levaria ao colapso civilizatório, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. A conclusão a que chega é de que "essa idéia (desenvolvimento) tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de culturas arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo. Cabe, portanto afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é um simples mito". (Furtado,1996).
Colocados, assim, os principais argumentos críticos ao modelo de desenvolvimento econômico industrial, passaremos à análise das diferentes [fim da página 206] correntes de pensamento referentes à questão sócio-ambiental e de suas propostas para a abordagem do problema.
2.1 Diferentes tendências no pensamento ambiental.
Conforme indicamos acima é cada dia maior o número de pessoas, grupos e instituições a reconhecer a legitimidade da questão ambiental e a defender sua inclusão na agenda dos assuntos socialmente prioritários. No entanto, se algum consenso já existe sobre pontos elementares, o mesmo não pode-se afirmar sobre as interpretações concernentes à origem e possíveis respostas ao problema. Apesar do risco de simplificação inerente aos processos de classificação, tentar-se-á apresentar uma diferenciação das perspectivas básicas predominantes no pensamento ambientalista. Seguindo a sistematização proposta por Leis, podemos classificar as correntes principais a partir da combinação de dois eixos básicos. O primeiro formado pelo binômio homem-natureza que define as categorias centrais do antropocentrismo e do biocentrismo. O segundo eixo constituído pelo princípio igualitário-hierárquico que define posições mais individualistas ou coletivistas. (Leis, 1995). Tem-se, assim, quatro categorias básicas que podem ,eventualmente, se ramificar, ampliando o número de variações possíveis. O antropocentrismo pode ser resumido como a tendência ético-filosófica que percebe o ser humano como centro e senhor da existência, num sentido em que todo o resto dos seres e processos orgânicos e inorgânicos adquirem valor comparativamente ao homem e à utilidade que possam lhe proporcionar. O biocentrismo, contrariamente, nega o antropocentrismo e defende uma relação igualitária entre os seres e um valor intrínseco à natureza, desvinculado de conotações utilitárias. Assim, segundo a classificação, teríamos, em primeiro lugar, a posição ecocapitalista que se caracteriza por reunir princípios antropocêntricos e individualistas. Representa a posição econômica e politicamente dominante dentro do ambientalismo global. Reconhece a questão ambiental como um subproduto indesejável do progresso , mas perfeitamente ajustável dentro da ordem capitalista e que dispensa quaisquer mudanças mais profundas . Sinteticamente, alguns ajustes demográficos e tecnológicos seriam suficientes para superar o problema. Compreende o enfoque de mercado, que julga o livre jogo entre produtores e consumidores capaz de avançar na direção de uma sociedade sustentável. Caracteriza-se também, por ser realista, sem influências utópicas, e por um egoísmo [fim da página 207] excludente próprio ao neoliberalismo. Merece, também destaque, como uma variante da categoria anterior, o tecnocentrismo, ou ecotecnicismo, espécie de ambientalismo otimista e acomodado que acredita na superação da crise ambiental através do desenvolvimento científico-tecnológico. Essa tendência tem sido bastante criticada por seu reducionismo, que dissolve toda a complexidade da questão ambiental a aspectos meramente técnicos. (Herculano, 1992)
A segunda posição, mais próxima à ecologia social, reúne características antropocêntricas e coletivistas. São críticos do "status quo" e pensam que os grandes responsáveis pela crise ambiental são o capitalismo industrial e elementos dele decorrentes, ou mesmo inerentes, como a desigualdade social e política, a razão instrumental, a ética individualista e o gigantismo das soluções econômicas e tecnológicas . Defendem, portanto, mudanças político-institucionais e éticas de conteúdos utópicos e anarquistas, de crítica ao Estado e às formas de gestão centralizadoras. São favoráveis a uma sociedade democrática, descentralizada e a princípios de propriedade comunal. Seus principais mentores são Murray Bookchin, Felix Guattari, Rudolf Bahro e Jonathan Porritt entre outros.
Diferente da ecologia social, de tendências anarquistas, o ecossocialismo também se orienta por princípios antropocêntricos e comunitários e forma uma tendência diferenciada, embora dividam o mesmo tronco comum. Com presença marcante no debate ambiental, os ecossocialistas ou ecomarxistas centram sua crítica e a essência de seu diagnóstico da crise ambiental na racionalidade capitalista e em seus pilares de sustentação como: o processo de acumulação crescente de capital, a exploração do trabalho e a mais-valia, na alienação do trabalho, na maximização do lucro e no consumismo exacerbado, que julgam incompatíveis com a lógica ecológica. Assim, se assemelham aos anarquistas na crítica ao capitalismo e se diferenciam por defenderem o socialismo e por verem nele as grandes respostas aos problemas sócio-ambientais. Marcuse, um de seus representantes, expressa a incompatibilidade entre o capitalismo e ecologia ao afirmar: "a lógica ecológica é a negação pura e simples da lógica capitalista; não se pode salvar a terra dentro do quadro do capitalismo. Não se trata de converter a abominação em beleza, de esconder a miséria, de desodorizar o mau cheiro, de florir as prisões, os bancos, as fábricas, não se trata de purificar a sociedade existente mas de a substituir". (Herculano, 1992). Entre os diversos autores que defendem posições ecossocialistas encontram-se além de Marcuse, Goldsmith, Michel Bosquet, André Gorz e Moscovici, entre outros. [fim da página 208]
A posição seguinte refere-se aos ecocêntricos, ou biocêntricos de tendência individualista. Para os representantes desta tendência a natureza tem valor intrínseco independentemente da utilidade que tenha para o homem. Defendem a igualdade de todas as espécies, dentro da comunidade biótica e uma nova ética que substitua os valores antropocêntricos. Dispensam pouca atenção às questões sociais e políticas, sendo mais tendentes a uma visão espiritualista, onde a natureza assume uma importância central. Também conhecidos como fundamentalistas, deep ecology (ecologia profunda) pelo radicalismo de suas posições e pelo combate a outras correntes ambientalistas que consideram superficiais. Ressalte-se que dentro desta categoria do biocentrismo, subsistem gradações que variam desde matizes suaves do conservacionismo, até posturas mais extremistas, como é o caso dos fundamentalistas. Entre os representantes mais conhecidos desta tendência destacam-se : James Lovelock, Arne Naess, Warwick Fox e Aldo Leopold entre outros.
A quarta categoria básica articula características biocêntricas com preocupações comunitárias. Nesse sentido, concorda com a categoria anterior na crítica ao antropocentrismo, mas expressa preocupações sociais, políticas e com os problemas do terceiro mundo. Têm também forte inclinação espiritualista e questionamentos ético-filosóficos, inclusive diferenciando-se das categorias anteriores, por mostrar-se insatisfeita com as explicações e respostas científicas, e por procurar um novo paradigma que integre ciência e religião; razão e emoção; materialidade e espiritualidade. Neste sentido, coloca-se na contramão do paradigma técnico-científico e reivindica o caráter sagrado de todos os seres, assim como a preservação de indivíduos e ecossistemas. Entre os autores biocêntricos coletivistas perfilam autores como Fritjof Capra, Allan Watts, Leonardo Boff e Nancy Mangabeira Unger.
Merecem ainda referência três categorias adicionais que , apesar de menos expressivas hoje, têm significação histórica e sobrevida residual no interior das outras categorias mencionadas. São elas o alternativismo, o neomalthusianismo e o zerismo. O alternativismo reúne movimentos pioneiros no ambientalismo, que inclui pacifistas antinucleares, críticos da ciência e do modelo industrial-consumista que vieram desembocar nos movimentos hippies e da contracultura. Os neomalthusianos focalizam sua atenção sobre a questão demográfica, na relação entre crescimento populacional e degradação ambiental e na defesa do controle da natalidade para evitar os problemas ecológicos. Seus expoentes são Garret Hardin e o casal Erlich, que [fim da página 209] chegam inclusive a sugerir que o terceiro mundo é muito prolífico e, portanto, responsável pelos grandes problemas ecológicos. Discutem, nessa direção, a proposta de suspender qualquer política de ajuda aos países pobres e o congelamento do crescimento populacional como única forma de enfrentar a questão sócio-ambiental. Os zeristas, como os neomalthusianos, seguem as previsões catastróficas dos estudos promovidos pelo Clube de Roma, que colocam os limites do crescimento econômico e propõe o crescimento zero como forma de evitar o colapso ecológico.
Os resultados insatisfatórios, colhidos das experiências práticas e das construções teóricas de desenvolvimento econômico, permitiu , através de sucessivas avaliações, o surgimento de novas propostas, que findaram convergindo para a concepção de desenvolvimento sustentável , a qual abordaremos a seguir.
Analisar a construção e emergência do conceito de desenvolvimento sustentável é compreender os processos objetivos e subjetivos que levaram à consciência do esgotamento do modelo de desenvolvimento, experimentado nas últimas décadas, e da necessidade de uma nova concepção.
Conforme mencionamos acima, a multiplicação de acidentes e problemas ambientais e a ação do movimento ecológico, sobretudo a partir da década de 1970, compõe uma força crítica aos modelos de desenvolvimento industrial, tanto capitalista, quanto socialista, e despertam uma nova consciência, atenta à dimensão ambiental da realidade. Na verdade, a crítica ecológica vem reforçar o coro dos analistas políticos e econômicos e dos críticos da cultura, que já denunciavam as falácias do progresso, suas irracionalidades e promessas descumpridas, seja nos países industrializados, quanto nos países do dito terceiro mundo. Os reclamos da sociedade civil organizada, foi paulatinamente pressionando a incorporação da questão ambiental aos programas de governo nacionais, ao sistema político-partidário e à agenda dos organismos internacionais. A Conferência Internacional para o Meio Ambiente Humano ,promovida pelas Nações Unidas - ONU, em 1972 na Suécia, é um marco histórico-político de uma série de iniciativas e eventos nacionais e internacionais que passam a dar um novo tratamento aos temas ambientais. É do mesmo ano a polêmica publicação "Os Limites do Crescimento", também conhecido como Relatório Meadows, um estudo realizado por um conjunto de técnicos e cientistas do Massachusetts Institute of Technology-MIT, [fim da página 210] por encomenda do Clube de Roma. Este documento avaliou as condições da degradação ambiental planetária e estabeleceu previsões para o futuro. Os resultados publicados foram pessimistas e apontavam para duas possibilidades: ou a mudança dos padrões de crescimento econômico ou o colapso ecológico dentro dos próximos cem anos. O debate que se seguiu a perspectivas tão catastróficas polarizou-se entre os zeristas, que propunham um nível de crescimento zero como única saída para evitar a catástrofe iminente, e aqueles que não confiavam em tais previsões e acreditavam no potencial da ciência e da técnica como saída do impasse. Na esteira da Conferência de Estocolmo registram-se a criação do PNUMA - Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, e de diversos outros programas com preocupação ecológica.
A Conferência de Estocolmo reflete a preocupação , sobretudo do mundo desenvolvido com a vulnerabilidade dos ecossistemas naturais. Sua ênfase estava nos aspectos técnicos da contaminação provocada pela industrialização acelerada, pela explosão demográfica e pela expansão do crescimento urbano (Guimarães, 1991). Pode-se afirmar que o tom predominante foi a polêmica entre países ricos e países pobres. Em verdade, a agenda da Conferência ressaltava temas e objetivos de interesse dos países industrializados, e o Brasil foi um dos países a liderar uma resistência de terceiro-mundistas, sob o argumento de que precisamos de desenvolvimento e não de controle ambiental, e de que se a poluição é inevitável, que venha a poluição. Chamavam a atenção para o fato de os desenvolvidos proporem controle ao crescimento econômico após terem atingido altos níveis de crescimento e de degradação de seus próprios recursos. Diziam que os ricos queriam manipular o crescimento dos pobres com argumentos ecológicos. Apesar dos conflitos, a Conferência teve repercussões mundiais, desencadeando outras conferências internacionais, a criação de diversas agências internacionais voltadas para o assunto, de órgãos ou ministérios ambientais em muitos países, de milhares de organizações não-governamentais e a organização de partidos verdes em numerosos países.
Já em 1973 o conceito de ecodesenvolvimento é usado pela primeira vez para caracterizar uma concepção alternativa de desenvolvimento. O prof. Ignacy Sachs é um dos principais responsáveis pela formulação dos princípios básicos dessa nova perspectiva de desenvolvimento. Esses princípios podem ser sintetizados como: a) a satisfação das necessidades básicas da população; b) a solidariedade com as gerações futuras; c) a participação da população envolvida; d) [fim da página 211] a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente em geral; e) a elaboração de um sistema social que garanta emprego, segurança social e respeito a outras culturas, e f) programas de educação (BRUSEKE, 1995). O conceito enfatiza ainda sua oposição aos modelos de crescimento imitativos, à importação de tecnologias inadequadas e a promoção da autonomia das populações envolvidas, de forma a superar a dependência cultural à referenciais externos. Caracteriza-se, enfim, como uma estratégia multidimensional e articulada de dinamização econômica, sensível à degradação ambiental e à marginalização social, cultural e política das populações consideradas.(Vieira, 1995).
A Declaração de Cocoyoc, em 1974, é outro documento marcante no debate sobre desenvolvimento e meio ambiente. Foi o resultado de uma reunião do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas - UNEP e da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento - UNCTAD. Na reunião, se avançou sobre o modelo sugerido por Sachs, trazendo à discussão a conexão existente entre explosão populacional, pobreza, degradação e a responsabilidade dos países desenvolvidos com esses problemas, devido a seu elevado nível de consumo, desperdício e poluição.
Em 1975, o Relatório Que Faire, apresentado pela Fundação Dag - Hammarskjöld com participação de pesquisadores e políticos de 48 países e contribuições da UNEP e outras 13 organizações da ONU, reforça os argumentos de Cocoyok. Nele, apresentam-se críticas contundentes ao abuso de poder dos desenvolvidos, ao excesso de interferência desses países nos destinos dos países do terceiro mundo e às graves consequências ambientais, daí resultantes. Depositam esperanças em estratégias de desenvolvimento baseados na autoconfiança (self-reliance) e autonomia dos países pobres. Devido a seu caráter radical, sofre resistências e rejeição por parte de governos, cientistas e políticos conservadores .
Em 1983, a Assembléia Geral das Nações Unidas cria a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento - UNCED, que tem como Presidente a então primeira-ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland . A comissão tinha por objetivo reexaminar os principais problemas do meio ambiente e do desenvolvimento, em âmbito mundial, e formular propostas realistas para solucioná-los. Em abril de l987, a comissão apresenta o relatório Nosso Futuro Comum (Our Common Future). O relatório parte do pressuposto da possibilidade e da necessidade de conciliar crescimento econômico e conservação ambiental e divulga o conceito de desenvolvimento sus- [fim da página 212] tentável e um conjunto de premissas que desde então tem orientado os debates sobre desenvolvimento e questão ambiental. Nesse contexto, o desenvolvimento sustentável é definido como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações futuras também atenderem as suas. O relatório Brundtland inova no sentido em que recusa tratar exclusivamente dos problemas ambientais, optando por uma perspectiva relacional centrada nas interrelações entre estilos de desenvolvimento e seus impactos sobre a natureza. O discurso se orienta no sentido da sustentabilidade do desenvolvimento e da necessidade de tratá-lo de uma perspectiva multidimensional que articula os aspectos econômicos, políticos, éticos, sociais, culturais e ecológicos, evitando os reducionismos do passado. Com próximas influências do ecodesenvolvimento, apresenta uma filosofia de desenvolvimento que combina eficiência econômica com prudência ecológica e justiça social. Este relatório também chama atenção para a importância da cooperação internacional e do multilateralismo no enfrentamento dos desafios de final de século. Enfatiza ainda que os problemas do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável se encontram diretamente relacionados com os problemas da pobreza, da satisfação das necessidades básicas, de alimentação, saúde e habitação e de uma matriz energética que privilegie as fontes renováveis no processo de inovação tecnológica. (Guimarães, 1991).
Percebe-se, do exposto, que as propostas elaboradas na Conferência de Estocolmo em 1972 e as produzidas com vistas a Conferência do Rio em 1992, e adiantadas pelo Relatório Brundtland tem teores bastante diversos. Se em 1972 a ênfase recaia na busca por soluções técnicas para os problemas da degradação ambiental , a Conferência de 1992 focaliza a relação entre desenvolvimento e ecologia e aborda problemas planetários, procurando integrar interesses multilaterais , pelo menos em intenção.
Na seção seguinte, tentar-se-á avaliar as principais críticas e dilemas do desenvolvimento sustentável, procurando apresentar seus avanços, limites e contradições.
O conceito de desenvolvimento sustentável, lançado pelo Relatório Brundtland, em 1987 tem, desde então, ocupado posição de destaque [fim da página 213] no debate recente sobre a questão ambiental em sua relação com o desenvolvimento econômico-social. Apesar de sua forte penetração social, sobressaem seu caráter polêmico e ambíguo, marcado por múltiplas interpretações e consensos apenas pontuais. A literatura que avalia seu significado e impacto social destaca suas positividades, suas contradições e os dilemas de sua incompletude, de seu caráter inacabado e dos obstáculos existentes à sua evolução e consolidação como real alternativa de desenvolvimento social.
As análises que acentuam suas qualidades positivas destacam: seu caráter inovador, como nova filosofia de desenvolvimento econômico, que substitui e supera um paradigma limitado, esgotado e ineficaz. O novo conceito incorpora também uma perspectiva multidimensional que a um só tempo articula economia, ecologia e política numa visão integrada e supera abordagens unilaterais e explicações reducionistas e simplificadoras do problema. Percebe-se ,também, como pontos positivos: a visão de longo prazo , sintonizada com os ciclos biofísicos e com as gerações futuras; e o tratamento político do problema ecológico que substitui a visão meramente técnica, antes predominante. O conceito de sustentabilidade inova também ao valorizar os problemas das relações norte-sul, e sobretudo as especificidades dos países pobres, quando relaciona pobreza, riqueza e degradação, quando atenta para as implicações adversas da dívida externa no contexto sócio-ambiental desses países, inclusive reconhecendo a desigualdade norte-sul e a maior responsabilidade relativa dos países do norte na construção de um desenvolvimento sustentável . Registra, ainda, a maior predação relativa dos nortistas e os prejuízos que o seu crescimento trouxe para os países do sul.
No plano do conhecimento científico, a proposta sugere a preferência por abordagens multidisciplinares, com uma aproximação necessária entre as ciências naturais e sociais.
Os analistas menos radicais elogiam seu posicionamento político realista e diplomático, que rejeita extremismos ou quaisquer outras atitudes que possam prejudicar seu tom conciliatório. Consideram, inclusive, que a construção da proposta de desenvolvimento sustentável teve o mérito de introduzir a temática ambiental nos debates sobre política econômica e relações internacionais, e um reconhecimento que o assunto nunca teve em vinte anos de esforços e mobilizações.(Viola, 1995; Vieira, 1995; Brüseke, 1995).
Do ponto de vista daqueles que criticam o conceito, a ênfase recai sobre suas ambiguidades e contradições, e são muitas as vulnerabilidades apontadas. Pode-se afirmar, para fins de síntese, que os principais [fim da página 214] ataques à proposta se ramificam em torno de algumas perguntas essenciais como: a) é realmente possível conciliar crescimento econômico e preservação ambiental, no contexto de uma economia capitalista de mercado ? ( ver socialismo adiante); b) Não é o desenvolvimento sustentável apenas uma nova roupagem para uma proposta já superada? ( e neste caso se trataria de mudar na aparência para conservar na essência); c) em não havendo consenso sobre o que é desenvolvimento sustentável e sobre como atingi-lo, qual interpretação será privilegiada, a visão estatista, de mercado ou da sociedade civil ?; como atingir eficiência econômica, prudência ecológica e justiça social em uma realidade mundo extremamente desigual, injusta, e degradada ? como passar da retórica à ação? Estão os países desenvolvidos e as elites das nações subdesenvolvidas dispostas à mudanças e sacrifícios? Podemos apenas especular sobre estas questões, não respondê-las.
Como esclarecimento, é necessário colocar que quando nos referimos aos problemas ambientais das sociedades e economias capitalistas não queremos sugerir que as sociedades socialistas sejam diferentes nesse aspecto. Os estudos ambientais e os próprios meios de comunicação têm demonstrado os resultados ecologicamente negativos do modelo de desenvolvimento socialista, como atestam a destruição de florestas no leste europeu, por chuvas ácidas, o episódio nuclear de Chernobyl e o processo de desertificação e salinização de vastas regiões em torno do mar de Aral. ( Lima, 1993). Além disso, após a desintegração recente das experiências do socialismo real, restam os modelos capitalistas. Assim, importa lembrar, que quando hoje falamos de desenvolvimento sustentável nos referimos ao contexto da sociedade capitalista industrial.
Sequenciando a crítica ao conceito de sustentabilidade, veiculado pelo relatório Brundtland, condena-se sua natureza polissêmica, que ao deixar obscuro seu significado, permite múltiplas leituras, que podem oscilar, desde um significado avançado de desenvolvimento, associado à justiça social, participação política e preservação ecológica, até uma leitura conservadora que o torna semelhante ao conceito de crescimento econômico, ao qual se acrescentou uma variável ecológica. Herculano, por exemplo, explora uma contradição semântica do termo, já que a associação das noções de sustentabilidade e desenvolvimento encerra um antagonismo de difícil solução. Lembra ela, que sustentabilidade é um conceito da ecologia, que significa tendência à estabilidade, equilíbrio dinâmico e interdependência entre ecossistemas, enquanto desenvolvimento diz respeito ao crescimento dos meios de produção, à acumulação e expansão das forças produtivas. [fim da página 215]
Outro ponto vulnerável à crítica é a tendência economicista do conceito, em sua apresentação, que supervaloriza a dimensão econômica do desenvolvimento em detrimento de aspectos éticos, culturais, sociais e políticos, embora em teoria privilegie uma perspectiva pluridimensional. Os ambientalistas se queixam de que o conceito de desenvolvimento sustentável, de sua autoria, estaria sendo distorcido e reinterpretado como uma estratégia de expansão do mercado e do lucro, quando, na verdade, significa mudanças essenciais na estrutura de produção/consumo, uma nova ética comportamental e o resgate dos interesses sociais coletivos. (Herculano,1992).
Stahel é outro autor que questiona a possibilidade de uma sustentabilidade no contexto do capitalismo. Argumenta que o novo conceito tem sido difundido sem que se coloque, explicitamente, sua significação no quadro do capitalismo, e que ou ele mostra sua possibilidade de realização, ou cai no vazio, servindo apenas como ideologia legitimadora da insustentabilidade capitalista. Desenvolve uma análise sobre o funcionamento do capitalismo, a partir da noção de entropia, procurando as sintonias entre os ritmos econômico e biofísico. Compara o significado dos tempos biosférico e econômico, observando ser o tempo biosférico circular, orientado pelo princípio da estabilidade, da contínua reciclagem e pelos baixos níveis de entropia, ao passo que, o tempo econômico, introduzido pelo capitalismo é marcado pela expansão constante, concorrência de mercado, pelas constantes inovações e pela instabilidade. Segundo o autor, a aceleração do tempo, característica da lógica capitalista, rompe com o tempo circular e com a estabilidade biosférica, acelerando os processos de degradação entrópica. Maior produtividade e competitividade representam geração de alta entropia , lixo e poluição crescentes. Nesse descompasso temporal, entre a aceleração do tempo econômico e a incapacidade de adaptação do tempo biosférico está a origem da crise ambiental. Stahel conclui, afirmando que o modelo de desenvolvimento capitalista, visto da ótica da lei da entropia se mostra insustentável e, o discurso da sustentabilidade no contexto de uma economia de mercado, uma ilusão. (Stahel, 1995).
Outro ponto polêmico refere-se à busca da sustentabilidade no âmbito das relações norte-sul. O relatório Brundtland trata da pobreza e da degradação ambiental do sul de maneira rigorosa, enquanto tem maior tolerância com a degradação dos industrializados. As críticas a estes últimos, e à sociedade industrial como um todo são bastante atenuadas se comparadas com os relatórios anteriores. De maneira análoga, define um nível de consumo mínimo para os países pobres, mas se omite na definição de um limite para o consumo máximo. Neste sentido, [fim da página 216] os padrões de consumo e os estilos de vida dos desenvolvidos são poupados de questionamentos mais profundos, deixando transparecer a crença em ajustes superficiais que dispensam mudanças maiores. Os países do sul , por sua vez, tendem a resistir às propostas de controle populacional e de restrição ao crescimento econômico e à soberania nacional. A globalização da estrutura produtiva tornará inviável a revisão das formas de desenvolvimento e os padrões de produção e consumo pelos países do sul, se tal revisão não ocorrer ao mesmo tempo no centro do sistema econômico mundial, e vice-versa. De fato, percebe-se a impossibilidade de qualquer iniciativa no sentido da sustentabilidade fora dos critérios da cooperação e reciprocidade multinacional. O problema que daí emerge está em como estabelecer uma cooperação satisfatória entre blocos de interesse com forças desiguais.
Schumacher, refletindo sobre o problema norte-sul, constata que boa parte dos estudos de países industrializados defende o desenvolvimento sustentável para os países do sul, enquanto, segundo ele, são os países do norte que mais precisam dele. Investiga projeções de aumento populacional e de consumo de combustíveis nos dois blocos e conclui que mesmo com o maior crescimento demográfico do sul, o norte continua responsável pela maior parte do dano ambiental.(Almino,1993).
Herculano também analisa o conceito de desenvolvimento sustentável e o relatório Brundtland e não chega a conclusões muito otimistas. Para a autora o relatório evita referir-se ao desenvolvimento sustentável como expressão do capitalismo liberal. Aponta a pobreza como a principal causa da degradação ambiental, mas não diz que ambos os fenômenos são produtos de um modelo de crescimento que prioriza a expansão do capital e não as necessidades humanas. Identifica a tendência do relatório como um ecocapitalismo, apoiado no avanço tecnológico e capaz de gerar uma industrialização limpa e o controle demográfico do terceiro mundo, vistos como causas primordiais da crise. A analista considera as soluções propostas como paliativos que não atingem as verdadeiras causas do problema. Concorda que o crescimento econômico é necessário mas não suficiente, pois pode-se crescer para elevar produtividade e a lucratividade ou para satisfazer necessidades sociais e éticas. Nesse contexto, quais seriam as prioridades e a amplitude social do desenvolvimento capitalista? (Herculano, 1992).
Importa ainda considerar outro ponto essencial no debate do desenvolvimento sustentável, que se refere à decisão sobre as responsabilidades, estratégias, e métodos para atingir a sustentabilidade do desenvolvimento. O debate se ramifica em três posições básicas, que defendem respectivamente: [fim da página 217]
a) uma visão estatista - considera que a qualidade ambiental é um bem público que deve ser normatizada, regulada e promovida pelo Estado, com a complementaridade das demais esferas sociais, em plano secundário (o mercado e a sociedade civil).
b) uma visão comunitária - considera que as organizações da sociedade civil devem ter o papel predominante na transição rumo a uma sociedade sustentável. Fundamentam-se na idéia de que não há desenvolvimento sustentável sem democracia e participação social e que a via comunitária é a única que torna isto possível.
c) uma visão de mercado - afirma que os mecanismos de mercado e as relações entre produtores e consumidores são os meios mais eficientes para conduzir e regular a sustentabilidade do desenvolvimento. (VIOLA & LEIS, 1995).
A título de síntese, centraremos a atenção na problematização de alguns desafios presentes e futuros da proposta de desenvolvimento sustentável. É certo que a novidade da proposta tem ainda muito de inacabado, processual e indefinido. Sua evolução, entretanto, exigirá decisões e posicionamentos transparentes que indiquem o seu potencial de superar contradições ainda mal resolvidas.
Os maiores desafios se concentram, de fato, no processo de materialização da sustentabilidade, ou seja, na transformação da filosofia e do discurso em ação e realização. Assim, o sonho de uma sociedade sustentável é não só desejável como necessário e o desafio é torná-lo realidade. Nesse processo encontram-se os verdadeiros obstáculos e aparecem as grandes discordâncias sobre como construir um desenvolvimento multidimensional, que integre justiça social, sustentabilidade ambiental, viabilidade econômica, democracia participativa, ética comportamental, solidariedade e conhecimento integrador. Como fazê-lo? Haverão, certamente várias maneiras de conceber, tanto o desenvolvimento sustentável, quanto o método para realizá-lo. Qual delas será a hegemônica ? E na construção do desenvolvimento, o que é prioritário? A economia, a ecologia, a qualidade da vida humana? Que valores orientarão estas escolhas ? Existem ainda mais perguntas que respostas , e o tipo de desenvolvimento que teremos dependerá da qualidade das respostas processadas no jogo social entre o mercado, a sociedade civil e o estado. [fim da página 218]
Como, por exemplo, conciliar o imediatismo e a ânsia do capital com o longo prazo do tempo biológico e das gerações futuras? Como sintonizar a racionalidade do mercado e da lucratividade máxima com as necessidades sociais e a distribuição de renda? Qual o meio termo entre a ética do individualismo e da solidariedade? Como harmonizar competitividade e produtividade econômicas com qualidade de vida e sanidade ecológica? Como ajustar os interesses econômicos e políticos das grandes empresas, bancos e Estados ricos com o bem-estar coletivo? Como superar a pobreza de 4/5 da humanidade sem reduzir o conforto, o consumo e a riqueza da minoria restante? Reconhece-se a impossibilidade de atingir uma sociedade sustentável sem a participação democrática de sua população nas decisões, implementação e controle do desenvolvimento. Mas como garantir a democracia participativa dentro de realidades tão desiguais?
Ao que parece as respostas a tais perguntas vão depender do nível e da qualidade da consciência pública, de sua percepção da realidade e dos problemas vividos, e de sua capacidade de organização para impulsionar mudanças no sentido de uma sociedade verdadeiramente sustentável. Dependerá igualmente da habilidade dos movimentos sociais, em sentido amplo, em atrair forças, em estabelecer alianças e de liderar um processo que torne a filosofia da sustentabilidade - em seu sentido mais avançado - em uma alternativa real de desenvolvimento social .
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1) Professor do Departamento de Ciências Sociais - UFPb.