KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org). Imagens e Ciências Sociais. João Pessoa: Editora Universitária/UFPb, 1997.
A imagem vem acompanhando os trabalhos de pesquisa no domínio das Ciências Sociais desde o seu surgimento. Antes do advento de técnicas mais modernas de representação icônica (a fotografia, por exemplo), desenhistas de reconhecida habilidade integravam as expedições científicas européias que se lançavam ao mundo dentro de um projeto de expansão colonialista para investigar o outro: o 'selvagem', o 'primitivo'. Em meados do século XIX, a fotografia aliou-se à antropologia na tarefa de inventariar culturas e modos de vida estranhos ao homem dito "civilizado". Desde então, as imagens produzidas por este meio mecânico de representação bidimensional do mundo passaram a fazer parte da bagagem dos cientistas sociais, servindo como provas ilustrativas das 'verdades' contidas nos textos sobre as sociedades analisadas.
A função de ilustrar textos acadêmicos foi, e continua sendo, para a maioria dos pesquisadores o uso mais comum da fotografia no campo das Ciências Sociais. Só nas primeiras décadas do século XX é que a fotografia vai ganhar maior importância no corpo dos trabalhos escritos; fruto da ousadia de Malinowski e de sua perseverança em utilizar pesados equipamentos e acessórios na sua pesquisa de campo nas ilhas Trobriand. Aproximadamente duas décadas depois, em 1939, Margaret Mead e Gregory Bateson produzem um volumoso material fotográfico e filmográfico sobre a cultura de Bali e Nova Guiné.
A antropologia descobre na câmera um instrumento eficiente de pesquisa, capaz de dar conta com maior abrangência de aspectos de uma realidade negligenciados durante a observação de campo. Longe do contato direto com o objeto de estudo, o cientista social enriquece seus dados com novas informações fornecidas pelas imagens coletadas. Mead e Bateson acreditaram nas potencialidades da câmera fotográfica e cinematográfica na tarefa de levantamento de dados etnográficos. A crença na verossimilhança da imagem fotográfica não apenas seduziu (e induziu) o senso comum a tomar como verdadeiramente real o objeto representado como também as ciências exatas e as ciências humanas que se deixaram fascinar pelo poder de prova da fotografia.
A coletânea de artigos que dão corpo ao livro Imagens e Ciências Sociais, organizado pelo professor Mauro Guilherme Pinheiro Koury, surge num momento em que as discussões sobre o uso da câmera numa pesquisa não se limitam mais ao questionamento de sua eficácia enquanto uma técnica a mais de investigação aplicada ao trabalho de campo. Uma tendência da Antropologia Visual defende o [fim da página 253] uso da fotografia na construção de um texto imagético autônomo com o mesmo status de um texto verbal. Reunindo onze artigos de pesquisadores das universidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe, Pernambuco e Paraíba, Imagens e Ciências Sociais é fruto do esforço do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Imagem, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB (PPGS), em sistematizar as inquietações em torno das quais aglutinam-se antropólogos preocupados em sedimentar, num campo de saber próprio, a chamada Antropologia Visual. A maioria dos textos desta coletânea foram apresentados como comunicação na IV Reunião de Antropologia do Norte e Nordeste.
A fotografia como auxiliar do caderno de notas na documentação fiel de elementos da cultura material e tecnológico de um povo; como facilitadora da entrada do antropólogo no universo a ser investigado; como motivadora e desencadeadora de conversações numa situação de entrevista; e como fonte de informação mais segura numa etapa posterior ao trabalho de campo, quando o pesquisador não se encontra mais em contato com o seu objeto de estudo (Collier Jr., 1973), já é placidamente aceita sem causar mais nenhuma celeuma. Por outro lado, a utilização da imagem fotográfica na elaboração de construções narrativas provoca desavenças nas fileiras dos seguidores de uma antropologia visual.
Nesta coletânea, a fotografia é abordada sobretudo como objeto de pesquisa. Em dois momentos discute-se seu uso como recurso técnico na pesquisa e na difusão dos seus resultados. Apenas um texto contempla a imagem videográfica. Esta obra, com uma pluralidade de temas concernentes ao uso da fotografia, vem à luz num instante histórico decisivo para a chamada 'era das imagens', principalmente porque o surgimento da imagem digital (auto-referente) abala uma série de paradigmas sobretudo os que dizem respeito ao estatuto da fotografia enquanto cópia fiel do real. O 'deslumbre' face à imagem digital não tem sido diferente daquele que a sociedade renascentista vivenciou diante da imagem perspectiva e o homem do século XIX sentiu com a aparição da fotografia (Ramos, 1994).
Os onze artigos estão agrupados em três núcleos temáticos: "Imagens e apreensão do real", "Imagens do urbano" e "Usos da imagem no ensino e na pesquisa em Ciências Sociais". Na primeira parte, a imagem enquanto representação do real e como uma entre diversas formas de aprendê-lo é discutido no artigo "A fotografia na apreensão do real", de Bertrand Lira, fotógrafo e mestre em sociologia pelo PPGS da UFPB. Inspirado nos pressupostos teóricos de Weber e Kosik, o autor levanta a problemática da propalada 'objetividade' no domínio de qualquer forma de investigação e tentativas de compreensão do mundo. Em "Quadro número zero: uma travessia pictórica com Sérgio Lucena", a professora Elisa Cabral, do PPGS/UFPb, constrói uma reflexão sobre o processo [fim da página 254] de criação artística utilizando as imagens em vídeo que tomou durante a feitura de um quadro do artista plástico paraibano.
Nos artigos de Koury, o autor versa sobre o fenômeno da morte e sua relação com a fotografia. Intitulado "Fotografia, sentimento e morte no Brasil", Koury tenta compreender, através da análise dos "santinhos" distribuídos por ocasião do desaparecimento de um ente querido e da fotografia mortuária, os sentimentos que envolvem a questão da morte e o uso da fotografia no processo doloroso da perda. Com este tipo de serviço fotográfico, as famílias podiam dispor de um retrato do ser desaparecido num esquife ou deitado, como se dormisse serenamente, ou ainda arrumado de forma cuidadosa para fazer parecer que estava vivo quando a fotografia fora tomada. Em "fotografia e a questão da indiferença", Koury discute a banalização da morte pela fotografia, particularmente aquela veiculada na imprensa, procurando entender as mudanças do olhar e a aparente falta de sensibilidade do homem comum em face à morte pública.
A segunda parte do livro reúne artigos que tratam da imagens do urbano. Koury dá início com "Fotografia e pobreza", artigo que traduz uma reflexão sobre o olhar fotográfico engendrado a partir de um ideário de progresso associando a pobreza (o homem pobre) a uma estética do feio. A constatação de que a fotografia brasileira do final do século XIX a meados deste acompanhou as transformações na paisagem urbana e no desenvolvimento industrial do país emerge ao lado da percepção de que tudo que negava o ideário de progresso das elites brasileiras era excluído da mira da fotografia. A pobreza, sinônimo de feiúra, só poderia ser revelada como contraponto do progresso pois não podia condizer com o belo. Na cidade da Parahyba (atual João Pessoa), Koury remarca os trabalhos dos fotógrafos Emiliano Rodríguez, Walfredo Rodríguez, Eduardo e Gilberto Stuckert como representantes deste olhar sobre a cidade.
Em "Faces da cidade", Sylvia Bompastor levanta discussão semelhante tomando como objeto a fotografia e as representações sociais, e tendo como fonte de estudo as velhas vistas urbanas da cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco. A idéia de modernização, progresso e civilização da nova cidade é construída, segundo Bompastor, não só pelo discurso de determinadas categorias sociais (médicos, sanitaristas, engenheiros, reformadores) mas também, e sobretudo, através da fotografia. Analisando álbuns de vistas e almanaques, edições governamentais de cunho publicitário, revistas ilustradas e postais avulsos, a autora verificou que a leitura da cidade aventada nessas publicações era de um espaço urbano racionalizado, homogêneo e que negava suas gritantes contradições.
Cristina Barreto, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Crato (CE), focaliza a "Cidade da Parahyba dos anos 20" com a proximidade [fim da página 255] de uma teleobjetiva, observando num universo particular o que Koury observou de forma "grande angular" na fotografia brasileira. Barreto discute no seu artigo as noções de progresso e desenvolvimento urbano engendradas e difundidas através da fotografia no período compreendido entre as décadas de 1870 e 1930, assinalando como os fotógrafos da época absorveram e representaram nas suas imagens o projeto de desenvolvimento das elites locais.
Fechando a temática imagens do urbano, Koury retoma a cidade da Parahyba como objeto enfocando " Fotografia e cidade: um olhar através das fotos e da crônica de Walfredo Rodríguez". Fotógrafo e cineasta, Rodríguez escreveu a crônica da cidade amada em textos e em imagens, não só as produzindo ele próprio mas enquanto colecionador apaixonado. Nesta abordagem, Koury retoma a questão das transformações urbanas e a idéia de progresso como contraponto da pobreza, representada nas fotografias de Walfredo Rodríguez pelos "tipos populares": os entregadores de água, os vendedores de frutas e comidas, ou os acendedores de lampião a querosene. Ou pelas construções pobres alcunhadas de "pitorescas".
Chegamos à terceira e última parte da coletânea onde três artigos levantam discussões que gravitam em torno dos "Usos da imagem no ensino e na pesquisa em Ciências Sociais". O primeiro, de Cláudia Fonseca (professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRS), tem como proposta abordar a utilização de material visual no treinamento de estudantes dos cursos de graduação em técnicas de pesquisa antropológica. "Simulação de vôo de edição: a primeira viagem de uma etnógrafa" relata situações novas com o registro audiovisual (vídeo) numa pesquisa de campo da autora e a reação inesperada dos estudantes ao assistirem o material gravado.
"Do campus para a escola", artigo de Beatriz Góis Dantas, professora visitante do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade de Sergipe, questiona a destinação social dada ao material visual produzido nas pesquisas de campo. A autora constatou que as fotografias, em particular, são confinadas em gavetas e condenadas ao amarelecimento. Preocupada com o destino deste material, a autora procura chamar a atenção para aspectos práticos do uso deste tipo de fotografia, depois de cumpridas as funções instrumentais da pesquisa. Dantas propõe uma ampla difusão dessas fotografias nos trabalhos com diferentes disciplinas estendendo sua aplicação a recursos didáticos na sala de aula de graus diversos de ensino e através de exposições visando atingir públicos diferenciados.
O uso da câmera fotográfica no trabalho de campo antropológico experimentado por Carmem Sílvia Rial e sua comparação com outras vivências do ato fotográfico é o tema do último artigo. "Contatos fotográficos: nativos, antropólogos, jornalistas e turistas. Diferentes linguagens fotográficas?", como o titulo permite entrever, questiona [fim da página 256] as relações entre a vivência fotográfica do antropólogo com outras vivências que têm diferentes fins. Rial, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Santa Catarina, elaborou seu texto a partir de uma pesquisa no junto aos descendentes açorianos naquele estado.
Os estudiosos envolvidos na sedimentação de uma "antropologia em imagens" tem nesta coletânea farto manancial de informações, fruto de vivências empíricas e reflexões teóricas com e sobre a imagem, de pesquisadores inquietos sobretudo com o uso da fotografia no seu campo de saber. Inquietação exposta nas crescentes iniciativas dos grupos de trabalho ligados à imagem. A exemplo do Núcleo de Antropologia Visual do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; do Núcleo de Antropologia e Imagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; e o Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Imagem do PPGS da Universidade Federal da Paraíba. Com tanto empenho e tamanha produção ficará difícil ignorar a Antropologia Visual enquanto campo emergente do saber e em franca (e visível) consolidação.
RAMOS, Fernão Pessoa(1994). Falácias e deslumbre face à imagem digital. Revista Imagens, 3: 28-40.