Dubois, Claude-Gilbert. (1995). O imaginário da Renascença. Brasília: Ed. UnB, 1995. 257 p.
Fortis imaginatio generat casum, dizem os eruditos. Sou dos que sentem a grande força da imaginação. Todos são tocados por ela, mas alguns ela derruba. Suas impressões penetram-me, e a minha arte consiste em escapar dela, não em resisti-la.
Montaigne
Paracelso e Montaigne, dois grandes representantes do pensamento renascentista, cultores da razão como princípio instituinte do conhecimento e do social, são, paradoxalmente, evocados por Dubois para dar uma idéia do poder que se atribuía à imaginação no século XVI. Mas, para Dubois, o paradoxo é apenas aparente, porque razão e imaginação não são termos antitéticos: fazem parte de um mesmo processo de atribuir sentido às coisas e ao mundo. Nesta perspectiva, o impulso de conhecer e criar se unem numa cooperação mítica, e o imaginário é a operação que promove essa cooperação, criando uma teia de sentidos que propicia a construção dos referentes sociais e individuais. A tese do autor é, portanto, a de que tudo é imaginação na Renascença: a ciência, a razão, o homem, a natureza, o tempo, a cidade. A sua tarefa consiste assim em desvelar as imagens que enformam a cultura desse período.
O livro está dividido em uma introdução e três partes. Na introdução, há um esforço bastante elucidativo para enfrentar alguns problemas relacionados às dificuldades teóricas de definição do conceito de imaginário. A primeira dificuldade do empreendimento de Dubois consiste na delimitação do corpus, i.é., o campo ou o registro do imaginário. No seu entendimento, o imaginário recobre tanto a criatividade extrapolada dos limites realistas como os ensaios realistas para apreender um objeto impossível. Suas manifestações poderiam ser apreendidas a partir da infusão de fantasmas dentro do discurso. Essa operação de intrusão de fantasmas dentro do discurso resultaria da inversão dos referenciais: no lugar das estruturas imaginárias de um sujeito cultural, cultiva-se a função referencial a objetos.
Nesta perspectiva, o imaginário manifesta-se tanto nos raciocínios que exaltam as virtudes da "razão" e do "realismo", ou seja no quadro estrito do pensamento [fim da página 213] codificado segundo normas reconhecidas, como na produção cultivada nos ambientes populares, ou por hereges e marginais, cuja perda de contato com o real foram tidas como utópicas ou inviáveis. Nas produções que se pretendem racionais, metódicas, científicas, objetivas, o imaginário manifesta-se em surdina, recitado por uma segunda voz além da que discorre e é reconhecida como tal. Essa segunda voz, segundo o autor, brota do anjo das trevas, do demônio da estranheza que todos levamos em nossas palavras e rompe com todas as regras do discurso conduzido de acordo com a razão. Reivindicando a pretensão de serem restituições autênticas do real e expressão da verdade, os discursos "realistas" não passam de delírios a que a ordem atribui a aparência de razão. Trata-se - diz o autor - na verdade de "sintomas paranóicos, isto é, um raciocínio que substitui pela identificação o ato arbitrário ou convencional de designação, sobrepondo o signo e o referente"(p.13). Teríamos aqui a ilusão especular ou narcísica, de origem inconsciente, que consiste na substituição dos mecanismos de designação pelos de identificação. Como decorrência de um tratamento fetichista do objeto a ilusão realista é também uma das modalidades do imaginário.
A segunda dificuldade que o autor enfrenta no seu livro é de como caracterizar o imaginário. Qual é sua lógica, se é que ela existe? Como defini-lo, se ele parece recobrir praticamente toda produção do espírito humano? Grosso modo, Dubois propõe denominar de "imaginário" "o resultado visível de uma energia psíquica formalizada individual e coletivamente" que se expressaria sobre a forma da representação (eidos) e da simbolização (logos). No primeiro modo, essa formalização estaria relacionada com a gestão mimética (o conhecimento ou a criação não passa de uma reprodução de uma produção primordial, ao mesmo tempo realidade e modelo). Aqui é o domínio do realismo, do naturalismo, da harmonia, ou seja, da investigação que tem a pretensão de encontrar a verdade e a perfeição. É o campo do imaginário "especular" (speculum, espelho) - a busca que persegue uma relação narcisística de isomorfia com relação ao objeto. O seu traço definidor: a ilusão mimética que repousa sobre os efeitos prolongados do "estado de espelho" e da identificação. Na imaginação especular, teríamos assim a formulação de uma teoria da representação que toma a imagem pelo real, por identificação intempestiva do objeto. Sem dúvida, uma teoria ilusória - nos assegura o autor - pois por definição a imagem não é o real; nunca é um reflexo do objeto, mas a de um sujeito que se projeta narcisicamente. Ocorre que essa projeção narcísica do pensamento "realista" no objeto jamais é reconhecida [fim da página 214] por ele. É por isso que o imaginário especular rejeita seu modo de representar como imaginário e apresenta-se sempre como o único acesso autêntico ao real.
O imaginário simbólico, ao contrário, é o resultado da constatação da impossibilidade de acesso ao real. Na impossibilidade de acesso às substâncias, pode-se estabelecer um modo de significação. Assim, para Dubois, os objetos nada têm de objetivo, existem apenas dada a sua situação, o seu sentido num universo de signos. Disso resulta que a função do imaginário simbólico é atribuir sentido a partir de imagens significantes.
O imaginário simbólico é assim o resultado de uma falha do real, de uma ausência que produz um desvio da angústia por meio de um jogo simbólico. Jogo, aliás, que ele reconhece (eis a diferença essencial da ilusão especular) e ao qual se refere incessantemente.
A mimesis, imaginário especular, de origem narcísica, busca reproduzir o real como objeto isomórfico e leva à imagem de Narciso afogado. Quanto ao imaginário fantástico, que recusa todo efeito mimético, coloca deliberadamente como objeto do discurso o que é fictício. Contudo, tanto a via mimética quanto a fantástica são formas de atribuir sentido à relação do sujeito com seu universo de objetos.
Uma vez delimitado o campo do imaginário e estabelecida a distinção entre imaginário especular e simbólico, o autor nos convida a acompanha-lo até o século XVIII francês, dominado por um magna de significações imaginárias denominado de Renascença. A Renascença, segundo Dubois, é um momento privilegiado para estudar o imaginário mimético e fantástico. Trata-se de um momento em que as noções de linguagem, cosmo, espaço, tempo, cidade e do próprio homem são intensamente discutidas e reelaboradas.
A linguagem no século XVI, nos diz o autor, é ao mesmo tempo coisa e forma. Como forma, no sentido aristotélico do termo, ela participa ativamente da atribuição de sentido ao universo. A palavra é o ato fundador do mundo: o Verbo é Deus, a palavra de Deus superpõe-se à função platônica do Demiurgo criador do universo. O verbo divino criou as coisas.
As utopias do Renascimento basearam-se na crença de que um discurso coerente era garantia do sucesso material. Os utopistas queriam fazer acreditar que a ordem do discurso assegurava a ordem das realidades. O racional garantia o real. O erro do racionalismo dessa época era o de confundir a retórica com a razão. A palavra não é a razão, pois sua utilização também serve para acender paixões, para inculcar contraverdades.
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Quanto ao Cosmo, duas são as ordens de metáforas que organizam as representações do Universo no século XVI: a do mundo-corpo e a do mundo-livro. A primeira se associa a um mimetismo antropomórfico ou teomórfico: o mundo é a imagem do homem - é o seu universo-corpo, o universo-habitat ou o mundo é a imagem de Deus. A segunda, faz do universo um instrumento de significação: "o universo é uma canção, um poema, uma peça teatral", ou seja universo-imagem ou universo mensagem. Um terceiro grupo de metáforas, entretanto, se insinua, e representa o cosmo como uma máquina: universo-objeto, universo-relógio. Esta é basicamente a representação do imaginário "científico". Neste momento o pensamento "científico" parece preocupado em encontrar um modo de expressão que elimine a ilusão especular registrada em alegorias corporais e domiciliares ingênuas. O que se tentava era criar uma idéia da natureza entendida fundamentalmente como um objeto de fabricação manual, seguindo um plano de funcionamento associado à mecânica e transcritível no vocabulário da matemática. Esta operação terminava por criar um novo modelo segundo o qual o universo era tido como um engenho mecânico cujas regras de funcionamento deveriam coincidir com as regras de raciocínio de um espírito bem esclarecido. A mecânica celeste era a expressão mais acabada desse modelo pois, mediante uma lógica racional, expulsava o antropomorfismo e o simbolismo de toda cosmovisão.
Nessa nova racionalidade, o discurso "científico" consistia em tratar o outro como objeto, e com ele estabelecer uma relação de domínio entre uma razão completamente ativa e um objeto de conhecimento totalmente passivo. Psicanalizando esse modo de se estruturar do discurso "científico", Dubois sugere que ele remete a uma fase anal do desenvolvimento do imaginário, caracterizado por relações entre senhor e objeto fundadas numa ética da dominação, da purificação e da disciplina.
A noção de tempo na Renascença, segundo Dubois, é construída dentro da mesma lógica . Ela se orienta por três eixos principais. O tempo é, em primeiro lugar, a medida do movimento, algo que pode ser regulado como um relógio. Essa concepção mecanicista funda-se numa mecânica astronômica e expressa-se em fórmulas e esquemas matemáticos. Como figura do mundo, percebido na sua sucessividade, o tempo é medido em unidades matemáticas. É o tempo impessoal, coletivo, no entanto regulado pelos grandes arquétipos culturais: a criação, a queda e a redenção.
Um segundo eixo, estabelece o tempo natural, o da vida cotidiana. Nessa dimensão, a ordem que [fim da página 216] fundamenta o tempo é perturbada pelos caprichos da fortuna e o desregramento dos elementos nos quais reina uma desordem variável. Os desígnios da fortuna interferem com as leis da natureza para determinar histórias "particulares", em que o acaso encontra a necessidade.
Finalmente, um terceiro eixo define a percepção individual do tempo existencial: "o tempo é inseparável da intuição vital e da percepção instantânea. Ele se torna instantâneo, e subjetivo, mas o que perde em ordem e extensão ganha em profundidade e plenitude existencial"(p.148).
Segundo Dubois, a prática do imaginário renascentista prestou uma enorme atenção às noções de phisys e polis. Elas são as categorias que permitem pensar o sentido da própria história da humanidade.
Assim, a história mítica da humanidade apresenta-se na Renascença como uma trajetória que vai do Jardim do Éden (um estado de natureza do qual foi excluído o casal original, com seus descendentes), passando por um estágio intermediário de dissociação e conflito (rivalidade entre Abel e Caim) até o ponto de chegada a uma cidade, a Jerusalém celeste. Essa alegoria é rica de significações imaginárias. Ela sugere o itinerário que a humanidade percorre do estado natural a um estado social, da natureza à cidade, da physis à polis. A cidade aparece aí como a meta final e apresenta-se como um lugar finalmente feliz onde as pessoas se encontram reconciliadas consigo mesmas e com a coletividade.
Contudo, essa imagem da cidade radiosa foi permeada por uma representação oposta onde a cidade é vista como espaço da perversão e maldição. Tal é a representação que se faz de Sodoma, Babel, Tróia, Roma. Em torno desses antípodas, outras imagens se insinuaram sobre a cidade. No Renascimento, a cidade aparece também como um corpo - quer adote deliberadamente a forma do corpo humano, quer esteja o corpo nela representado como metáfora. Ha também a imagem da cidade como figura geométrica, lugar da ordem, da orientação, do previsível e do racional. É a cidade vista pelos projetos de arquitetos e urbanistas utópicos que se esforçarão por elaborar uma outra representação da polis pretensamente neutra e funcional, modelando-se sobre esquemas mecânicos, medidas e proporções aritméticas. Estas formas abstratas e depuradas investem-se de uma pretensão de retirar o corpo da cidade de qualquer contato com o corpo fisiológico e carnal da terra e do homem. O projeto utópico inaugura, assim, a tirania da razão, ao pretender dobrar a realidade às suas leis. Nessa operação, suprime uma dimensão essencial: o tempo e a história.
[fim da página 217]
Há ainda o entendimento da cidade como uma rede de signos, devido ao papel que lhe é dado como meio e termo do itinerário humano através da história. Nesse sentido, a cidade é vista como um texto a ser decifrado. Como corpo, a cidade é vivida; como figura, pode ser descrita; como texto, é lida.
O texto de Dubois termina por concluir que o imaginário renascentista é predominantemente "diurno", tende para o lado da luz, representa-se na hora dos inícios: nascimento, auroras, primavera, infância e juventude. Nele, a razão não é mais um rosário de razões que se desfia, é uma dança do espírito discursivo que se coloca em êxtase divino, "juntando os modelos do ideal às figuras terrestres". Entende o homem como um indivíduo, responsável e capaz de agir sobre o mundo. O ato de conhecer no Renascimento resulta do reconhecimento de que desconhecer implica um erro do saber. "A relação dos homens com os objetos passa pela denominação e integração da "imagem" do mundo num sistema simbólico de representação. A objetividade renascentista afirma que a representação é, de fato, a ante-sala da designação. O acesso ao real passa pelo signo. A ausência de acesso direto ao real é a condição básica dos sistemas de representação, ao mesmo tempo que ocorre a desmitificação da ilusão especular que pretende criar o real tomando a sombra por uma vítima"(p. 242).
O belo texto de Dubois é um instigante convite para todos aqueles que desejam aventurar-se pelos caminhos ainda insondáveis da aventura da imaginação histórica. Questiona a lógica identitária, segundo a qual o logos é uma representação do eidos. Demonstra, enfim, como a racionalidade "científica" está permeada por manifestações fantasmáticas de um sujeito que se projeta no objeto.