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Política e Trabalho 14 - Setembro / 1998 - pp. 35-47


FAMÍLIAS MIGRANTES:
REORDENAMENTO E ARRANJO URBANO (1)

Laís M. Cardia (2)


INTRODUÇÃO

Este trabalho resulta de pesquisa realizada com famílias migrantes instaladas no bairro Cidade Nova, periferia urbana de Rio Branco, Estado do Acre. Procura entender como se constrói a especificidade de um segmento de ex-trabalhadores rurais inseridos em uma estrutura econômica e social urbana, e em que medida o movimento migratório alterou os arranjos familiares, forjando uma dinâmica que revela sua verdadeira dimensão no mundo capitalista.

Nas décadas de 70 e 80 o Acre vive um processo de reordenamento da sua economia, até então baseada somente no extrativismo. Os incentivos fiscais e o preço das terras foram fatores determinantes para a "invasão", em ritmo acelerado, de médios e grandes empresários da região Centro-Sul. Esses empresários emprestam à região novas características econômicas, desde que começam a transformar seringais em empresas agropecuárias. Os seringueiros, tradicionais moradores e trabalhadores dos seringais, se viram obrigados a "negociar" suas terras devido a pressão que foi sendo exercida sobre eles. Sem o seu meio fundamental de sobrevivência, passam a se dirigir para os Projetos de Assentamentos Dirigidos - PAD's - criados, inicialmente, para atender a essa população e, também, para a periferia de outros municípios do Estado, além de Rio Branco.

Ao mesmo tempo, vindos da região Centro-Sul, começam a chegar colonos, muitos deles expulsos pela construção da Hidrelétrica de Itaipú, atraídos por propagandas governamentais que "vendiam" o Acre como sendo o local de fácil acesso à terra de excelente qualidade para o cultivo. Parte desse contingente foi assentado nos PAD's e outra ficou à mercê da própria sorte deambulando pela cidade até que fosse "resolvido" seu destino.

Os seringueiros abandonaram os projetos por não terem se adaptado ao novo estilo de vida, representado por uma nova ordem [fim da página 35] econômica, social e cultural. Os colonos vindos do Centro-Sul, de uma realidade sócio-econômica ainda mais diferenciada, aos poucos foram saindo, também, pela falta de infra-estrutura e pelas péssimas condições de vida. Esses migrantes encontraram um mundo desconhecido para eles e foram obrigados a "fazer de conta" que nele estavam inseridos. Esse processo gerou, para esses dois segmentos populacionais, um duplo impacto. Primeiro, com a transferência para os PAD's e depois quando foram obrigados a se deslocar para o centro urbano, contribuindo para acelerar a periferização da cidade e expondo os níveis de pobreza e exclusão social e política (3) a que foram submetidos.

Naquele momento Rio Branco não possuía uma estrutura urbana que atendesse às necessidades mais urgentes dessa população. Questões como moradia, emprego, saúde e educação, básicas para qualquer grupo social, ali eram precárias e não atendiam a uma realidade que começava a se delinear. O movimento migratório responsável pelo gradativo esvaziamento do meio rural e o conseqüente engrossamento da população urbana em Rio Branco, deve ser entendido como parte do processo geral das migrações campo-cidade que têm caracterizado a vida nacional. Como tal, vincula-se a fatores de ampliação da estrutura capitalista rumo à Amazônia.

Esse processo determinou o surgimento de uma expressiva mão-de-obra desqualificada (4) para o mercado de trabalho urbano que só encontra ocupação em atividades de baixa renda e pouco prestígio. Determinou, ainda, a reordenação de valores e papéis sociais no interior desses grupos e, conseqüentemente, novos arranjos que lhes permitissem (re)definir a sua identidade - entendida aqui como a referência que permite aos indivíduos um apoio estável no mundo social - numa luta diária para que pudessem se integrar à realidade que se impunha. Essas estratégias referem-se a uma permanente busca para alcançar meios de sobreviver a um cotidiano que tem que estar, sempre, sendo reinventado:

"Eu agora moro na cidade, mas eu não me sinto como da cidade. Ela é estranha prá mim, eu não sei nada desse lugar e eu sei que eu preciso saber, senão como é que eu vou dizer: eu sou da cidade? eu sou da colônia?. Eu não sei ... mas tem uma coisa que eu sei que eu preciso que é arrumar o meu lugar..."
(Eurípedes, ex-colono).

[fim da página 36]

Assim, cumpre apreender aqui o movimento dentro das características específicas com que se realizou nas décadas de 70/80, ou seja, da expulsão dos seringueiros e colonos ligados à estrutura econômica do campo, definindo os não-lugares desses segmentos populacionais. Embora essas décadas sejam significativas de um processo intenso de esvaziamento do campo, na atualidade esses grupos continuam tendo suas vidas marcadas pela força do capital. O embate entre o capital e o trabalho continua, assim como continuam a expropriação dos seringueiros e colonos e a substituição do homem pelo boi e pelas máquinas.

IDEALIZANDO A CIDADE

A falta de preparo e de qualificação para o exercício de funções mais complexas, a falta de domínio dos códigos culturais urbanos, além da falta de recursos que caracterizam a entrada de migrantes pobres no meio urbano, impedem o processo de mobilidade ocupacional e frustram suas aspirações de ascensão social. O fato dos migrantes perceberem as mudanças e suas condições reais diante delas e o significado da migração, são fatores importantes na compreensão da nova situação.

Os depoimentos sintetizam, com certa fidelidade, os argumentos de parte desse contingente e justificam os sentimentos que tem em relação à vida urbana. Em oposição à condição sócio-econômica, os migrantes têm como referência a vida anterior e, quando a avaliam, o que pesa ainda são as idealizadas vantagens da cidade. Apesar de todas as dificuldades, algumas famílias ainda alimentam a ilusão de que ela oferece mais chances de estudar e trabalhar. Para o homem a possibilidade de trabalhar na cidade apresenta-se como algo bastante indefinido. Isso faz com que ele já ingresse na vida urbana disposto a vender sua força de trabalho por qualquer preço, realizando qualquer serviço:

"... aqui na cidade tudo sempre foi muito dificultoso e assim mesmo meus filhos estão na escola e dois já trabalham vendendo coisas que a mulher faz, né. No seringal a escola quando tem é muito longe e não dava certo. Eu sei que é difícil prá eles ser alguém na vida, mas pelo menos tem mais meio de ser alguém na vida. Eu faço o que posso, o que aparece e lá um dia qualquer aparece qualquer coisa prá fazer. Aí eu faço. Sempre foi assim..."
(Antonio José, ex-seringueiro).

[fim da página 37]

A desorganização familiar (5) sofrida e o choque cultural verificado pela mudança de habitat, fazem com que o ajuste social e psicológico desses grupos se torne ainda mais difícil. O estar na cidade determina novas condições de vida, gerando uma situação de mudança de hábitos e, conseqüentemente, agravando sua condição de excluído social e político e ampliando o grau de frustração e conflitos familiares pela não-possibilidade de aquisição, por exemplo, de equipamentos materiais urbanos, que só se tornam viáveis através da compra, do dinheiro.

As mudanças ocorridas nas estruturas familiares desse contingente populacional são, então, entendidas como resultantes da pressão exercida pela sociedade global que desarrumou os seus referenciais tradicionais e indicou a direção das transformações que se processaram e das possibilidades que terão para se ajustar à uma nova ordem social.

Um forte sentimento da diferença entre os naturais da cidade e os migrantes permeia o cotidiano desse segmento e indica, quase sempre, um domínio consciente do processo de mudança pelo qual passaram e ainda passam. Essa mudança, representada por eles como "vir prá cá" (cidade), embora forçada, significou o acesso a bens de consumo, conforto, lazer, educação e saúde. Contudo, estas imagens que tinham da cidade, como sendo uma referência melhor do que a que tinham no campo, são desfeitas pelo impacto da chegada e pelas contradições encontradas pelo não atendimento das expectativas e pelas frustrações daí decorrentes. Rapidamente perceberam que

"... é muito diferente do que a gente pensava".

"... isso aqui não é do jeito que eu pensei que era. É muito pior. Eu estava doido quando vim prá cá ...".

A mudança significou, além das transformações nos códigos sócio-culturais e aquelas de ordem econômica, também a transposição de um espaço físico para outro, o que acarreta o rompimento de laços sociais, além dos desgastes psicológicos gerados pelas próprias exigências de adaptação ao novo meio social. Essa adaptação inclui a aquisição de nova identidade - novas formas de sociabilidade intra e extra familiar e a reformulação dos laços interpessoais. A referência passa a ser o antes e o depois, e a mudança, no seu sentido amplo, se caracteriza pela consciência de uma vida nova, diferente. Hoje eles falam da "rua do seu Manoel", que chegou primeiro ao local. É o início da organização físico-espacial do bairro, dando lugar à expansão da periferização da cidade e [fim da página 38] com ela o marco a partir do qual vão tentar recompor suas identidades fundadas nessa nova etapa de vida. O próprio nome dado ao bairro - Cidade Nova - foi expressivo por denotar a representação desse novo recomeço.

Os parentes e conhecidos que ali se instalaram tiveram um papel de grande importância porque, de alguma forma, serviram como suporte no acolhimento aos recém-chegados. Embora não tivessem o domínio completo do ambiente urbano, puderam minimizar o impacto vivenciado pelos novatos na reordenação do novo tempo que se abria em suas experiências e, nesse sentido, foram investidos de uma certa autoridade e respeito.

A vida nos seringais e colônias faz parte de um passado que permanece na memória desses migrantes idealizado pelas facilidades que, em sua evocações imaginavam ter, pelo fato de serem ambientes que dominavam amplamente. Por outro lado, a cidade representa "... um não sei o quê da vida ...", uma profusão de imagens e situações que rompem com aquelas estruturas familiares, econômicas e culturais regularmente constituídas.

Seus valores culturais continuam sendo redefinidos com base nos novos grupos de vizinhos e amigos compostos pelos seus "iguais" e, também, pelos " não iguais", que estão fora do seu círculo de relações. A imagem da oposição rural/urbano se estende, agora, para uma projeção diferencial entre pobre/rico. Esse é o parâmetro da dimensão da situação que enfrentam e é ele que vai dar sentido ao seu lugar no mundo.

VIVENCIANDO EXCLUSÕES

No projeto de vida urbana desses migrantes se encontrava um tipo de estratégia, ideologicamente assegurada pelo trabalho, que lhes garantiria uma efetiva mobilidade sócio-espacial. O trabalho na construção civil e no comércio seria a frente que concretizaria esse projeto, mesmo não conseguindo dimensionar sequer possíveis obstáculos, como a competição. A realidade que se apresentou, onde requisitos se impuseram, reafirmou a sua condição de excluídos, pela ausência de qualificação:

"(...) eu queria um trabalho numa loja que eu sabia que tinha bastante. Eu achava que ia ser empregado, ganhar dinheiro e dar um futuro prá minha família. ... Não aconteceu nada. Todo lugar que eu ia não deixavam eu falar. Iam logo falando que não tinha vaga. (...) A cidade prá mim foi madrasta, que exemplo eu ia dar. Quando eu penso nisso sinto assim uma coisa de tristeza mesmo."
(Dedé, filho de ex-seringueiro).

[fim da página 39]

Essas palavras expressam uma forte crítica a sociedade que tem tratado seus pobres como se dela não fizessem parte. Como se não tivessem direitos. Os não-cidadãos.

Historicamente, os discursos sobre a pobreza e os pobres vêm ganhando uma multiplicidade de sentidos, reflexos muitas vezes dos momentos econômicos e políticos vividos pela sociedade. Esses momentos podem ser considerados em três fases distintas, segundo Valladares (1991).

A primeira, início do século, quando ocorre a "transição do país para uma ordem capitalista" e quando, apesar de ainda embrionário, tem início um processo de urbanização e formação de um mercado de trabalho industrial/urbano. Em seguida, nas décadas de 50 e 60, com a urbanização já acelerada, decorrente do modelo capitalista de desenvolvimento, há uma ampliação do mercado de trabalho considerado naquele momento dual, porque estava colocado entre o "moderno" - novas tecnologia, geração de novos empregos - e o "tradicional" - ainda artesanal, produtor do subemprego. Esse mercado exclui uma grande parcela da população urbana e acelera os seus níveis de pobreza, que passa a ser reconhecida enquanto questão social. Finalmente, nos anos 70 e 80, quando se aprofunda a crise do modelo econômico, gerando o crescimento da chamada economia informal, paralelamente ao aumento da concentração de renda e da "propagação da pobreza".

A redistribuição de renda seria o mecanismo que deveria atuar como parte do processo que garantisse o combate a essa pobreza, sem que fosse necessário lançar mão das "cestas básicas", através da simples distribuição de renda (Demo, 1996).

Mas o que temos como resultado dessa (má) distribuição de renda é uma sociedade excludente e proporcionadora das diferenças sociais, das identidades tradicionais. Uma sociedade que impossibilita um convívio social entre grande parte dos seus membros e se revela, portanto, incapaz de impedir o apartheid social (Buarque, 1993).

Esse é o quadro de desafios e de problemas que se coloca sobre a questão da pobreza, na atualidade. Um quadro construído sobre a lógica da modernização que vai deixando rastros de devastação social, de decadência, de pobres e excluídos sociais. Soma-se a isso a exclusão política representada pelo não-acesso às informações sobre os direitos e deveres do cidadão, pelo não acesso à educação e, portanto, às formas de reivindicação. A exclusão política é, também, resultado de ausências mas funda-se no campo ideológico, pelo alheamento do próprio [fim da página 40] processo social, tornando-se tão profunda quanto a exclusão social. Um dos nossos entrevistados deixou isso bem claro:

"(...) nós aqui não sabemos de nada, nem brigar com o patrão se for preciso porque ele enrola a gente direitinho. Nós não sabemos dos nossos direitos, ninguém nunca ensinou nada disso prá gente. A gente nunca foi na escola, nunca aprendeu a ler, nada. Isso quando tem alguém que tem patrão, porque quase nenhum de nós tem (...)."
(Josias, ex-seringueiro).

O ser pobre mas trabalhador representa, para estes migrantes, o lugar que ocupam no mundo social. Ser trabalhador significa ser honesto, procurar caminhos e ter disposição para vencer. Existe entre eles uma acentuada imagem que diferencia o trabalho rural daquele porventura desenvolvido no meio urbano. Enquanto agentes de produção rural, se autodefinem como antigo "trabalhador da roça" ou "seringueiro que pegava no pesado". Nesse sentido, o trabalho aparece como desgaste físico, o corpo sendo usado como força e meio de trabalho.

Ao mesmo tempo em que cria uma contradição, porque exige idealmente menos esforço físico, a representação do trabalho urbano se traduz numa certa indisponibilidade e uma certa incapacidade de e para o exercício de qualquer atividade que componha a estrutura ocupacional urbana. Mesmo assim, a cidade seria a facilidade imaginada, pensada.

A ideologia do trabalho está centrada na oposição que fazem ao "malandro", ao "bandido", categorias discriminadas pela sociedade. Trabalhar significa a condição moral de garantir a sobrevivência da família e, talvez, a melhoria das condições de vida. Para isso é preciso que seja acionada a identidade de trabalhador/provedor, aquela que dá garantia de respeito pela família e o reconhecimento dos vizinhos e amigos. Afinal, ser trabalhador é ser capaz de contribuir para a manutenção da sua unidade familiar (Zaluar, 1985).

Fica claro que é através do trabalho que buscam não ser pobres. A pobreza e o pobre adquirem conotações negativas e, em oposição, as noções de trabalho e trabalhador oferecem ao pobre uma dimensão positiva, apontada pelo significado moral que adquire o trabalho e, através do qual, ficam compensadas as desigualdades sociais instaladas na sociedade (Sarti, 1996). Daí a dificuldade que encontram esses sujeitos sociais para entender esta perversa contradição: como eles, sendo portadores do estatuto de trabalhadores, daqueles que estão, ou [fim da página 41] deveriam estar, na condição de ser capaz de ter acesso à garantia da sua subsistência são, exatamente, os que não têm direito a ela?

ARRANJO URBANO

As famílias do bairro Cidade Nova, assim como dos demais bairros pobres da cidade, são denominadas moradores da periferia, categoria que remete a uma maneira de morar diferente do favelado, principalmente no que se refere à uma infra-estrutura do bairro e pela predominância de uma baixa densidade populacional, em relação às favelas. É uma característica regional que pode não se aplicar a outros centros urbanos do país, mas se constitui numa territorialidade que não deixa de evidenciar a pobreza. São os novos atores sociais, os novos excluídos pelo capitalismo brasileiro contemporâneo.

Com a transposição para o meio urbano esses migrantes experimentaram as primeiras transformações na dinâmica doméstica. Pequenos proprietários rurais, ou trabalhadores assalariados, viviam na e da terra, dos pais ou própria, em grupos nucleares, mais ou menos autônomos, embora os laços de parentesco, compadrio e vizinhança fossem fortes. Ressalte-se que as distâncias físicas entre os seringais e entre as colônias eram grandes, impondo um certo isolamento que, entretanto, não os impedia de estreitar essas relações.

O cotidiano dessas famílias era partilhado em sua totalidade e tinha como eixo central o trabalho, que era realizado por todos, resguardados os limites de idade e de sexo. Às mulheres cabiam as atividades domésticas, a criação dos filhos e a função de auxiliar o marido/pai nos serviços agrícolas. Aos homens - provedores - eram destinadas as tarefas mais pesadas - extrair seringa, carpir (limpar e preparar a terra para o plantio) e plantar - e aquelas relacionadas à sua condição de "chefe de família"- garantia da autoridade, da "ordem" familiar e da hierarquia (do homem sobre a mulher, do mais velho sobre o mais novo) (Durham, 1980; Zaluar, 1985; Sarti, 1996). A fala de Pedro, ex-seringueiro, reproduz claramente a estrutura familiar vigente naquele momento:

"Vim do seringal em Xapuri em 77 por causa dos homens que chegaram lá e foi empurrando todo mundo prá fora. (...) Naquela época eu tinha muita coisa: estradas de seringa, roçado, tudo.( ..). Minha família trabalhava comigo. Meus filhos e minha mulher. Ela ficava mais em casa. Às vezes ajudava no meu serviço, quando tinha precisão, o serviço apertava. Naquele tempo as coisas eram diferentes, os filhos ouviam a gente, tinham um pai que olhava por eles, não saíam de perto das vistas da gente. A gente sabia de tudo, tomava conta. Hoje parece que não têm pai, nem ninguém, tudo é [fim da página 42] da cabeça deles e eles é que resolvem o que vão fazer. No meu tempo a gente tinha obediência ao pai, que era mais velho e era pai. Hoje cada um toma conta de si. Até a mulher faz o que quer, da cabeça dela (...)."

Enquanto permanecem nas áreas rurais, a vida transcorre dentro desses padrões. A perda da terra é a primeira e mais significativa ruptura imposta a essa "ordem" e dinâmica familiares.

A ida para a cidade impõe uma reviravolta nessa estrutura. O impacto da desorganização inicial perdura ainda hoje, se revelando como elemento desarticulador das relações familiares e indica uma resistência aos novos padrões que não traduzem as formas de organização social e familiar existentes nos seringais e colônias:

"(...) minha filha hoje está com barriga e nem ela sabe quem fez o serviço mal feito. Eu não posso controlar porque ela já é de maior, tem vinte e três anos. Se fosse naquele tempo que a gente morava no seringal, eu sabia o que fazer e isso nem ia acontecer. Lá o homem tinha palavra e isso não acontecia. Não tinha esse negócio de ficar andando de um lado prá outro (...)."
(Neco, ex-seringueiro).

Por outro lado, os novos arranjos domésticos que vão se estabelecer, podem corresponder a uma rearticulação da economia de subsistência, ajustada às condições da vida urbana.

A vida na cidade/bairro é vista como um rompimento da organização doméstica tradicional. Aos poucos vão compreendendo o significado e a possibilidade de ameaças como prostituição, alcoolismo e drogas e buscam mecanismos de enfrentamento. Os homens, talvez pela consciência da perda da autoridade enquanto "chefe", demonstram uma maior preocupação em relação à situação.

Aliado a isso, o fato de muitas vezes as mulheres saírem para o trabalho remunerado fora de casa e o homem, porque está desempregado, cuidando da taberna (6) ou aposentado, se lamenta pela atual situação e pela certeza de que não mais representa, de fato, a autoridade no âmbito do grupo familiar. No discurso de um dos entrevistados, Vicente, que vem de uma experiência cultural diferenciada daquela do ex-seringueiro, se reportando à vida que levava enquanto colono no Paraná e comparando com a vida que tem hoje, [fim da página 43] numa tentativa de justificar para ele mesmo a perda do poder, aparece o sentimento a esse respeito:

"(...) na rua quem faz as coisas é minha mulher. Ela trabalha, paga tudo, compra tudo, mas quem manda em casa sou eu. Ainda sou do tempo do seringal (7). O homem da casa é quem resolve tudo. Os outros podem até fazer, mas quem manda sou eu. Se bem que meus filhos já não tenho como mandar. Mas dou meu jeito. Se alguém não toma as providências, fica tudo muito difícil (...)."

O trabalho da mulher fora de casa não representa, apenas, a complementação dos ganhos familiares. Ele significa a possibilidade de ascensão social nos limites de um modelo ideal que poderá ser atingido no futuro e a possibilidade de ter um dinheiro que seja seu configurando, de alguma forma, a sua individualidade. Mas, apesar da condição de trabalhadora remunerada, ela não abandona o trabalho doméstico, como se só através dele pudesse ter a reafirmação da sua condição de mulher e, conseqüentemente, a reafirmação da sua identidade feminina (Sarti, 1996).

Assim, o que assistimos é uma grande quebra na "ordem" familiar, à qual se seguirá, com o tempo, o deslocamento acelerado da autoridade. No interior do núcleo familiar, o que é regra perde a força e a rigidez, não resistindo ao contato com o novo, com a diversidade. São essas encruzilhadas que se colocam como desafio para a identificação de um novo status familiar que poderá definir o cotidiano dessas famílias e que poderá ser decisivo para a nova esfera da vida social.

Na verdade, a esse segmento da população foi imposta a reconstrução da sua identidade desde que foram, aos poucos, perdendo suas raízes e essa é uma experiência que vem sendo marcadamente negativa para eles. Da chegada até o "estabelecimento" no centro urbano houve um longo caminho percorrido que os levou, aos poucos a perder as esperanças de alcançar um futuro melhor. São adversidades que vão se interpondo e tornando cada vez mais distantes as possibilidades de uma mobilidade sócio-espacial, o que demonstra a magnitude de sua luta pela sobrevivência.

Nessa luta se inclui, além do trabalho feminino remunerado, o trabalho das crianças e dos adolescentes, representado pela necessidade de complementação dos rendimentos familiares. Neste quadro o que se observa é uma cumplicidade do grupo familiar, embora em alguns momentos tenha sido considerado "humilhante". Humilhante por [fim da página 44] caracterizar um trabalho inferiorizante porque para os outros, o que não ocorria tradicionalmente nos seringais e colônias, onde participavam todos das atividades econômicas familiares. Agora, os menores se vêem obrigados a sair às ruas para vender jornal, refrescos e salgados, "pastorar" carros, carregar sacolas e engraxar sapatos, tudo que no fim do dia possa representar algum rendimento (8).

Não só o resultado financeiro do seu trabalho é importante mas, em igualdade de condições, se encontra a projeção de uma mobilidade social que vai definir sua identidade social que se configura, agora, como uma estratégia de sobrevivência. Se assegura este aspecto, por outro lado, o precisar trabalhar dificulta o acesso à escola e isto quando se dá é esporadicamente, muito embora sempre digam que já a freqüentaram um dia. No entanto, o desejo individual de "qualificação" permanece acentuado, representando um caminho para a ascensão social. Almejar ter uma "carteira assinada" e um "uniforme" para trabalhar, são expressões desse desejo.

Muito embora a condição de crianças e adolescentes teoricamente lhes assegure uma série de direitos, na prática são elas que, algumas vezes, fazem o papel de provedor da família, com o "trabalho" desempenhado nas ruas da cidade.

A incidência de crianças e adolescentes que passam grande parte da infância e da juventude fora de suas casas, fenômeno que Fonseca (1993) chama de "circulação de crianças", define uma forma alternativa de organização familiar, parte de um conjunto de valores desenvolvidos pelos migrantes.

Para essas famílias, tanto a (re)definição da identidade quanto a oportunidade de uma mobilidade social são fundadas na ideologia do sucesso que, por sua vez, é elaborada a partir das representações que têm da sua inserção na camada menos privilegiada da sociedade. Há, de certa forma, uma compreensão de que as condições de vida atuais, as privações pelas quais passam, foram geradas por mecanismos que as empurraram para a cidade e que determinam a pobreza, no sentido mais amplo da negação da cidadania, do que apenas denunciar as carências econômicas. Entretanto, o sucesso está representado pelo trabalho que seria o resultado da capacidade pessoal de realização, do esforço de cada um, não importando os limites impostos pelas estruturas econômica e política que regem as relações urbanas.

Certamente, os impedimentos de ordem material e simbólica existentes na cidade não só geram a instabilidade, na medida em que [fim da página 45] privam das oportunidades de ver a concretização de mudanças sócio-econômicas em suas vidas mas, também, criam a certeza das diferenças que são provocadas por uma sociedade desigual, que modifica seus projetos individuais e familiares. A incessante busca de uma (re)definição da identidade social é uma forte característica desse segmento social. Tanto no plano individual como no coletivo. Agier (1995) diz que, quando se observa o cotidiano de segmentos sociais que passaram por transformações acentuando as diferenciações sociais, percebe-se uma "articulação triangular" desse cotidiano, baseada na identidade profissional, urbana e política. O trabalho nas relações urbanas é a referência principal e ocupa um espaço mais significativo na formação da identidade, abrindo caminho para uma mobilidade social. É o instrumento que possibilita a integração e é a forma que oportuniza suas condições de existência:

"(...) e se eu um dia conseguir ter um emprego, qualquer coisa prá fazer, ninguém vai olhar prá mim atravessado, como se eu não fosse ninguém. Todo mundo vai me respeitar porque o mundo é assim: quem não tem uma coisa prá fazer não é nada (...)."
(Rodrigo, ex-colono).

No depoimento de Rodrigo encontramos imagens da realidade que compõem um quadro que funciona como demarcador da suas condições. O acesso ao trabalho urbano e, portanto a sua identidade de trabalhador, é uma condição indispensável para que possa, não só exercer os seus direitos de cidadão, mas sentir-se cidadão.

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RESUMO

FAMÍLIAS MIGRANTES: REORDENAMENTO E ARRANJO URBANO

Este estudo foi realizado com famílias migrantes dos seringais e Projetos de Assentamentos Dirigidos (PAD's) , instaladas na periferia urbana de Rio Branco - AC. Essas famílias foram expulsas do campo pela força da expansão do capitalismo pela Amazônia brasileira, nas décadas de 70 e 80. O processo migratório desorganiza a estrutura familiar desse segmento populacional, que se reorganiza e reinventa, sempre, o seu cotidiano, como estratégia de sobrevivência no meio urbano.

ABSTRACT

MIGRATE FAMILIES: REORDENATION AND URBAN ARRANGEMENT

This article studies the migrate families who resides in Rio Branco city's periphery (capital from Acre State, in the brazilian rain forest region). These families lived in rubber plantations and Rural Projects (PAD's) areas. They were taken out from rural areas by the capitalist expansion during 70's and 80's. These processes disorganizes the familiar structure of that social segment. To survive in the urban environment they must reorganize themselves and recreate social strategies in their daily live.

NOTAS

1) Essas reflexões fazem parte da nossa dissertação de mestrado, em fase de conclusão.

2)Professora do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Acre, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).

3)A discussão sobre exclusão pode ser encontrada, entre outros, em Nascimento (1994, 1996), Castel (1997) e Martins (1997).

4) Sobre essa questão, consultar Larangeira (1997).

5) Sobre família e desorganização familiar veja-se, entre outros Bilac (1995a; 1995b) e Durham (1973; 1980).

6)Tabernas são espécies de barracas, geralmente em madeira, localizadas sempre nos limites da casa, onde são vendidos gêneros de primeira necessidade, cigarros e doces.

7) Essa expressão foi incorporada por pessoas que nunca moraram no seringal. Representa a honestidade, o caráter, a autoridade.

8) Não foram consideradas as atividades resultantes de roubo, furto e prostituição.


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Número 12 - setembro de 1996  |  Número 13 - setembro de 1997  |   Número 14 - setembro de 1998  |  Número 15 - setembro de 1999
Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 18 de Outubro de 1999, por Carla Mary S. Oliveira.

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