Vico.
Ciência Nova.
Talvez não seja exagero afirmar que de todos os pensadores importantes do século XVIII - Bayle, Voltaire, Montesquieu, Hume, Gibbon, Herder, Kant - Giambatista Vico (1668-1744) tenha sido o menos valorizado e estudado pelas gerações posteriores. Durante muito tempo a sua obra ficou no ostracismo e só no final do século XIX, com Michelet, Sorel e sobretudo Croce, no início deste século, foi revistada e reabilitada.
Hoje considerada uma obra de gênio (Gardiner), expressão da mais original e inesgotável força espiritual (Meinecke), representou, no momento de sua aparição "o milagre de um imprevisto Oásis" numa época em que o pensamento filosófico e histórico italiano estava [fim da página 07] dominado ou por uma angustiante aridez abstrata da escolástica ou pela filosofia cartesiana e o pensamento ilustrado que soprava da França.
Navegando contra a corrente dominante do cartesianismo, do mecanicismo e do jusnaturalismo, a obra de Vico representou uma efetiva ruptura com o pensamento da época, mas não granjeou praticamente seguidores no século XVIII, constituindo-se assim a mais solitária e desconhecida figura marginal na vida espiritual daquele século. Não obstante esse isolamento, a obra de Vico, em especial a sua doutrina dos ciclos históricos - sem dúvida o que há de mais problemático na sua filosofia da história - parece ter exercido influências posteriores, ainda que não explicitamente reconhecida, em Montesquieu, Hamann, Goeth e Herder.
Como se explica esse desconhecimento de um pensador que teve a ousadia de arrebatar a Deus - qual Prometeu arrebatou o fogo - o segredo da história, quando afirmou que esta era feita pelos homens e, por isso mesmo, podia ser conhecida por eles? Não temos neste princípio gnoseológico o postulado fundamental da praxis como categoria axial para o conhecimento da história? Não foi na senda aberta por Vico que pensadores tão importantes como Herder, Kant, Hegel, Marx, Croce e Gramsci desenvolveram suas filosofias da história?
Apoiando-me na convicção de que a noção de verum/factum é a chave-mestra para Vico abordar o campo histórico, pretendo neste trabalho examinar as suas teses que se relacionam mais diretamente com esse núcleo central de sua teoria.
A intenção, aqui, é sugerir que Vico foi, talvez, o único pensador do século XVIII que soube reconhecer uma continuidade entre razão e imaginação ou fantasia.
Ao invés de estabelecer antinomias entre razão e imaginação, onde a primeira, no entendimento dos iluministas, operava com causas, enquanto a segunda atuava no campo das conjecturas, Vico habilmente percebeu que ambas faziam parte de um mesmo processo: o do conhecimento histórico.
A razão, no século das luzes, foi identificada sob três formas. A primeira - que constituiu a corrente prevalecente - entendia que a razão se exprimia essencialmente como pensamento (Voltaire, Diderot, Kant). A segunda, como sentimento, através da paixão (Rousseau). E a terceira, como vontade, na ação (Vico) (3). Nesse sentido, o racionalismo de Vico pertence a uma espécie muito curiosa, pois entende que os elementos [fim da página 08] irracionais são igualmente importantes para a realização da razão. Tal é a noção de uma Providência Divina que, desconhecida para os homens, determina a finalidade dos indivíduos e das sociedades (a versão de Vico relativo à Mão Oculta, ou a Astúcia da História, ou a Razão Imanente). A razão, cujos planos são executados na história é, assim, um misto de uma transcendente razão divina, com a razão humana, isto é, a razão de pessoas finitas. Ao estabelecer uma relação íntima entre razão e imaginação, Vico anunciava realmente uma nova concepção do homem - uma concepção dinâmica, em lugar de uma concepção estática - e se afastava da visão abstrata e estática acerca da natureza humana, predominante no século XVIII.
O exercício de escrita que desenvolverei, nas páginas seguintes, tem por objetivo tecer alguns comentários sobre a visão muito particular de Vico sobre a razão e a imaginação, no campo do conhecimento da história.
Quem já se deu ao trabalho de consultar os escritos de Vico, em especial a sua obra da maturidade Ciência Nova (Vico, 1974) deve ter constatado o seu caráter assistemático, obscuro, vazado num estilo barroco, onde em meio a construções fantásticas e incoerência lógica sobressaem blocos valiosos e inquestionavelmente geniais. Para divisar estes lampejos de genialidade na sua obra é preciso desemaranhar-se das passagens confusas, delirantes, arbitrárias e apreender o que há de sugestivo e penetrante em suas análises. Para não correr o risco de me prender neste cipoal viquiniano, adotarei um procedimento semelhante ao que adotaram alguns estudiosos de Vico e que consistirá em resumir suas principais teses e depois comentar as mais importantes. No caso sob exame, como já sugeri na Introdução, limitar-me-ei a tecer algumas considerações sobre o principio viquiniano de que "verum ipsum factum" e suas implicações para o campo do conhecimento histórico.
Correndo o risco de simplificar demasiadamente o seu pensamento, podemos resumir a contribuição de Vico ao conhecimento histórico nas seguintes teses ou "dignidades", como ele assim chamava:
1) A natureza humana não é, como durante muito tempo imaginaram os filósofos, em especial, os racionalistas, imutável. Ao contrário, a sua mutabilidade ao longo da história humana vem demonstrar que a razão não possui um núcleo central ou uma essência que, mesmo através da mudança, permanece idêntica a si mesma. No ato mesmo do conhecimento, os homens transformam-se a si mesmo e o mundo.
[fim da página 09]
2) A condição essencial para entender o mundo é tê-lo feito ou criado. Sem esse pressuposto, o homem pode observar mas não entender o que se passa em sua volta. Admitindo-se que, em certo sentido, os homens fazem sua própria história (ainda que não seja completamente claro em que consiste esse "fazer") eles estão aptos para compreendê-la. Entretanto, estão privados de compreender o mundo da natureza exterior, dado que não é resultado de sua obra, mas de Deus. Ainda que possa ser observado e interpretado, o mundo da natureza não é inteligível para os homens, como o é sua própria experiência e atividade. A compreensão da natureza, em toda sua plenitude, é um atributo divino.
3) Do postulado anterior, decorre que o conhecimento que o homem tem da natureza não é o mesmo que ele tem do mundo histórico por ele criado. O conhecimento do mundo natural limita-se a observar, descrever, classificar, refletir e registrar as regularidades no tempo e no espaço. Tal conhecimento difere substancialmente do seu conhecimento do mundo histórico por ele criado, pois este último obedece a regras que ele mesmo impõe à sua criação. A matemática, por exemplo, uma criação humana, da qual o homem tem uma visão "interna", ou a linguagem, que os homens, e não as forças da natureza, modelaram e, por via de conseqüência, o de todas as atividades humanas - visto eles serem seus criadores, atores e observadores ao mesmo tempo - ilustram bem dois tipos de conhecimentos. Como a história preocupa-se com a ação humana, ao relatar os esforços, lutas, propósitos, motivos, esperanças, temores e atitudes, ela pode, por isso, ser conhecida dessa forma superior - interna - da qual o nosso conhecimento do mundo exterior não pode ser o paradigma. Aqui Vico estava criticando os cartesianos, cujo modelo de análise se baseava no conhecimento natural.
4) As sociedades humanas são regidas por um modelo universal, uma espécie de estilo comum que se reflete no pensamento, nas manifestações artísticas, nas instituições sociais, na linguagem e nas formas de vida e ação. Tal modelo universal se assemelharia à noção de cultura desenvolvida por Herder. O conhecimento verdadeiro da história humana não pode ser adquirido sem o reconhecimento da sucessão das fases da cultura de uma sociedade ou povo determinado. Tal sucessão, no entanto, não deve ser vista como uma relação meramente causal, uma vez "que a relação de uma fase cultural, ou de um desenvolvimento histórico, com a outra não é a mesma de causa e efeitos mecânicos, senão que, devido ao caráter propositado da atividade humana destinada a satisfazer necessidades, desejos e ambições (...) é inteligível para aqueles que possuem um grau suficiente de autoconfiança, e ocorre dentro de uma ordem que não é fortuita nem necessariamente determinada, fluindo de elementos e [fim da página 10] formas de vida somente aplicáveis em termos de ação humana dirigida para a consecução de um objetivo. Este processo social e sua ordenação são inteligíveis para outros homens de sociedades mais recentes, já que eles também estão engajados em um empreendimento similar, que lhes fornece os meios de interpretar as vidas de seus antepassados, em estágio igual ou diferente de desenvolvimento espiritual e material" (Berlin, 1974: 09).
5) As criações do gênero humano - leis, instituições, religiões, rituais, obras de arte, linguagem, canções, normas de conduta, etc. - são realizações cuja finalidade precípua é o entendimento ou comunicação entre os homens e destes com Deus. Estas criações devem ser vistas e compreendidas como formas naturais de transmitir uma visão coerente do mundo, mesmo os mitos, as fábulas e os rituais primitivos. Ao historiador compete despir-se dos preconceitos e procurar "transportar-se" para as mentes dos antepassados, averiguando o que faziam, estudando as regras e significados dos seus métodos de expressão. A chave para a compreensão dos povos é tentar descobrir os motivos para os quais viviam, expressos na linguagem, nas artes e rituais.
6) As produções culturais devem ser entendidas, interpretadas e avaliadas a partir da compreensão adequada do propósito para o qual foram criadas. Isto subtende situá-las no seu próprio tempo, lugar e estágio de desenvolvimento social.
7) Às categorias tradicionais de conhecimento - dedutivo a priori e empírico a posteriori - deve-se acrescentar uma terceira: a imaginação retrospectiva.
Cada uma destas teses de Vico parece ter representado um avanço importante no pensamento histórico e, embora praticamente desapercebidas na época em que foram formuladas, exerceram uma grande influência entre pensadores do século XIX, como Michelet, Hegel, Marx e Croce.
Dada a riqueza e complexidade do pensamento de Vico e as limitações deste trabalho, bem como de seu autor, limitar-me-ei nas páginas seguintes a comentar, de passagem, o conjunto destas teses, detendo-me com mais vagar na tese número 2, por ser, como já tivemos oportunidade de afirmar, o princípio ordenador de toda sua teoria.
A negação de uma natureza imutável (tese 1), era um ataque de Vico aos racionalistas (Descartes e Spinoza) e utilitários (Hobbes e Locke) que defendiam o conceito de uma natureza humana fixa, imutável e comum a todos os homens, em todos os lugares e todas as épocas, bem como de uma estrutura moral e psicológica completamente desenvolvida, da qual podiam ser logicamente deduzidos os direitos, [fim da página 11] obrigações e leis, decorrentes de objetivos universais idênticos para todos os homens.
Vico censurava os pensadores racionalistas por ignorarem que toda explicação válida é necessária e essencialmente genética, tanto em matéria de propósitos humanos, que mudam com as circunstâncias mutantes, como em termos de modificação nas circunstâncias por esses mesmos propósitos, ou seja, pela ação humana ou a interação dos propósitos e as "cegas" circunstâncias ou ambiente, que muitas vezes levam a conseqüências não premeditadas. Ao mesmo tempo, apontava para a necessidade de reconhecer que tanto os indivíduos como as sociedades sofriam mutações, desde a infância, passando pela juventude, maturidade, velhice até o declínio. A idéia de Vico, a esse respeito, se resumia na convicção de que o indivíduo e a sociedade passavam por estágios, onde uma fase se seguia a outra, na procura de um propósito inteligível, qual seja, a busca da compreensão de si mesmo e de seu mundo. Para ele, a história era progresso ordenado (guiado pela providência atuante através das capacidades dos homens) de tipos sempre mais profundos de compreensão do mundo, de forma de sentir, atuar e expressar-se, cada um dos quais se desenvolvendo a partir do anterior, o qual substitui. Vico entendia que cada sociedade ou cultura possuía algumas características próprias, não encontráveis em qualquer outra.
A tese no 2, que estabelece o primado do "fazer" ou "criar" como condição de possibilidade do conhecimento é, como já sugerimos, o princípio unificador da filosofia da história de Vico.
O verdadeiro conhecimento, para Vico, era o conhecimento per causa : conhecer alguma coisa é conhecer suas causas. Em outros termos, para se ter um conhecimento completo de algo é preciso saber porque esse algo é, ou como veio a ser ou foi feito que fosse. O conhecimento é, portanto, um processo de composição causal do objeto nos seus elementos mais simples e uma recomposição causal do objeto pelo sujeito (Bottman, 1984). Disso se infere que, para Vico, o ato de "criar" ou "fazer" é o pressuposto essencial para o conhecimento: verum ipsum factum.
Este princípio gnoseológico não é uma criação original de Vico. Certamente o tomou de empréstimo à filosofia escolástica, segundo a qual Deus conhece o mundo por tê-lo criado de forma e por motivos que somente ele conhece. Em sendo o mundo uma criação divina, ele se apresenta para os homens como um dado que o precede, i.é. , um fato natural. O conhecimento exato só pode ocorrer quando nós criamos ou projetamos algo, partindo literalmente do nada. Criar e conhecer constituem, assim, um só ato. O grau de exatidão do conhecimento é [fim da página 12] proporcional à participação no ato criador. Quanto maior seja o elemento de pura criação, tanto mais poderemos dizer conhecermos per causas, isto é, tanto mais conhecermos realmente. É por isso que na hierarquia das ciências, para Vico, a física oferece um grau de certeza menor que a geometria e a matemática. Como ele gostava de dizer. Na Geometrica Demonstramus Quia Facimus (1708), o mesmo não ocorrendo com a física, porque se a pudéssemos demonstrar deveríamos estar fazendo-a, i.é., deveríamos estar criando o mundo material.
Deste modo, Vico chegava a conclusões ousadas sobre as condições de possibilidade do conhecimento em geral:
"O domínio e o critério da verdade é tê-la feito. Daí que a clara e definida idéia da mente, i.é., do critério cartesiano não somente não pode ser o critério de outras verdades, mas também não pode ser o próprio critério, porque enquanto a mente se compreende a si mesma, ela não se cria por si própria e, por este último motivo, ignora a razão anterior pela qual ela se compreendeu." (Vico, 1974: 38-39)
E de forma mais contundente:
"Aqueles que tratam de demonstrar que Deus existe a priori são culpados de uma curiosidade irreverente, porque fazer isso equivale a fazer-se a si mesmo o deus de Deus e, portanto, negar o Deus cuja existência procuram demonstrar." (Vico, 1974: 150)
Até aqui Vico tinha se mantido no terreno da filosofia escolástica. A grande ousadia de seu pensamento foi estender o princípio verum/factum para a compreensão do mundo histórico. Vico - e também Hobbes - chegou a conclusões de que a ciência do mundo humano se estrutura sob o mesmo princípio da ciência divina do mundo natural. Se o mundo natural era uma criação divina e, portanto, somente conhecido verdadeiramente por essa divindade, o mundo humano podia ser conhecido pelo homem, já que ele é seu criador. Ao estabelecer uma demarcação entre natureza (esfera do divino) e história (esfera do homem), Vico estava dessacralizando a história. Afastando a intervenção direta de Deus no curso da história, Vico estava substituindo o princípio da transcendência da direção divina pelo da imanência ou da secularização da história.
A valorização da capacidade humana para conhecer e transformar a realidade, aliada a uma crença numa ciência ativa ou prática em oposição ao saber contemplativo - características marcantes do pensamento humanista, parece estar presente nos horizontes intelectuais de Vico com bastante ênfase. Foi isto que permitiu a Vico [fim da página 13] "distinguir uma história humana de uma história natural no sentido da diferença entre ações humanas, que têm poder de transformação sobre a realidade, e as ações que nada podem sobre a natureza enquanto obra divina" (Chauí, 1985: 64).
A aplicação do princípio verum/factum ao estudo da história constituiu verdadeiro movimento revolucionário neste campo. Apoiando-se numa proposição de Hobbes, que afirmava que "a filosofia civil é demonstrável porque nós mesmos formamos a comunidade que estuda", Vico transformou esta noção, dando-lhe um alcance e profundidade imensamente maiores (e aumentando o seu caráter perigosamente especulativo), através de sua extensão ao grande desenvolvimento da consciência social ou coletiva da humanidade, em especial para povos e culturas de origem mais remotas.
Partindo da noção de que o homem conhece a si mesmo enquanto produto humano, ele abria vias de acesso para o conhecimento da história passada. Através da experiência de pertencer ao gênero humano, o historiador podia entender culturas e povos diferentes na medida que se despojasse de suas particularidades históricas e partilhasse com eles a experiência de ser humano. O historiador podia conhecer a vida desses povos, na medida em que as suas realizações e fracassos eram produtos do fazer humano. Vico erigia a prática e a experiência como fundamentos para o entendimento humano.
Do princípio verum/factum Vico extraiu importantes desdobramentos para o conhecimento da história. A história - um produto do fazer humano - era o objeto por excelência do conhecimento humano. Assim, o processo histórico era encarado como um fazer onde os seres humanos elaboravam sistemas de linguagem, costumes, leis, governos, etc.; isto é, a história era vista como gênese e desenvolvimento das sociedades humanas e das suas instituições. Observe-se que a filosofia da história de Vico não admitia nenhuma antítese entre ações humanas e plano divino, como ocorria com o pensamento histórico na Idade Média. Como observou Collingwood:
"(...) o plano da história é um plano completamente humano, mas não pré-existe sob a forma de uma intenção irrealizada e que se destina a ser gradualmente realizada. O homem não é um simples demiurgo, modelando a sociedade humana como o Deus de Platão formava o mundo, de acordo com o modelo ideal; como o próprio Deus, o homem é um verdadeiro criador, dando a vida quer à forma, quer à matéria, dentro do processo coletivo do seu desenvolvimento histórico. A criação da sociedade humana pelo homem, a partir do nada, e todos os fenômenos desta criação são [fim da página 14] assim um factum humano, eminentemente cognoscível, como tal, pelo espírito humano." (Collingwood, s/d: 89-90)
Uma vez resolvida a questão de saber como é possível o conhecimento histórico, em geral, Vico procurou, no curso de suas pesquisas históricas sobre períodos remotos e obscuros da humanidade, solucionar questões de ordem metodológica. Para tanto, traçou uma clara concepção do método histórico e elaborou regras precisas para sua aplicação.
Em resumo, as regras do método histórico de Vico se escoravam em duas vias de acesso ao conhecimento de outras épocas: o da analogia e o da imaginação reconstrutiva, e entendo que estes procedimentos estavam bastante entrelaçados, de modo que um complementava o outro. O procedimento analógico consistia em identificar em certos períodos históricos um caráter geral, dando determinado aspecto a cada pormenor que reaparecia em outros períodos. Isto significava, em outras palavras, que era possível fazer analogia entre um período e outro, uma vez que ambos possuíam, para além de suas especificidades próprias, o mesmo caráter geral. Exemplificando este ponto, Vico sugere semelhanças genéricas entre o período homérico da história grega e a Idade Média européia. Os traços comuns a ambos os períodos seriam nomeadamente um governo constituído por representantes de uma aristocracia guerreira, economia agrícola, literatura de baladas, moral fundamentada na idéia de coragem e lealdade pessoais, etc. Desta forma, Vico concluía que para se saber mais sobre um determinado período, além daquilo que as fontes podem informar, podemos proceder analogicamente a partir do estudo de períodos semelhantes, mas historicamente situados em outro estágio da evolução humana.
A aplicação do método analógico permitiu a Vico estabelecer algumas conclusões sobre o processo histórico. Em primeiro lugar, concluiu que a história da humanidade era governada por leis. Não as leis simples, eternas e intemporais defendidas pela concepção jusnaturalista do século XVIII. Diferentemente dos adeptos do jusnaturalismo - que buscavam as leis do ser e do durar - Vico buscou e acreditou encontrar as leis da evolução:
"Em lugar do princípio de que o ser da natureza humana retorna e é substancialmente invariável, surge o princípio de que a mudança da natureza humana reproduz incessantemente determinadas formas universais e é, substancialmente, invariável. Em uma casca rígida põe um conteúdo dinâmico." (Meinecke,1980: 65)
[fim da página 15]
O método analógico levou Vico a estabelecer a hipótese de que todos os povos considerados separadamente passavam por fases históricas semelhantes, que ele classificou, por ordem seqüencial, em divina, heróica e humana. Tentou demonstrar que estes períodos históricos repetiam-se periodicamente, com a mesma ordem. De modo que o movimento da história se dava em forma cíclica, mas não era um mero rotativismo, com ciclo de fases fixas. A rigor, a história para Vico não seguia o movimento de um círculo mas de uma espiral, uma vez que a história não se repetia. Cada fase atingida era uma nova fase, diferente da que havia acontecido antes. E era precisamente isto que distinguia a teoria de Vico da teoria cíclica da história, largamente aceita e defendida até o Renascimento.
Mas Vico renovava a teoria cíclica também em outra direção, quando a aplicava não só às formas institucionais mas também às conformações psíquicas que as reproduzem:
"Não só a virtude dos povos ascende e diminui e se desloca de uns a outros, como observara profundamente Maquiavel, senão que, em lugar do deslocamento de uma só força anímica, temos a mudança regular, dentro do mesmo povo, dos sistemas de forças anímicas, tendo cada uma suas especiais possibilidades realizadoras, suas especiais virtudes e falhas. Das diversas almas dos homens, que se desenvolvem gradualmente, dominavam as mudanças de destino." ( Meinecke, 1980: 62)
Mas qual era, para Vico, a mola que impulsionava esse eterno movimento do "corso" e "ricorso" da história? Sabe-se que Vico partilhava com a tradição filosófica cristã - de Agostinho a Bossuet - a crença de que Deus regia os destinos do mundo e de seus povos. Mas Vico não se sentia bem com o providencialismo antropomórfico que imperava até então e que baseava-se na crença de que "a cólera ou benevolência de Deus podia coligir imediatamente sobre a sorte ou o infortúnio dos povos". Propondo uma conciliação do cristianismo com a filosofia imanentista, Vico deslocava essa questão quando afirmava que a esfera de ingerência de Deus na história se dava estritamente através da natureza humana, por ele criada. Vico entendia que a natureza humana era egoísta porque orientava-se no sentido de pensar tão-somente em seu proveito pessoal. Mas a busca destes interesses pessoais mesquinhos redundava num resultado grandioso: a ordem civil, a superação gradual da barbárie e, por fim, a humanidade. No entendimento de Vico, os limitados fins humanos eram meios ou instrumentos a serviço dos mais altos fins divinos. Qualquer semelhança com a formulação posterior de Hegel sobre a "astúcia da razão" não é mera coincidência.
[fim da página 16]
Uma outra via de acesso para o conhecimento histórico, segundo Vico, era a imaginação reconstrutiva, cujos princípios gerais já esboçamos no resumo de suas principais teses. Aqui cabe apenas observar, para concluir, que o emprego da imaginação como instrumento de conhecimento é uma excentricidade de Vico, numa época em que o pensamento iluminista dominante contrapunha a razão à imaginação como a base da verdade contra a base do erro. O "excêntrico a-racionalista Giambatista Vico", como apropriadamente o classificou Hayden White (1992), foi o único pensador deste período que reconheceu a continuidade entre razão e fantasia, ambas fazendo parte de um processo mais amplo de investigação de um mundo incompletamente conhecido. De modo que a imaginação ou fantasia adquiriram no pensamento de Vico um estatuto tão importante para o conhecimento da verdade como a razão. Somente Vico, em sua época, foi capaz de compreender que a racionalidade estava implícita até nas mais irracionais das imaginações humanas.
Os pensadores iluministas não forjaram uma teoria da consciência humana em que a razão se contrapusesse à imaginação como base da verdade contra o erro. Em conseqüência, o mundo sensível da história dos homens foi associado à fantasia, paixão e sentimento, enquanto o pensamento terminou se enclausurando na pureza da sua abstração. Neste sentido, não deixa de ser profundamente ilustrativo dessa postura a afirmação de Voltaire num artigo inserido no Dicionário Filosófico:
Os filósofos da Ilustração estavam inabalavelmente convictos de que a razão era o fundamento de toda a verdade e o único critério para apreciar os produtos da experiência sensorial. Para eles, a distinção entre o verdadeiro e o falso na história parecia uma operação simples. Bastava distinguir - usando o senso comum e a razão - o relato verdadeiro do fabuloso, a experiência guiada pela razão daquela resultante da imaginação. Separando, portanto, os relatos verdadeiros dos fabulosos, o historiador erigia os relatos verdadeiros à condição de "fatos", extraindo deles verdades mais gerais - intelectuais, morais e estéticas. Mas o resultado deste procedimento era que tudo que a humanidade havia produzido no passado e que se incluía no campo do [fim da página 17] imaginário - lendas, mitos, fábulas - devia ser expurgado como testemunho potencial para se obter a verdade histórica.
Preocupados em fazer valer a razão como única autoridade para combater a intolerância, a superstição e o medo, os racionalistas terminaram por ignorar tudo que testemunhava a irracionalidade das épocas passadas: mitos, lendas, fábulas e outras tantas manifestações do espírito humano que não se enquadravam nos cânones da razão iluminista. Ao que parece, Vico foi, na sua época, o único a perceber que o problema histórico se resumia precisamente em "determinar em que medida uma apreensão puramente fabulosa ou mítica do mundo podia ser adequada, por qualquer critério de racionalidade, como base para entender um tipo específico de vida e ação histórica" (White, 1992: 66).
A importância de Vico, neste domínio, foi demonstrar que a relação entre razão e imaginação, ao invés de formar uma oposição, era uma relação de complementaridade ou continuidade entre a parte e o todo. Na Ciência Nova, quando procurou diferençar os estágios de consciência através dos quais a humanidade passou do primitivismo para a civilização, ele sugere - utilizando a quádrupla distinção entre os tropos lingüísticos - uma continuidade e não uma oposição entre consciência poética (mítica) e consciência prosaica (científica).
Vico tinha uma notável clareza de que a imaginação era uma forma, também, de abordar a história. Na sua compreensão, a história, entendida como criação de novas realidade materiais e espirituais, era o resultado do embate dialético entre verdade e fantasia. Por que então ignorar a positividade latente de toda fabulação narrativa ou de toda especulação teórica? Afinal, tratava-se de apreender a racionalidade implícita até mesmo nas mais irracionais das imaginações humanas, uma vez que tais imaginações contribuíram para a instituição do mundo histórico.
A grande questão para Vico era, portanto, indagar de que maneira a racionalidade se formou e emergiu da mais ampla irracionalidade a que estava mergulhada a humanidade nas suas fases mais primitivas.
Penso que a resposta a esta questão, Vico a esboçou quando elaborou a sua teoria do mito e do simbolismo. Em síntese, o que Vico parece sugerir, quando trata dos mitos e dos símbolos, é que esses transmitiam, assim como as metáforas antropomorfas da linguagem primigênia, uma visão coerente do mundo como era visto e imaginado pelo homem primitivo. A partir deste pressuposto, concluía que a forma de compreender os nossos antepassados era procurar penetrar nas suas mentes e descobrir a sua lógica interna. Para entender sua história deveríamos compreender os motivos para os quais viviam. E isto só seria possível se compreendêssemos a chave do significado da sua [fim da página 18] linguagem, artes e rituais. Nesse processo de compreensão da história dos nossos antepassados a fantasia era, para Vico, "uma forma de conceber o processo da mudança e desenvolvimento social, correlatando-o com, ou vendo-o de fato transmitido pela mudança paralela ou desenvolvimento do simbolismo através do qual os homens procuram expressá-lo, já que as estruturas simbólicas formam parte e são parcela da realidade que simbolizam e com a qual se alteram" (Berlin, 1976: 10).
A imaginação criativa, para Vico, era uma maneira de inspirar vida nos ossos sepultados no cemitério do passado. Para reconstruir imaginativamente os modos de vida das sociedades e civilizações, o historiador precisava possuir dotes psicológicos (hoje, diríamos, psicanalíticos) que lhe permitissem fazer a leitura dos símbolos pelos quais os homens se expressam.
Era precisamente neste momento que entrava a questão do autoconhecimento "interno", e que consistia na distinção entre o método elaborado pelas ciências da natureza (Naturwissenschaf) e o método aplicado ao conhecimento do mundo dos homens (Geisteswissenschaf). No primeiro caso, segundo Vico, somos observadores passivos olhando desde fora (conhecimento "externo"), contemplando o mundo exterior, onde tudo o que podemos ver são acontecimentos, ou a superfície das coisas - desconhecendo a sua finalidade interna.
No segundo caso, o conhecimento é interno, visto ser uma compreensão do interior da atividade das quais nós mesmos, os conhecedores, somos autores dotados de motivos e propósitos. Os homens só compreendem os seus semelhantes se os considerarem iguais a eles mesmos.
A concepção do conhecimento como atividade na qual os homens não se limitam a registrar passivamente as impressões, mas a criar, transformando o objeto, decorria em Vico da importância que ele atribuía ao fazer humano como condição do conhecimento do mundo histórico. No fazer, os homens criam, obtém um conhecimento mais íntimo e direto desse fazer. Por isso a história, que é uma criação humana, constitui o grande domínio onde as coisas são inteligíveis para seus criadores, de uma maneira em que nada mais pode sê-lo. Aquilo que é feito pelos homens, outros homens, visto terem mente de homem, sempre podem em princípio penetrar. O autoconhecimento, visto ser um conhecimento per causas, ou seja, não simplesmente conhecimento do que ou do como, é o mais próximo que o homem pode atingir do conhecimento divino.
[fim da página 19]
Para finalizar, gostaria de citar mais uma vez uma passagem onde Vico enfatiza o ato criador como condição de possibilidade do conhecimento dos assuntos humanos:
"Criar a verdade que tu desejas conhecer e eu, ao conhecer a verdade que tu me propuseste, a "farei" de tal maneira que não haverá para mim qualquer possibilidade de duvidar dela, visto ser eu quem realmente a produziu". (Vico, 1971)
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RAZÃO E IMAGINAÇÃO:VICO E AS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
Este artigo trata das relações entre Razão e Imaginação no século XVIII, a partir das percepções de Vico sobre as possibilidades do conhecimento histórico.
ABSTRACT
REASON AND IMAGINATION: VICO AND THE HISTORICAL KNOWLEDGE'S POSSIBILITY CONDITIONS
This article speak about the relations between Reason and Imagination in the 18th century, based in the Vico's perceptions by the historical knowledge possibilities.
2) Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPb (Campus I - João Pessoa).
3)Conforme anotações de aula do curso ministrado por Marilena Chauí: "A História da História" (1º semestre letivo de 1993, IFCH-UNICAMP).