Nos últimos três anos, várias cooperativas têm sido estabelecidas no interior do Ceará. Estas cooperativas têm como atividade principal a montagem de confecções, especialmente calças jeans, para uma única firma, que vende o produto final para empresas locais e compradores estrangeiros. A grande maioria dos membros das cooperativas de confecções é formada por mulheres de pequenas cidades da região do Maciço de Baturité, área escolhida pelo governo do estado do Ceará para sediar um pólo industrial de confecções.
O presente estudo tem como objetivo analisar o estabelecimento e o funcionamento de cooperativas de produção de confecções na região do Maciço de Baturité como parte da estratégia do governo do Ceará para gerar emprego e renda no estado. Pretende-se, através deste trabalho, perguntar se o sistema de cooperativa para organização do trabalho, que tem lugar na referida região cearense, atende aos princípios de autonomia e liberdade, sobre os quais se pauta a idéia de cooperativismo. Além disso, o estudo também contempla as condições de vida e trabalho dos membros das cooperativas. Até que ponto as novas ocupações criadas pela industrialização do interior do Ceará representam, de fato, uma mudança nas condições de vida da classe trabalhadora, em especial da força de trabalho feminina? Ou seja, até que ponto pode-se sustentar a idéia de que a interiorização do desenvolvimento tem como princípio norteador a preocupação com a humanização do homem? [fim da página 55]
Nas próximas seções deste trabalho serão apresentados dados referentes ao estabelecimento das cooperativas de confecções na região do Maciço de Baturité, no interior do estado do Ceará. Estes dados foram levantados através de entrevistas (45 entrevistas com membros das cooperativas, e 15 com outras pessoas envolvidas no projeto de industrialização estudado), pesquisa bibliográfica, (livros, artigos de jornais e revistas especializadas) e documentos durante a pesquisa de campo realizada em dezembro de 1994, de maio a agosto de 1995, e agosto de 1996.
A industrialização no Brasil tem se concentrado tradicionalmente nos centros urbanos. O Estado do Ceará também seguiu a mesma tendência de outros estados brasileiros ao concentrar o desenvolvimento industrial em sua capital ou em sua região metropolitana. De fato, em 1973 Fortaleza e municípios vizinhos tinham 63,35% de todas as indústrias cadastradas no Estado do Ceará. Até o final dos anos 70, o governo do Ceará ainda dava prioridade à industrialização localizada na capital do estado. Àquela época tentava consolidar o distrito industrial de Fortaleza. Contudo, desde a década de 80, o governo do Estado tem redirecionado sua política industrial para o interior do Estado (Oliveira Jr, 1992).
Neste sentido, o governo do Estado do Ceará tem formulado um pacote de benefícios para que as indústrias se estabeleçam no interior, como, por exemplo, infra-estrutura física (água, luz e esgoto), terrenos a preços simbólicos e vários incentivos fiscais. Esta nova política de desenvolvimento tem atraído várias empresas para o Estado, a ponto de se registrar, nesses últimos 3 anos, a presença de 200 empresas instaladas no Ceará e o governo pretende trazer mais 200 nos próximos quatro anos (O Povo 16.07.95, P.24A). Dentre essas empresas, uma fábrica de confecção, que faz parte de um complexo empresarial de um grupo de investidores de Taiwan, encontra-se em funcionamento no município de Acarape, na região do Maciço do Baturité, distante aproximadamente 70 quilômetros de Fortaleza. Ao contrário das outras empresas instaladas na área, a mencionada fábrica de confecção não contrata diretamente toda a mão-de-obra necessária para a confecção de roupas em jeans (particularmente calças compridas). Ela apenas contrata a mão-de-obra mais especializada, como, por exemplo, engenheiros, administradores, gerentes, pessoal encarregado do corte do tecido, etc. A mão-de-obra encarregada da montagem de peças em jeans é subcontratada através de cooperativas de confeccionistas criadas recentemente (1993) numa política [fim da página 56] conjunta do governo do Estado do Ceará, prefeituras municipais do Maciço do Baturité e a referida fábrica de confecção. Os confeccionistas são pagos por produção e ganham em média um salário mínimo por mês. A lei de cooperativas no Brasil estabelece que o cooperado é membro da cooperativa e não seu empregado, portanto não é caracterizado nenhum vínculo empregatício entre a cooperativa e seus membros (Lei n. 5.764, de 16.12.71, art.90), nem entre a fábrica de confecção e os membros das cooperativas, quase todos mulheres do meio rural que, na grande maioria, não possuem nenhuma experiência anterior em trabalho industrial, principalmente na indústria de confecção.
As tentativas do governo do Estado do Ceará em atrair investimentos para o estado e, assim, se inserir no mercado nacional e internacional como um Estado que está se modernizando, não são esforços isolados na região nordeste e no Brasil. Efetivamente, depois da Segunda Guerra Mundial e, especialmente, nestas últimas décadas, tem ocorrido uma crescente tendência à internacionalização do investimento capitalista. Com a falência da estratégia de substituição de importações, largamente usada por países em desenvolvimento, uma nova estratégia econômica tem sido adotada extensivamente por regiões e países em desenvolvimento. Tal estratégia consiste na liberalização das economias nacionais em resposta à demanda de mercados internacionais, acentuando assim sua participação no processo de globalização da produção mundial. Várias regiões subdesenvolvidas têm adotado este modelo de industrialização voltado basicamente para a exportação de produtos manufaturados (Ong, 1991; Fernandez-Kelly e Sassen, 1995).
A teoria da nova divisão internacional do trabalho (NDIT) tem analisado as dinâmicas desta nova tendência de globalização da produção. Fröbel et alli. (1980) identificam três condições que têm favorecido a emergência da NIDT: primeiro, a existência de uma mão-de-obra extremamente barata e abundante nos países em desenvolvimento, que pode ser usada durante todo o ano e, depois de um breve período de treinamento, é capaz de alcançar níveis de produção semelhantes àquela dos países desenvolvidos. A força de trabalho nos países em desenvolvimento pode ser também facilmente substituída, depois que os trabalhadores se tornam exaustos e sobrecarregados, por novos trabalhadores, uma vez que existe uma oferta abundante de pessoas necessitando de qualquer tipo de trabalho.
A segunda pré-condição diz respeito à divisão do processo de produção, na qual as operações podem ser fragmentadas, aprendidas num curto período de tempo e executadas por uma mão-de-obra com um mínimo de qualificação possível. Finalmente, a terceira, que tem [fim da página 57] contribuído para a emergência da NDIT, refere-se às técnicas de transporte e comunicações, que têm se tornado muito avançadas possibilitando a produção de bens completamente ou parcialmente em qualquer lugar do mundo. De acordo com Fröbel et alli. (1980:13), estas pré-condições são importantes, porque:
A coincidência destas três pré-condições (que são complementadas por outras menos importantes) tem trazido à existência uma força de trabalho para um mercado global e um exército industrial de reserva mundial, juntamente com um mercado mundial de zonas de produção.
Segundo Fröbel et alli. (1980), a clássica divisão internacional do trabalho não é mais a característica dominante da economia global contemporânea. Ao contrário, uma nova tendência está substituindo-a por uma nova forma de divisão do trabalho. A emergência desta nova tendência denota-se pelo crescente número de países em desenvolvimento que tem se tornado locais de manufaturamento de bens, que são competitivos no mercado mundial. De fato, a internalização da economia mundial envolve uma reestruturação global do processo de produção.
De acordo com Ward (1990:1-2): a restruturação global refere-se à emergência da linha de montagem global, na qual pesquisa e gerenciamento são controlados pelos países centrais ou desenvolvidos, enquanto que o trabalho na linha de montagem é relegado às nações semi-periféricas que ocupam posições menos privilegiadas na economia global... Nos países em desenvolvimento, esta reestruturação é marcada pelo crescimento do setor de serviços e especialização em indústrias de exportação como eletrônica, confecção e farmacêutica, como uma estratégia de desenvolvimento. A reestruturação é também marcada pelo uso crescente de trabalhadores industriais no setor informal.
Frequentemente, países em desenvolvimento oferecem incentivos para as empresas multinacionais se instalarem em seus territórios, incluindo isenção de impostos, uma força de trabalho barata e controlável e o estabelecimento de zonas de processamento livres (ZPLs) (Bonacich et alli., 1994). Três tipos de indústrias têm sido consideradas perfeitamente adaptáveis para operar no contexto da industrialização para exportação: a eletrônica, a têxtil e a de confecção. Estas indústrias são muito competitivas, e o custo com a mão-de-obra forma uma grande proporção de seu orçamento (Tiano, 1990).
Ao contrário de outras estratégias de desenvolvimento, a reorganização de atividades industriais a nível mundial tem se caracterizado pela feminização da mão-de-obra. Com efeito, 75% da força de trabalho nas ZPLs é composta por mulheres (Fernandez-Kelly e Sassen, 1995). [fim da página 58] Na década de 80, resultados de novas pesquisa no Brasil e em outros países revelaram um contínuo acréscimo no ritmo de incorporação da mão-de-obra feminina no mercado formal de trabalho e nos tipos de trabalho por elas exercidos (Guimarães e Castro, 1990). Segundo Meneleu Neto (1996), as transformações no mundo do trabalho ocasionadas pelo processo de reestruturação produtiva, além de se caracterizarem por uma crescente taxa de desemprego, de desregulação do mercado de trabalho, do aumento do número de trabalhadores em tempo parcial e da queda na taxa de sindicalização, também se distinguem-se por um aumento na participação das mulheres na população economicamente ativa (PEA).
A crescente incorporação da mão-de-obra feminina tantos nos países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos faz parte de um mesmo processo. A reestruturação produtiva que direcionou as indústrias manufatureiras para os países em desenvolvimento criou mais oportunidades de emprego para as mulheres em economias periféricas, ao mesmo tempo que as economias pós-industriais passaram a necessitar de mão-de-obra feminina para trabalhos considerados menos valorativos e de baixos custos predominantes no setor de serviços (Fernandez-Kelly e Sassen, 1995).
Para Bonacich et alli. (1994), a indústria de confecção pode ser encontrada hoje em todo o mundo, pois é uma das primeiras indústrias a ser implantada num país ou região que está começando um programa de industrialização, principalmente voltado para a exportação. De fato, a indústria de confecção é pioneira na produção global de produtos manufaturados. Ela continua sendo uma atividade de trabalho intensivo que envolve tecnologia relativamente simples e baixo custo de implantação. Mesmo que avanços tecnológicos tenham tornado a indústria de confecção mais sofisticada, o indivíduo (geralmente uma mulher), trabalhando em uma máquina de costura, continua sendo considerado a unidade básica de produção.
A mão-de-obra usada na linha de montagem da indústria de confecção não necessita ter uma educação formal, tornando possível a entrada, nesta indústria, de trabalhadores recentemente proletarizados. A indústria de confecção também é capaz de combinar tecnologias simples e avançadas. Assim, as fases da produção, envolvendo modelagem, a engenharia e o corte de peças, as quais têm se tornado cada vez mais mecanizadas e computadorizadas, podem até ser realizadas em países industrializados. Por outro lado, tarefas, envolvendo tecnologias mais simples e trabalho intensivo, podem ser realizadas em regiões sub-desenvolvidas que começam a ser integradas no sistema global de produção [fim da página 59] pelo seu papel num importante aspecto do processo de produção que é a montagem do produto (Bonacich et alli. 1994).
As cooperativas de confecções do Maciço de Baturité têm sido um importante instrumento através do qual o capital tem organizado o trabalho da mulher no interior do Ceará. Elas exemplificam bem as estratégias do capital dentro deste contexto da reestruturação produtiva, aonde o emprego estável, protegido por leis que asseguram inúmeros benefícios, cada vez diminui mais, surgindo "novos" modelos de organização de trabalho reinventados pelo capital.
As próximas seções deste trabalho apresentarão vários aspectos relacionados com o estabelecimento e funcionamento das cooperativas de confecções no interior do Ceará e sua relação com a empresa que contrata sua produção total (Kao Lin), e também explicitarão como as cooperadas vêem seu papel como membros das cooperativas.
De acordo com a Kao Lin, empresa contratante da produção das cooperativas do Maciço de Baturité, as cooperativas de confecções são um "modelo pioneiro" de desenvolvimento industrial. Elas fazem parte de um projeto industrial que tem como objetivo se expandir através da região do Maciço de Baturité e outras áreas do Estado do Ceará.
O Governo do Ceará tem apoiado fortemente a implantação das cooperativas e das empresas de confecções no estado. Para tanto, tem oferecido muitos incentivos para que a Kao Lin (empresa de um grupo de investidores Taiwaneses) se estabeleça na região do Maciço de Baturité. De fato, representantes do governo do Estado do Ceará estão muito otimistas a respeito da expansão deste modelo de cooperativas de produção. De acordo com um representante da Secretaria de Indústria e Comércio (SIC), outros projetos estão sendo estudados para serem implantados noutras áreas do Estado, onde o "modelo pioneiro" de cooperativas de produção em grande escala será aplicado.
Uma das maiores vantagens deste projeto, do ponto de vista do governo, é a possibilidade da população rural encontrar empregos nas suas próprias comunidades. Além do mais, o aumento de oportunidades de emprego no interior tem como meta reduzir o problema da migração rural-urbana, um dilema sério para o Estado do Ceará(2). [fim da página 60]
Por outro lado, uma das maiores vantagens do modelo de cooperativa de produção para a indústria de confecção é relacionado com o custo de mão-de-obra. Um empregado da Kao Lin afirmou:
Outro representante da Kao Lin tentou minimizar a importância da questão do custo com a mão-de-obra e, procurando defender as políticas da empresa, afirmou não ter sido para economizar os custos da mão-de-obra a razão pela qual a empresa implantou este modelo no interior do Ceará. A criação de cooperativas de confecções no interior do Ceará foi escolhido, porque as cooperativas podem ser fragmentadas em várias unidades. Assim, elas podem operar em vários lugares, em pequenas comunidades, onde as pessoas não têm nenhuma chance de ter um trabalho industrial. Assegurou, ainda, que este sistema de cooperativas tem alcançado as cidades esquecidas do interior do Ceará, já que a empresa poderia facilmente ter aberto uma grande fábrica num município qualquer. Mas, se a empresa assim tivesse feito, a população rural não teria se beneficiado tanto como ela está se beneficiando agora. Pela sua ótica, a economia com os encargos sociais não foi a razão principal para a empresa usar a mão-de obra dos cooperados, mesmo porque que os custos com empregados e transporte para gerenciar as cooperativas, suprir material, fiscalizar a produção e dar assistência técnica são muito altos e consomem muito tempo. Assim, segundo o entrevistado, não valeria a pena a empresa ter todo esse trabalho. Contudo, a empresa se dispõe a fazer isto por causa da melhoria que essa oportunidade irá trazer para o povo do interior do Ceará (4).
Apesar de todos os problemas que a empresa de confecção afirma ter, de acordo com um representante da SIC, este modelo de cooperativas tem sido bastante estudado para aplicação em outras regiões do Estado, como na região do Baixo Jaguaribe e no município de Canindé. De acordo com o entrevistado, os próprios investidores de Taiwan já têm expandido este modelo a outros ramos de atividade, como, por [fim da página 61] exemplo, na fabricação de motores elétricos (5). De fato, a expansão do modelo "pioneiro" de cooperativas de produção de confecções não se restringe apenas ao estado do Ceará, mas também está se reproduzindo em outros estados do nordeste, tais como Maranhão, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.
Quando a implantação da fábrica de confecção na região do Maciço de Baturité foi concebida, as partes envolvidas (o governo do Estado do Ceará, a empresa e os prefeitos dos municípios da região) tinham conhecimento que a mão-de-obra disponível na área precisaria ser treinada, a fim de adquirir habilidade necessária para a montagem de jeans (especialmente calças jeans), confeccionados pela Kao Lin. Por isso, um centro de treinamento foi fundado para formar a mão-de-obra que seria posteriormente contratada pela empresa de confecções, através da criação de cooperativas de confecção na região.
3.1. O Recrutamento da Mão-de-Obra
A Fundação Centro Tecnológico de Formação de Confeccionistas (CTFC) foi fundada numa parceria com o Governo do Estado do Ceará, os prefeitos dos municípios do Maciço de Baturité e a Kao Lin. O investimento total foi de U$ 1.400.000,00. Deste total, U$ 800.000,00 foi doado pela Kao Lin. O restante do dinheiro foi doado pelo governo do Ceará e municípios da região do Maciço de Baturité (Arquivo Técnico do CTFC, s.d.).
O Governo do Estado e as prefeituras dos municípios do Maciço de Baturité contribuíram igualmente para a construção do prédio onde funciona o CTFC. A Kao Lin doou o equipamento necessário para o treinamento da mão-de-obra a ser utilizada nas cooperativas, dentre eles 170 máquinas de costura. O CTFC emprega uma média de 25 empregados, e é mantido exclusivamente por doações da Kao Lin (6).
O programa de treinamento é extremamente importante, uma vez que a grande maioria dos candidatos ao treinamento nunca trabalhou em indústria de confecção. Deste modo, antes da mão-de-obra ser qualificada para trabalhar nas cooperativas, ela é treinada no CTFC, que aceita inscrições periódicas para candidatos interessados em fazer os cursos. [fim da página 62]
O CTFC requer que os candidatos sejam alfabetizados, tenham de 18 a 35 anos e demonstrem habilidades manuais para lidar com as máquinas de costura. Homens e mulheres podem se inscrever. Apesar de existirem alguns homens fazendo os cursos e trabalhando nas cooperativas, a grande maioria dos membros das cooperativas é de mulheres.
O programa de treinamento do CTFC é de 240 horas e inclui um curso básico de costura industrial (120 horas), um curso sobre cooperativismo (16 horas), um curso sobre higiene, segurança e controle de qualidade (64 horas) e um período de treinamento de 40 horas. Depois que os treinandos terminam o curso com sucesso, eles esperam que o CTFC os incorporem em alguma unidade de cooperativa no município onde o treinando mora. Quando todas as unidades de um município estão funcionando, com os treinandos já incorporados nelas, o CTFC inicia o treinamento de candidatos de outros municípios, que são, geralmente, transportados para o CTFC em ônibus cedidos pelas prefeituras locais, onde outras unidades de cooperativas deverão ser abertas. Até junho de 1996, 1.427 pessoas receberam certificado de treinamento no CTFC, que tem capacidade de treinar 2.160 confeccionistas, por ano. Além do mais, a meta de expandir o modelo de cooperativas por toda a região do Maciço tem tido sucesso, haja vista que, até junho de 1996, foram abertas cooperativas em onze municípios do Maciço de Baturité (7).
3.2. O Contrato entre as Cooperativas de Confecções e a Kao Lin
A Kao Lin empregava cerca de 100 pessoas em junho de 1996 em sua fábrica em Acarape (8). A sua força de trabalho inclui várias categorias funcionais, tais como: engenheiros, contadores, supervisores e técnicos de máquinas de costura. A maioria daqueles que trabalham na montagem do jeans é membro das cooperativas e não empregados da empresa. São principalmente mulheres das cidadezinhas onde as cooperativas estão localizadas. Teoricamente, as cooperativas de confecções são entidades separadas da empresa de confecções do grupo taiwanes. Contudo, elas foram criadas com o único propósito de suprir a força de trabalho para a montadora de jeans e são, de fato, um apêndice da empresa. O contrato entre as cooperativas e a Kao Lin revela como o relacionamento entre as duas é estruturado.
No dia 1o de julho de 1994, um contrato foi assinado entre a empresa Kao Lin S/A e a Cooperativa de Produtores de Confecções Acarape [fim da página 63] LTDA, localizada em Acarape (este contrato depois foi reproduzido para as cooperativas de outros municípios do Maciço de Baturité). De acordo com o contrato, as cooperativas de confecções prometem produzir jeans para a Kao Lin, segundo as suas especificações técnicas, e vender toda a sua produção para esta empresa enquanto durar o contrato, que é de oito anos. O preço das peças produzidas pelas cooperativas é estipulado à parte, em uma planilha, e varia de acordo com a quantidade de peças produzidas pela cooperativa e o modelo do jeans.
A Kao Lin, por outro lado, se obriga a transferir e gerenciar a aplicação da tecnologia, que se faz necessária para a confecção das peças em jeans, e a controlar a qualidade das peças produzidas pela cooperativa, no período do contrato. Ela ainda se obriga a comprar toda a produção das cooperativas e avalizar, quando se fizer necessário, empréstimos bancários para financiamentos do maquinário e equipamentos exigidos na produção das peças em jeans. Além disso, a Kao Lin deve honrar seus compromissos com as cooperativas, no caso de paralização na produção, se esta tiver sido ocasionada por ela.
De fato, a Kao Lin foi avalista das cooperativas em empréstimo junto ao Banco do Nordeste do Brasil para a aquisição das máquinas de costura. É interessante notar que as máquinas de costura adquiridas pelas cooperativas são produzidas por outra empresa do mesmo grupo de investidores taiwaneses, Yamacom, que também tem negócios na área.
Até agosto de 1996, onze cooperativas foram abertas nos municípios do Maciço de Baturité (Acarape, Antonio Diogo, Araçoiaba, Barreira, Baturité, Cantagalo, Capistrano, Guaramiranga, Itapiúna, Pau Branco e Redenção). Na maioria dos municípios, as cooperativas são divididas em três unidades, empregando uma média de 35 trabalhadores em cada uma delas. Cada unidade tem um supervisor, empregado pela Kao Lin, encarregado de supervisionar a produção, de acordo com as normas da empresa. Para que as cooperativas funcionem adequadamente, outros empregados da Kao Lin também trabalham nos prédios das cooperativas, como, por exemplo, técnicos de máquinas de costura e pessoal do controle de qualidade e gerentes de produção, que são responsáveis pela administração das cooperativas numa determinada área. O principal papel destes gerentes é fazer com que a produção corra sem incidentes, que uma certa ordem de produção possa ser entregue no prazo requerido pela empresa. Eles também são mediadores dos conflitos entre a empresa e as cooperativas. [fim da página 64]
3.3. A Estrutura Interna, Ambiente e Disciplina de Trabalho e Controle
As cooperativas têm um estatuto que contém os objetivos das cooperativas, os direitos e obrigações de seus membros, regras de funcionamento da assembléia geral e conselhos administrativo e fiscal. Elas têm também um Conselho de Administração e outro Fiscal. O Conselho de Administração tem por finalidade decidir quaisquer assuntos econômicos e sociais de interesse das cooperativas e de seus membros. Ele é composto por sete membros eleitos pelos cooperados em assembléia geral, por um período de dois anos, sendo obrigatória a renovação de no mínimo um terço de seus componentes ao fim do mandato. Os membros do Conselho, escolhidos pelos cooperados, escolhem entre si o presidente, o secretário, o tesoureiro e o diretor financeiro.
O Conselho Fiscal é composto por três membros efetivos e três suplentes, que são eleitos anualmente em Assembléia Geral. Este Conselho tem como meta fiscalizar as atividades do Conselho de Administração. Ambos os Conselhos se reúnem no mínimo uma vez por mês, ou extraordinariamente, com todos os cooperados, para discutir algum problema das cooperativas.
As cooperativas de confecções do Maciço de Baturité possuem também um regimento interno com normas mais detalhadas sobre o funcionamento das cooperativas, tais como admissão e exclusão de cooperados, seus direitos e obrigações. O regimento interno ainda descreve as normas específicas dos departamentos financeiro, comercial e de produção das cooperativas; estabelece regras para as férias dos cooperados, remuneração e penalidades.
A primeira cooperativa de produtores de confecções do Maciço de Baturité começou a funcionar em junho de 1994, no município de Acarape. A única cooperativa aberta antes desta foi a do Lagamar, situada numa favela da cidade de Fortaleza e que foi fechada em 1995 sob alegações da Kao Lin de que ela ocasionava problemas no tocante à entrega e recebimento de materiais. No entanto, tal cooperativa sempre foi considerada "problemática" pela administração da Kao Lin. Fato confirmado por mim em entrevistas e conversas informais com empregados da Kao Lin, que comentavam sobre a "rebeldia" e "indisciplina" das costureiras do Lagamar, e seu envolvimento com partidos políticos, enquanto que as costureiras do interior são "ótimas de trabalhar, pois são bem passivas." Desde então, nenhuma outra cooperativa vinculada à Kao Lin foi aberta em Fortaleza, mas apenas na região do Maciço de Baturité onde sindicatos e partidos políticos sào praticamente ausentes do cotidiano das cooperativas. [fim da página 65]
As cooperativas de confecções do Maciço de Baturité funcionam em pequenos prédios construídos pelos municípios onde elas estão localizadas. Os prédios são basicamente um compartimento grande, suficiente para comportar aproximadamente 35 a 40 máquinas de costura, algumas mesas e uma escrivaninha. Além do compartimento principal, os prédios também têm uma pequena cozinha e banheiros. Os prédios que visitei durante a pesquisa de campo não têm nenhuma janela, apenas buracos no alto das paredes. Quando visitei as unidades das cooperativas, ainda era a época de chuva, quando a temperatura baixa um pouco. Contudo, o calor dentro dos prédios era insuportável, mesmo para as pessoas do lugar acostumadas com elevadas temperaturas. Nenhum dos prédios tinha ventiladores. Além disso, havia problemas de abastecimento de água e péssimas condições sanitárias.
Os membros das cooperativas de confecções trabalham no mínimo oito horas por dia, com um período de uma hora de descanso para o almoço, e um intervalo de 10 minutos pela manhã e à tarde. Na rotina diária das cooperativas de confecções, as entrevistadas afirmaram que apenas têm hora para chegar ao trabalho, mas não para sair. Elas nunca sabem com certeza a hora que irão para casa no final do dia. Muitas vezes fazem horas extras para terminar uma ordem de produção. Assim, às vezes, trabalham até sete ou oito horas da noite. Isto causa problemas, principalmente para as cooperadas casadas, que têm atividades domésticas para fazer todos os dias. Além disso, as cooperadas têm que trabalhar também aos sábados, quando é necessário terminar um número de peças de jeans para a empresa que contrata seus serviços. Apesar de não serem obrigadas a trabalhar aos sábados, a supervisão espera que o façam. Entretanto, sentem-se desencorajadas em ter que trabalhar nos finais de semana, pois precisam organizar suas atividades domésticas, como lavar roupa, limpar a casa, comprar comida, etc.
3.4. As Cooperativas de Confecções e a Legislação Cooperativista
Uma vez que as cooperativas não foram criadas pelos próprios cooperados, mas como parte de um grande projeto de industrialização do interior do Ceará, seus "associados" não são seus verdadeiros donos. Ao contrário, foram chamados a participar de uma organização, que já estava estruturada para servir aos propósitos de uma empresa capitalista. Por conta disso, os membros das cooperativas de confecções do Maciço de Baturité não são bem informados de todos os detalhes do contrato entre as cooperativas e a Kao Lin, nem tampouco entendem muitas vezes as ligações entre ambas. Apesar dos cooperados terem tido [fim da página 66] aulas sobre cooperativismo (apenas 16 em um curso de 240 horas) e terem sido informados que a cooperativa lhes pertence, eles se sentem muito confusos e frustrados com todo o esquema montado nas cooperativas.
A legislação brasileira garante vários direitos aos trabalhadores assalariados. Apesar de o salário mínimo ser muito baixo no Brasil (aproximadamente U$ 100.00), os trabalhadores gozam de vários benefícios garantidos por lei. Por exemplo, salário mínimo, gozo de férias anuais remuneradas, décimo terceiro salário, aposentadoria, seguro-desemprego, FGTS, dentre outros (Cons-tituição do Brasil, Capítulo II, art. 7). Tal legislação tem também contemplado vários direitos às mulheres trabalhadoras. De acordo com as leis brasileiras, as mulheres grávidas não podem ser despedidas do emprego e têm licença remunerada de 120 dias, a fim de usufruírem do descanso necessário antes e depois do parto (Constituição Brasileira, Capítulo II, art.7; CLT, art. 392).
As cooperativas de confecções do Maciço de Baturité empregam uma mão-de-obra que é predominantemente feminina, na faixa etária entre 18 e 35 anos, os anos reprodutivos da mulher. Contudo, a empresa que terceiriza o trabalho das mulheres, através das cooperativas, não precisa se preocupar com estes custos. De acordo com a legislação brasileira, não existe vínculo empregatício entre a cooperativa e seus membros. Assim, os trabalhadores de uma cooperativa são seus membros e não seus empregados. Fundamentadas neste dispositivo legal, as cooperativas do Maciço de Baturité apenas pagam uma remuneração baseada na produção de peças de jeans, sem nenhum outro benefício previsto na lei brasileira, para os trabalhadores em geral. Da mesma maneira, a Kao Lin não tem nenhuma obrigação trabalhista com a mão-de-obra que ela terceiriza através das cooperativas. Ela apenas tem um contrato com as cooperativas para a produção de calças jeans.
As cooperativas de confecções, por sua vez, não podem prover nenhum benefício aos seus membros, pois as mesmas não possuem nenhum recurso financeiro para tanto. Como consequência, os membros das cooperativas não têm suporte legal para exigir qualquer direito relacionado com benefícios trabalhistas, tampouco podem esperar que as cooperativas lhes proporcionem benefícios equivalentes àqueles que teriam se fossem seus empregados. Por exemplo: perguntei a uma cooperada grávida o que achava que iria acontecer com ela quando tivesse o seu filho. Respondeu que, se tivesse parto normal, usufruiria 15 dias de repouso, e só receberia alguma remuneração pelos dias de descanso, se as cooperadas votassem em reunião, concordando com o seu pagamento. [fim da página 67]
Um representante da fábrica de confecção Kao Lin assegurou que as cooperativas têm um "fundo de reserva" (administrado pela Kao Lin) em que os lucros devem ser depositados para serem distribuídos entre os membros da cooperativa, no final de cada ano. Com o dinheiro do fundo, as cooperativas poderiam, então, decidir o que fazer, como, por exemplo, fundar uma creche ou simplesmente dividir o dinheiro entre seus membros. No entanto, o entrevistado afirmou que em 1994 não foi possível fazer nenhum depósito no referido fundo, pois as cooperativas não tiveram nenhuma sobra ou lucro (9). A previsão do entrevistado também não se concretizou para o ano de 1995, quando a própria empresa Kao Lin passou por uma série de dificuldades internas, que prejudicaram o funcionamento das cooperativas.
De fato, de acordo com a lei 5.764, art. 28, alínea I, as cooperativas são obrigadas a constituir o fundo de reserva, o qual é formado de no mínimo 10% das sobras líquidas do exercício. Interessante é que nenhum dos presidentes ou supervisores das cooperativas sabia sequer que este fundo existia. Alguns entrevistados da Kao Lin tinham vagamente conhecimento acerca do fundo de reserva, mas não sabiam nenhum detalhe sobre o mesmo.
O fato de muitos trabalhadores brasileiros trabalharem no setor informal e, portanto, não gozarem de nenhum benefício previsto em lei, faz com que a Carteira de Trabalho tenha muita importância para eles. Os membros das cooperativas do Maciço de Baturité se sentem muito frustrados pelo fato de não terem a "carteira assinada", pois tal documento representa para eles segurança. Assim, com a carteira assinada, os trabalhadores não se sentem como se estivessem trabalhando em algum negócio clandestino ou que são trabalhadores marginais. Ter o contrato de trabalho assinado os ajuda a se sentirem "verdadeiros trabalhadores". Portanto, a falta da carteira assinada faz com que se sintam traídos. Por outro lado, algumas entrevistadas se sentem completamente desencorajadas e apáticas com o fato de que não terem direitos como empregadas, por causa da forma como as cooperativas foram estabelecidas. Algumas entrevistadas expressaram o que sentem com relação à questão:
"Eu acho que é horrível. Eu acho que todas nós devía[mos] ter a nossa carteira assinada. Têm muitas cooperadas aqui que trabalham há mais de um ano e ninguém fala em férias. Eu acho que se elas tivessem a carteira assinada, elas teriam alguns direitos. Sem a carteira assinada, ninguém fala em décimo terceiro em dezembro, ou se uma mulher ficar grávida, ela pode até nem receber dinheiro, quando ela tiver em casa com o nenen". (Eliana, solteira, 21)
"Quando eles abriram inscrição prá gente trabalhar na cooperativa, eles disseram prá gente: -Quem quiser trabalhar venha, mas a gente não tem carteira assinada. Por isso, eu não falo mais nesse assunto. Eu já sabia que ia ser desse jeito". (Ana Claúdia, solteira, 19)
"Eu não gosto da idéia que a gente não tem carteira assinada, mas a gente começou a trabalhar aqui faz 11 meses e ninguém saiu da cooperativa. Mas muitos trabalhadores começaram a trabalhar na Kao Lin de carteira assinada e já foram demitidos. Por isso, eu me sinto mais segura na cooperativa. Se eu fizer meu trabalho direito, ninguém vai me botar pra fora daqui". (Maria do Amparo, casada, 27)
A falta de entendimento, por parte de muitas cooperadas, a respeito de seu status como membros das cooperativas, ao invés de serem empregadas delas, faz com que os representantes da Kao Lin estejam sempre explicando esta questão em reuniões com os membros das cooperativas.
"...quando a gente fala sobre os nossos direitos, o pessoal da Kao Lin diz que isto não é uma empresa particular, por isso nós não temos nenhum direito" [trabalhista]. (Ana Maria, solteira, 19)
Uma das reclamações mais frequentes das cooperadas se refere às normas de frequência ao trabalho, que consideram muito rigorosas. Por exemplo, se o cooperado faltar ao trabalho por razões de saúde, ele deve ir ao médico e receber uma licença, de acordo com o problema diagnosticado pelo médico. As cooperativas têm instruções da Kao Lin para descontar a metade de um dia de trabalho, para um cooperado que recebeu uma licença médica de um dia; um dia de trabalho, para aquele que obteve licença médica para dois dias e assim por diante. As cooperadas entrevistadas sentem que essa norma é muito injusta e nega-lhes o direito legítimo de repousar, quando estiverem doentes. Além disso, tal medida aparece claramente como uma punição, que tem por objetivo [fim da página 69] principal intimidar os trabalhadores e fazê-los vir trabalhar mesmo doentes. Algumas entrevistadas relataram como os descontos são feitos:
"Se um cooperado faltar três dias de trabalho [por mês], ele ou ela perde duas semanas de trabalho [remuneração]. Agora a gente tem reuniões para decidir se o dinheiro deve ser descontado ou não...As decisões mais importantes eles [Kao Lin] é que fazem, mas as decisões dos descontos das faltas somos nós que tomamos". (Eliana, solteira, 21)
De acordo com um gerente da Kao Lin entrevistado, falta é um problema sério nas cooperativas. Por isso, a Kao Lin sugeriu alguns critérios para que as cooperativas possam lidar com os seus membros faltosos. Ei-los (na íntegra):
1a Falta - Perde um dia de remuneração mais multa de 20%.
2a Falta - Perde dois dias de remuneração mais multa de 30%.
3a Falta - Perde três dias de remuneração mais parcela fixa, ficando sujeito a exclusão".
- Os descontos por faltas e suas respectivas multas serão rateados pelos cooperados não faltosos, no final do mês" (10).
Assim, se numa reunião os cooperados decidirem descontar os dias de trabalho do cooperado faltoso naquele mês, o dinheiro descontado é dividido igualmente entre os cooperados. Esta medida também foi sugerida pela Kao Lin, e causa grande controvérsia entre os cooperados. Os que não faltam durante todo o mês acham que têm o direito de receber o dinheiro extra do rateio dos cooperados faltosos, já que eles tiveram que trabalhar extra para terminar o trabalho de quem faltou. Outros cooperados sentem que, se um cooperado está realmente doente ou teve problemas em casa e não pôde vir trabalhar, o dinheiro não deveria ser dividido entre eles, mas deixado para a pessoa receber no final do mês. Uma conseqüência desta controvérsia é que as reuniões para decidir o que fazer com a remuneração dos cooperados faltosos, ao invés [fim da página 70] de uni-los, divide-os. Estas reuniões servem basicamente para colocar um cooperado contra o outro, causando ressentimento entre eles, não importa qual seja o resultado das reuniões.
Outra área de conflito com relação aos benefícios trabalhistas é relacionado com o período de férias anuais. Até agosto de 1995, nenhum membro das cooperativas, nos três minicípios que eu visitei para esta pesquisa, havia tirado férias. Muitos cooperados já estavam trabalhando há bem mais de um ano e não se falava em férias nas cooperativas, tampouco eles sabiam quanto tempo de férias iam poder tirar. De acordo com o regimento interno das cooeperativas, art. 41: " é facultado a todo cooperado, anualmente, o gozo de um período de descanso, devendo a compensação financeira pelos dias parados ser rateada entre todos os cooperados". O parágrafo primeiro do mesmo artigo estipula que tal período de descanso será de 15 dias corridos.
Ainda de acordo com o art. 41, parágrafo 1º do regimento interno, o cálculo da remuneração de cada membro da cooperativa, durante o período de descanso, será: "a remuneração do cooperado para efeito deste artigo será de 70% (setenta pontos percentuais) da média de remuneração dos cooperados em produção dos três (03) meses imediatamente anteriores ao mês que estiver em gozo de descanso e diretamente proporcional ao número de dias do período de descanso".
Assim, o regimento interno das cooperativas está se contrapondo aos direitos dos trabalhadores assegurados pela Constituição. Todavia, não é considerado ilegal porque os membros das cooperativas não são seus empregados e, portanto, não são protegidos pela legislação, como são os trabalhadores assalariados em empresas públicas e privadas.
Os membros das cooperativas de confecções começaram a receber, em junho de 1994, R$ 35,00 por mês, uma cesta básica e R$ 20,00 em vale refeição, no valor de um real por dia. Em fevereiro de 1995, eles começaram a ganhar em média R$ 75,00 por mês, o equivalente ao salário mínimo da época, no Brasil. A Kao Lin parou de entregar a cesta básica e os vales-refeição e passou a pagar aos cooperados quinzenalmente. Em março e abril de 1995, os membros de algumas cooperativas estavam recebendo cerca de R$ 130,00 mensais, o que era quase o dobro do dinheiro que eles estavam recebendo em fevereiro. Este fato foi devido a um acréscimo substancial na produção, no início do ano de 1995. Contudo, com o desaquecimento da economia brasileira no decorrer do ano de 1995, as cooperativas diminuiram o ritmo de trabalho e a renda de seus membros baixou pela metade. Eles têm uma renda fixa de R$ 40,00 por mês, independentemente de sua produção. Membros de algumas [fim da página 71] cooperativas estavam recebendo R$ 35,00 por duas semanas de trabalho, em julho de 1995. Um ano depois, em 1996, as cooperadas ainda reclamavam dos problemas com abastecimento de peças. Os membros de algumas unidades da cooperativa de Barreira estavam recebendo de R$ 55,00 a R$ 80,00, por mês.
No contrato que a Kao Lin tem com as cooperativas, não existe nenhum dispositivo que proteja a renda dos membros das cooperativas, no caso de falta de peças para montar da Kao Lin. Os cooperados têm uma renda fixa de R$ 40,00 mensais, mas, quando falta trabalho várias vezes num determinado mês, eles simplesmente recebem menos porque produzem menos.
As cooperativas de confecções do Maciço de Baturité, que podemos classificar como sendo de produção ou trabalho, diferem da ideologia do movimento cooperativista do século passado, quando este tentou desafiar o poder do capital. As cooperativas de confecções, objeto de análise deste estudo, subestimam o propósito ideológico de autonomia e liberdade dos trabalhadores frente ao capital. De fato, as cooperativas de confecções são membros de uma empresa capitalista que usa o seu estabelecimento, numa região periférica, como maneira de aumentar seus lucros, usando uma força de trabalho que não é legalmente ligada a ela, numa relação empregado-empregador.
De acordo com Olson (1993), cooperativas podem parecer na superfície semelhantes a outras organizações capitalistas. Entretanto, o que diferencia as cooperativas de outras organizações mercantis é o fato de que os membros das cooperativas possuem os meios de produção e têm poder de decidir quando e que tipo de trabalho eles irão executar, e como os lucros e as perdas serão distribuídos entre os membros. Torna-se claro que, nas cooperativas em discussão, os cooperados não possuem os mecanismos básicos que lhes garantam o controle sobre o processo de produção e o domínio dos meios de produção.
Singelmann (1978), que estudou as coletividades rurais de Ejido, no México, identificou dois tipos principais de coletividades: coletividades cooperativas e coletividades controladas. Sua distinção entre os dois tipos pode ser usada como uma analogia sobre o que é uma verdadeira cooperativa. Coletividades cooperativas supostamente controlam a distribuição e utilização de sua terra entre os seus membros. O trabalho e o [fim da página 72] capital são gerados pela coletividade, sem a interferência de instituições e indivíduos alheios a ela. A gerência e a administração da produção são realizadas pelos seus membros e os produtos são vendidos sem intermediários; as coletividades têm suficiente poder político para controlar negociações a respeito de crédito e serviços sociais sem serem afetadas por mudanças politicas na sociedade mexicana.
Coletividades controladas têm, por sua vez, características diferentes. Apesar da terra ser de propriedade coletiva, a utilização de outros recursos, como, por exemplo, trabalho e capital, pode ser controlada por agentes de fora da coletividade. Quando isto ocorre,
Neste estudo, as cooperativas de confecções do Maciço de Baturité se parecem com as "coletividades controladas" de Ejido, Mexico, já que trabalho, capital, administração, gerência e venda de produtos são controlados por forças externas às cooperativas. Os cooperados não têm muito poder de barganha, uma vez que o constante treinamento dos confeccionistas e a disponibilidade de uma mão-de-obra desempregada no interior os tornam facilmente substituíveis se decidirem desafiar a estrutura da cooperativa ou simplesmente deixarem de ser seu membro.
Frequentemente, cooperativas são criadas em tempos de retração econômica como estratégia de governos ou trabalhadores para lidar com problemas de desemprego. Um fenômeno inverso está ocorrendo com o estabelecimento das cooperativas de confecções no interior do Ceará, uma vez que elas estão sendo criadas num período de expansão industrial no Estado. Assim, torna-se óbvio que o objetivo da implantação das cooperativas foi facilitar a extração da mais-valia da força de trabalho localizada numa área rural de uma região periférica, num país considerado semiperiférico. Portanto, o modelo de desenvolvimento dependente brasileiro reproduz-se através da industrialização do interior cearense.
Por outro lado, a dimensão das relações de gênero não deve ser subestimada no estabelecimento das cooperativas de confecções do Maciço de Baturité. A mulher da zona rural é uma força de trabalho vulnerável, devido à falta de oportunidades de trabalho feminino no interior e [fim da página 73] ao seu status inferior numa sociedade com forte tradição patriarcal. Apesar de sua "docilidade" e "passividade" serem contestáveis, a mulher da zona rural cearense tende a aceitar piores condições de trabalho do que as mulheres das zonas urbanas e são facilmente descartáveis e substituíveis.
O governo brasileiro, especialmente o do Estado do Ceará, tem tido um importante papel na concessão de incentivos e outras condições para a penetração do capital privado no Ceará. A empresa de confecção que opera no Maciço de Baturité (Kao Lin) tem se beneficiado largamente do pacote de incentivos fiscais, de empréstimos, e de uma força de trabalho disponível e barata. O capital local também tem se beneficiado com o processo de compra do produto final da empresa de confecção, por um preço atrativo. Os maiores compradores dos produtos vendidos pela Kao Lin são os mercados da região Centro-Sul, o que caracteriza mais uma vez as disparidades regionais no Brazil.
Neste sentido, as cooperativas de confecções do Maciço de Baturité têm sido criadas com o objetivo principal de garantir uma mão-de-obra de baixo custo para a empresa de confecção por parte de um grupo de investidores do Taiwan. Elas exemplificam bem as dinâmicas que estão ocorrendo no mercado mundial decorrentes da reestruturação produtiva e crescente globalização. Através do sistema de cooperativas criado na região do Maciço de Baturité, o setor de confecções inova velhas estratégias como a subcontratação, agora chamada terceirização, garantindo, num mercado extremamente competitivo, preços atrativos para seus produtos, o que é possível pelo baixo custo com a mão-de-obra das "cooperadas".
Devido à tradicional falta de uma política de desenvolvimento que beneficie a população rural cearense, gerando empregos e renda, o desemprego no interior, especialmente para a mulher, é um dos principais problemas a ser considerado na elaboração de políticas públicas. Portanto, um aspecto positivo da implantação das cooperativas de confecções no interior do Ceará tem sido o acréscimo de renda para os membros das cooperativas. Porém, o estabelecimento de tais cooperativas tem negado aos seus membros os direitos básicos dos demais trabalhadores assalariados brasileiros, uma vez que não gozam dos benefícios trabalhistas previstos por lei, como membros das cooperativas, as quais são regidas pelas lei n. 5.764, de 16.12.1971. Por outro lado, tais "cooperativas" contradizem os princípios cooperativistas, como os da democracia e autonomia, constituindo-se, na realidade, em pseudo-cooperativas. Assim, os dados empíricos levantados nesta pesquisa revelaram a forma como as trabalhadoras cearenses, especificamente as costureiras do Maciço [fim da página 74] de Baturité, foram inseridas na "modernidade" proposta pelas políticas públicas do governo do estado do Ceará. Tal forma de inserção, ao invés de progresso, tem ocasionado um retrocesso nas relações de trabalho, perpetuando neste sentido um modelo de desenvolvimento concentrador e excludente, que, mesmo incorporando ao trabalho industrial a força de trabalho feminina rural, a insere de uma forma subordinada e exploradora.
BONACICH, Edna et alli. (1994) The Global Production: The Apparel Industry in the Pacific Rim. Philadelphia: Temple University Press.
Constituição da República Federativa do Brasil. (1989) São Paulo: Editora Saraiva.
Consolidação das Leis do Trabalho. (1991) São Paulo: Rideel.
FERNÁNDEZ-KELLY e SASSEN, Saskia. (1985) "Recasting Women in the Global Economy: Internationalization and Changing Definitions of Gender." In: BOSE, Christine E. & ACOSTA-BELÉN, Edna (eds.). Women in the Latin American Development Process. Philadelphia: Temple University Press, p. 99-124.
FRÖBEL, Folker, HEINRICHS, Jürgen, e KREYE, Otto. (1980) The New International Division of Labour- Structural Unemployment in Industrialised Countries and Industrialisation in Developing Countries. Cambridge: Cambridge University Press.
GUIMARÃES, Iracema and Nadya Castro. (1990) "Divisão Sexual do Trabalho, Produção e Reprodução. "Cadernos de Estudos Sociais. 6: 101-130.
LEI 5.764, de 16.12.71. 3. (1993) ed. OCB.
MENELEU Neto, José. "Desemprego e luta de classes: as novas determinidades do conceito marxista de exército de reserva." In: TEIXEIRA, Francisco José eOLIVEIRA, Manfredo Araújo de (orgs.). Neoliberalismo e reestruturação Produtiva- as novas determinações do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez e Uece. 1996, p.75-108.
OLIVEIRA Jr, João Alencar. (1992) Análise do Processo de Planejamento e das Políticas de Transportes no Estado do Ceará- Impactos sobre o Desenvolvimento Regional. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
OLSON, Jan Marie.( 1993) Skills of survival: a study of the Guatemalan cooperative system and its impact on social and economic power of rural women. Dissertação de Mestrado. Universidade de Calgary. Calgary.
ONG, Aihwa. (1991) "The Gender and Labor Politics of Postmodernity." Annual Review of Anthropology. 20: 279-309.
O Povo. "Fortaleza "Incha" e Problemas Ampliam com Êxodo Rural." p. 24a-25a, 16.07.95.
SINGELMANN, Peter. (1978) Rural collectivization and dependent capitalism: the Mexican collective ejido. Latin American Perspectives, (3): 38-61.
1) A autora é doutora em sociologia pela "University of Tennessee, Knoxville" e professora bolsista do CNPq no DCSS-UFCE.
2) Entrevista com um representante da Secretaria de Indústria e Comércio do Estado do Ceará (SIC).
3) Depoimento de um dos empregados da Kao Lin, por ocasião de uma entrevista com a autora.
4) Afirmativa baseada em depoimento de um dos diretores da Kao Lin, por ocasião de uma entrevista com a autora.
5) Refere-se ao mesmo entrevistado do item 1.
6) Entrevista com representante do CTFC.
7) Informação concedida pelo mesmo entrevistado do item 5 em entrevista posterior (junho de 1996).
8) Informação baseada em entrevista com empregado da Kao Lin.
9) Refere-se ao mesmo entrevistado do ítem 2.
10) "Critérios para faltas" foram reproduzidos na íntegra de uma pasta com vários documentos referentes as atividades regulares das cooperativas, tais como: lista de chamadas, controle de produção, etc.
COOPERATIVISMO E DESENVOLVIMENTO: Caso das Cooperativas de Confecções do Maciço de Baturité, Ceará
Maria Vilma Coelho Moreira(1)
1. Introdução
2. O estado do Ceará e a globalização da produção
3. As cooperativas de confecções do maciço de Baturité.
"A vantagem das cooperativas é a redução dos custos, visto que a empresa não precisa pagar encargos sociais aos cooperados. Na indústria de confecção, os custos com os encargos sociais são muito altos e aumentam substancialmente o preço do produto. Com as cooperativas é diferente. Nossos custos são muito baixos"
(3).
"Eu me sinto muito insegura. Eu queria que a gente tivesse nossa carteira assinada. Se acontecer um acidente aqui, a cooperada vai para casa. Se a cooperativa resolver pagar, tudo bem. Mas a gente não tem certeza de nada, mas na lei a gente tem direito de receber o nosso dinheiro, se a gente ficar doente. Isto eu tenho certeza". (Anete, casada, 24) [fim da página 68]
"Em uma reunião eles disseram para a gente que eles não assinam a nossa carteira porque esta cooperativa é da gente. Nós estamos pagando as máquinas de costura agora, mas no futuro este negócio será nosso". (Eliana, solteira, 21)
"A gente se reúne e decide se a gente vai ou não descontar o dia daquela pessoa que não veio trabalhar. Por exemplo, se a pessoa foi para o médico e o médico lhe dá uma licença, aqui uma licença de um dia só vale meio, de dois dias só vale um. Eu acho isso errado, mas foi a Kao Lin que fez essa regra. Então, a gente decide sobre essas coisas...". (Rosângela, solteira, 21)
"Critérios para faltas:
4. Considerações finais
"os camponese efetivamente "vendem" sua força de trabalho para a coletividade; a qual é apenas nominalmente sua. A produção e marketing são gerenciadas por administradores contratados, os quais não respondem aos membros da coletividade, mas às instituições financeiras e agências governamentais. O empreendimento é completamente dependente de apoio institucional externo que os membros têm que aceitar em condições impostas e não negociáveis". (Singelmann 1978:39)
Referências Bibliográficas
Arquivo Técnico do C.T.F.C. s.d.
Notas