É com satisfação que participo da mesa de abertura desta Jornada sobre "A Angústia", atribuição que me foi delegada pelos parceiros do Ato Analítico e que, se me assusta pelo peso da responsabilidade, ao mesmo tempo me instiga, na medida que encontro nestes parceiros o reconhecimento do que causa a minha fala, assim como da implicação deles no que digo.
A contribuição que trago a esta Jornada diz respeito a uma questão que, se não aborda diretamente o tema da angústia, não deixa de estar a ela relacionada. É uma questão que vem me intrigando há algum tempo, como já tive a oportunidade de me expressar em algumas situações. Trata-se de alguns impasses que permeiam a relação entre o discurso psicanalítico e a coletividade organizada que suporta este discurso. O que tenho particularmente em vista é pensar acerca do que sustenta o discurso psicanalítico em certos momentos críticos, nos quais o coletivo institucional necessita se confrontar mais diretamente com as singularidades que o atravessam.
Devo esclarecer a vocês que a abordagem que farei dessa questão tem um viés histórico, que é o ângulo por onde me situo diante das interrogações postas pela psicanálise. Para isso, tomarei como referencial um momento histórico preciso do percurso de Lacan dentro do movimento psicanalítico: o ano de 1953, ano em que ele produz o escrito Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (3) e que há um acirramento na sua crise com a IPA - a Associação Internacional de Psicanálise. A tentativa que faço de resgatar esse momento é em razão de considerar que o vivenciado naquela ocasião sinaliza para situações que o movimento psicanalítico - assim como outras organizações sociais - é levado muitas vezes a ter que se confrontar no plano institucional.
[fim da página 75]
O escrito a que me referi resultou de uma proposta, feita a Lacan pelos organizadores do Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, de desenvolver o tema da fala em psicanálise, Congresso este que se realizou em Roma, em setembro de 1953, estendendo-se também a psicanalistas de língua românica. Em função da localidade do evento e da destinação do texto proposto a Lacan, tal escrito acabou ficando mais conhecido como Discurso de Roma, embora o discurso mesmo não tenha chegado a ser proferido.
Antes de 1953 foi sobretudo a dimensão do imaginário que ocupou Lacan na abordagem das questões pertinentes à experiência analítica, tendo como texto central dessa fase O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu (4), redigido em 1936 para apresentação no Congresso Internacional de Mariembad.
Como sabemos, mesmo posteriormente Lacan sempre fez referência aos pontos fundamentais do Estádio do Espelho, inclusive no seminário d'A Angústia (5), a cujos pontos cruciais certamente retornaremos ao longo desta Jornada. De todo modo, era ao Discurso de Roma que ele se reportava cada vez que fazia menção ao marco do início de seu ensino, ou seja, ao momento a partir do qual, em seu retorno a Freud, ele trouxe algo de propriamente singular e inovador ao avanço do legado freudiano.
Como vou tratar depois, outras exposições anteriores já davam sinais do salto qualitativo que se avizinhava, mas foi no Discurso de Roma que Lacan esboçou, por assim dizer, a estrutura de seu edifício conceitual e de sua teoria de tratamento, onde estão as bases do que ele desenvolveu posteriormente em seus seminários.
Quero inicialmente elencar, de modo sumário, alguns pontos chaves trabalhados ali, para a seguir falar da questão a que me propus desenvolver, pois considero que algo envolvido na difusão e, sobretudo, na transmissão deles por Lacan, está na base do que se desencadeou no plano institucional.
De um modo geral, o acento de Lacan no Discurso de Roma recaiu na valorização de uma leitura científica da obra de Freud, no sentido de formalizar teoricamente as dimensões essenciais da experiência analítica. Mas, paralelo a isso, ele procurou precisar o que é próprio à psicanálise e o que a distingue do discurso da ciência.
[fim da página 76]
Lacan ressaltava ali o papel subversivo que a psicanálise veio desempenhar na subjetividade moderna e sua inadequação aos esforços em fazer dela um instrumento de adaptação do homem à sociedade - a não ser às custas da psicanálise perder o que a situa no centro do movimento que instaura uma nova ordem no interior das ciências. Ou seja, se ela é herdeira da ciência e se serve desta - na medida em que busca formalizar os conceitos de como se desvela o saber inconsciente e na medida em que algo desse saber formalizado se agrega à experiência - por outro lado, ela se distingue da ciência, na medida em que inclui o sujeito, sujeito este excluído do discurso da ciência.
O que especifica uma ciência, como sabemos, é ter um objeto, objeto este que é definido e sobre o qual ela tece uma teoria explicativa e operativa. O que a psicanálise traz de novo é a inclusão do sujeito e, ao fazê-lo, vem pontuar que há um saber que escapa ao saber da ciência: o saber do inconsciente. Este saber que não pode ser aprendido, e que barra a ciência em sua obstinação pelo saber, produz efeitos que, no entanto, não podem deixar de ser reconhecidos pela ciência.
A inclusão do sujeito, pela psicanálise, na perspectiva do que precisou Lacan, é equivalente à recuperação da fala do sujeito. Essa inclusão é o mesmo que possibilitar o prosseguimento do seu discurso, que, tendo começado a ser expresso quando da produção de suas respostas sintomáticas, sofreu uma solução de continuidade. Ou seja, a psicanálise recupera o sujeito ali onde o seu discurso vacila, onde algo traumático e inassimilável pelo simbólico interrompe a dialética desse discurso. No entanto, ela não pode dar conta do que constitui em absoluto a verdade desse sujeito, do mesmo modo que a ciência, embora o aspire, também não pode.
Além de buscar precisar esse aspecto mais global da inserção da psicanálise no campo do saber, Lacan, para avançar na compreensão do funcionamento da segunda tópica freudiana, criou e fez operar a sua própria tópica. Essa tópica, que ficou amplamente conhecida posteriormente já em sua nodulação borromeana, tem, como sabemos, a tessitura tridimensional do real, imaginário e simbólico, dimensões estas que se constituem nas moradas da fala. Elas mantêm entre si uma relação estrutural, sendo intercambiáveis por uma deformação contínua, mas guardando, ao mesmo tempo, uma discordância radical e a não possibilidade de recobrimento de uma pela outra.
A partir dessa tópica e da noção de temporalidade lógica, uma série de proposições foram sendo colocadas e articuladas no seu escrito, proposições estas que, se até hoje nos provocam um grande impacto, para a época eram totalmente inusitadas. Entre elas, eu poderia citar:
[fim da página 77]
Se ele até então parecia poder conviver sem grandes conflitos com a linha adotada pela IPA, sendo inclusive o presidente de uma de suas mais importantes afiliadas - a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) - ao decidir expor seu pensamento, deu um passo decisivo no sentido de se desmarcar do movimento ligado à psicologia do ego, movimento este já solidificado no interior da IPA.
[fim da página 78]
O Discurso de Roma, além de ser um texto bastante rico em questões e produções teóricas, tem a importância adicional de refletir esse momento da trajetória de Lacan. As palavras com as quais ele faz a abertura de seu texto já denotam a carga afetiva que atravessou a sua escrita. Dizia ele: "O discurso que se encontrará aqui merece ser introduzido por suas circunstâncias. Pois ele traz delas a marca" (6). Evidentemente que não é o que afetou Lacan o que proponho discutir com vocês, já que só ele poderia dizer de suas marcas. Mas penso que poderia ser frutífero debater as circunstâncias que envolveram esse momento histórico.
Entre as circunstâncias referidas por Lacan está o fato de que em 16 de junho de 1953 - no intervalo, portanto, entre a proposta do discurso e a realização do evento - houve uma secessão na SPP e Lacan, que estava no centro do conflito, foi destituído da presidência da SPP. As questões que envolveram sua destituição levaram Lacan e outros que discordaram da decisão a se desligarem da SPP. Por extensão, eles foram, em conjunto, desligados da IPA. Só posteriormente à saída da SPP, no entanto, eles ficaram cientes de que um desligamento implicava no outro.
Entre os demissionários da SPP estavam Daniel Lagache (vice-presidente da SPP), Françoise Dolto, Juliette Favez-Boutonier, e Blanche Reverchon-Jouve, que, imediatamente após a cisão, fundaram, juntamente com Lacan, a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP). A SFP, que passou a contar rapidamente com um número expressivo de associados, teve inicialmente negado seu pedido de filiação a IPA, decisão esta que acabou sendo revogada após uma série de negociações com seus dirigentes.
Mesmo reintegrado à IPA através da SFP, o fato é que Lacan foi impedido de proferir a conferência de abertura do Congresso de Roma, como estava previsto. Na alegação dos organizadores o veto devia-se, por um lado, a uma questão de ordem prática: a exposição preparada por Lacan tomaria muito tempo do Congresso. Por outro lado, alegavam que Lacan, junto com seus seguidores, tentava introduzir no Congresso uma concepção diferente.
Não é nada incomum, como sabemos, o aparecimento de tal significante em situações de crise institucional. Penso que pode ser produtivo nos determos em torno dele e tentar tirar daí as conseqüências. Diferente em relação a quê? À linha da IPA? Ao legado de Freud? Ou, simplesmente diferente? Existe Um que... ?
[fim da página 79]
A "sessão curta", procedimento utilizado por Lacan - e motivo já alegado para seu afastamento da presidência da SPP - era também aqui apontado como o "pomo da discórdia". Mas certamente a cisão tinha raízes mais fundas.
Há que considerar que Lacan de fato vinha demarcando um modo próprio, distinto, de se situar diante da psicanálise, singularidade esta que ultrapassava o que se poderia pressupor de suas técnicas de intervenção no setting analítico. Inclusive, é provável que se essa sua "esquisitice" ficasse restrita apenas ao entre-paredes da relação paciente/analista, a questão da "sessão curta" não teria ganho a mesma dimensão.
Considero que o que sobretudo estava em questão, fazendo com que no processo tenha se decantado o significante da diferença, é que Lacan ousou ocupar o lugar da criação. Se não aceitava que se denegasse o criado de Freud, também não se submetia a uma transferência cega a ele, a tomar sua obra como uma cartilha, como muitos fizeram. Certamente, não caberia inventar a psicanálise - patente que só encontra legitimidade em Freud - mas cabia tomá-la em herança e fazê-la dar frutos; e o ousado de Lacan foi instituir-se herdeiro, foi avançar e alargar as trilhas deixadas por seu fundador.
Introduzir na psicanálise termos e articulações significantes que lhe eram peculiares e concernentes ao discurso de sua época, era um modo de Lacan agir contra o enrijecimento e cristalização do pensamento de Freud. Em relação aos rumos da psicanálise, dizia ele ao final de seu discurso:
Ao se fundamentar na lingüística de Saussure, na antropologia de Lévi-Strauss e na filosofia de Descartes, de Heidegger e de Hegel, sem, no entanto, deixar de subverter todos eles, o que ele vinha propondo - e o expressou no Discurso de Roma - era um retorno a Freud, contemporaneizando Freud.
Esse procedimento mesmo, Lacan o situa ali como freudiano. Lembro aqui a idéia de Freud, a partir da experiência com seus pacientes, que ficou conhecida condensada no termo a posteriori. Essa [fim da página 80] idéia talvez possa ser assim resumida: é da própria condição do ser falante operar no presente, retroativamente, por uma atualização criativa do passado. Cada vez que isso ocorre renasce aí um sujeito: onde terá sido o isso - o estranho, o inacessível - o sujeito deve advir.
Pela via desse ato de assunção subjetiva, que é, ao mesmo tempo, o de pôr em ato o isso como algo fora do seu alcance, o sujeito se singulariza, se destaca das massas e do jugo paterno para construir a versão que lhe é própria. Ou seja, mesmo sendo necessário o laço transferencial, a suposição de saber a um Outro - a alienação, portanto - para a assunção do sujeito em seu desejo, é também necessário que haja aí um momento de corte - de separação. Penso ter vindo daí o aforismo posterior de Lacan de que "o analista se autoriza por si mesmo" (8)- aforismo este que não pode ser compreendido fora do paradoxo do que Lacan lhe acrescenta: ou seja, que o analista não pode abdicar da garantia de um Outro - Outro este que podemos nomear de instituição, de significantes de Freud, etc.
Com isso, o que Lacan vem pontuar em Freud é que ambos os passos são necessários e indissociáveis: a alienação e a separação. A alienação marca o limite, a impossibilidade de autonomia. Mas se se atém à alienação não há transmissão - só repetição - já que a transmissão é da ordem do desejo, do experenciado na própria pele, e não da consistência do saber. Na alienação desaparece o sujeito; é na separação que ele ressurge causado pelo desejo e podendo transmitir aquilo que lhe causa.
Seu modo freudiano de retorno aos textos freudianos, Lacan o havia expresso pela primeira vez como o que definia a sua trajetória dias após de, sob o significante diferente, ser afastado da presidência da SPP (9).
Talvez o que Freud trabalha em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (10) nos ajude a pensar sobre a questão da diferença na sua relação com o ato de segregação. Lembro que quando Lacan retomou este texto de Freud no seminário d'A Transferência (11) e no d'O Avesso da [fim da página 81] Psicanálise (12), ele o fez exatamente para pensar o aspecto do movimento psicanalítico e sua relação com a segregação.
No d'A Transferência ele nos lembra que o que estava em questão para Freud quando escreveu aquele texto - como registrou em suas cartas da época - era seu receio quanto a haver uma inconciliabilidade entre formação grupal e discurso analítico, era seu temor quanto a um enquistamento da psicanálise quando esta se colocasse mais efetivamente em relação com as associações de analistas.
O centro da preocupação de Freud - e que Lacan aborda no capítulo VIII d'A Transferência - era a perda do caráter revolucionário da psicanálise. Tratava-se, em outros termos, da cristalização dos seus conceitos teóricos e técnicos, na forma de preceitos, propiciada pelas organizações se formarem segundo o "narcisismo das pequenas diferenças", além de tenderem a só se sustentar pelos ideais. Embora meu texto não contemple a questão, talvez fosse interessante discutir como Lacan propôs enfrentar esse impasse, pela via dos cartéis, na Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Analista da Escola (13). Mesmo que não se possa falar com garantia sobre a operatividade dos cartéis sem passar pela experiência e sem um tempo maior de avaliação desta experiência, o fato é que ali ele dá um passo importante e inovador no sentido de tentar responder como organizar um grupo de alienados-separados.
No seminário O Avesso da Psicanálise, Lacan retoma mais uma vez a análise de grupo feita por Freud para sublinhar o aspecto de que, regida pelo imaginário, a ação de irmanar-se em torno de ideais é, em si mesma, ação de segregar.
É nesse âmbito imaginário de grupo que vejo se situarem a polêmica e a cisão geradas em torno da "sessão curta" de Lacan. Tomado nesse âmbito imaginário - e não no de sua eficácia terapêutica - esse procedimento era um elemento fácil de ser atacado. Por um lado, fragilizava a imagem de Lacan, que ganhava a roupagem de mercenário. Tratando a transferência como uma mera questão de disputa de mercado, acusavam-no de pretender abarrotar seu consultório de pacientes.
Por outro lado, a celeuma fortalecia a imagem de seus opositores. Como alegavam, a sessão curta não encontrava respaldo na orientação técnica de Freud, orientação esta que a SPP e a IPA teriam a suposta missão de resguardar. No discurso dos opositores, portanto, a exclusão [fim da página 82] de Lacan se fazia em nome de um pretenso "bem comum" - o de salvar o pai da psicanálise - um "nobre ideal" que teria o suposto poder de zerar a dívida, de redimi-los de seus atos.
As tentativas sempre presentes nos grupos de salvar o pai, como sabemos, partem da suposição de haver um ideal sem falhas, capaz de recompor com eficácia o sintoma grupal. Mas se o apelo ao pai ideal tem como correlato a tentativa de manutenção do laço filial e fraterno no interior do grupo, isso também corresponde a que cada um de seus membros abra mão da particularidade que institui o desejo. O pai ideal oferece a aparente garantia do "bem comum", ao preço de manter seus olhos fechados para o desejo, na medida que é próprio ao desejo instituir a singularidade que aponta as falhas do ideal suposto ao pai.
Por isso, talvez a gente possa dizer que uma atuação nas instituições condizente com a psicanálise requer a relativização do poder e do fascínio que este exerce. Senão cai-se no engodo e nas armadilhas do laço transferencial, transpondo para o campo político, em forma de realidade, a posição de prestígio e privilégio suposta a um dos lados da relação transferencial.
Em nome do "bem comum", Lacan, que se propusera a tornar público no Congresso de Roma o sentido da sessão curta em sua aplicação técnica, foi impedido de fazê-lo e, segundo ele, a equipe organizadora "empregou para esse fim todos os meios em seu dispor" (14).
Como ensinara Freud em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, na suposição de que a paz do acordo entre os irmãos traz a garantia do amor do pai, o grupo é condenado a não avançar em idéias, já que, com a esperança de preservar essa dádiva paterna, tende a produzir bodes expiatórios, a extirpar o que lhe é dissonante e que dá sinais de subverter esse estado de adormecimento.
Aquela análise de Freud, quando se refere aos mecanismos de defesa da Igreja, é, a meu ver, preciosa e extremamente atual. Ela está na base do nosso cotidiano, nos diferentes modos de inserção na vida coletiva e, se não justifica certos atos, nem muito menos apazigua, ajuda a pôr em causa as conseqüências de nossos próprios atos.
Depois de Freud não nos é dado mais desconhecer que aquele que segrega tem sempre algo a ver com o que é segregado. Lacan, avançando, nos faz ver que o segregado é, na realidade, a própria posição do objeto a na economia do sujeito.
O objeto a, como ficou conhecido por seu ensino, é o resto de uma operação simbólica, que incide sobre o imaginário - é um resíduo real [fim da página 83] sem qualquer consistência, que tem como base uma radical dissimetria entre o eu e a imagem corporal. Lacan também se referia a ele como outro último, como alteridade radical e como uma cifra, para falar de um diferencial não-especularizável, que resulta da necessária - e não contingente - falta de correspondência entre aquilo que o eu busca na imagem e aquilo que é encontrado. Como Lacan se expressa no seminário d'A Angústia: "o que é chamado não poderia aí aparecer" (15).
Esse diferencial excluído do reflexo do espelho, cujo caráter essencial é o de resistir a qualquer especularização e simbolização, e cuja ausência tem como efeito a função psíquica de causa do desejo, pode muitas vezes, no entanto, ameaçar irromper e provocar uma colagem do eu com a imagem. Tal ameaça de obturação da falta fundante do desejo, com tudo o que ela comporta de estranheza radical, encontra, como uma de suas formas de defesa, o mergulho no estado de angústia, mas pode, outras vezes, buscar sua saída pelo expurgo no real.
No primeiro caso, ao preço da angústia, da dor de existir, o sujeito salva o desejo, firma um compromisso com aquilo que lhe causa, já que, embora indizível, a angústia é, como diz Freud, um sinal da perda do objeto, vindo, com este sinal, fazer a tradução subjetiva possível do que lhe é radicalmente estrangeiro. No segundo caso, porém, diante da ameaça de intervenção do objeto, cai-se no descompromisso da atuação: o de que se trata é da ordem do "eu não tenho nada a ver com isso".
Assim, daquilo que é segregado por condição de estrutura, há uma diferença de peso se o encarnamos em bodes expiatórios - como é comum à sociedade fazer ao expurgar judeus, prostitutas, loucos, negros, homossexuais, etc - ou se o reenviamos à posição de objeto causa do desejo.
O exposto até aqui me leva a interrogar acerca do que possibilita o manejo da tensão que se estabelece entre diferentes posições discursivas presentes no coletivo institucional: a de sustentar a causa própria do desejo, onde a falta radical se transmita como motor do avanço criativo; a de querer salvar o ideal paterno, como principal sustentáculo do frágil amalgamento grupal; a de pretender alçar-se à condição de comando, numa pretensa incorporação da lei; além da atuação no real pelas vias segregativas, num exercício "legislado" e sutil da tirania coletiva. Esta é uma questão que gostaria de trazer para o debate.
Nesse sentido, para finalizar, tomo a questão por outro ângulo: o do ato de Lacan.
[fim da página 84]
Há que considerar que o criado de Lacan colocara de fato a IPA em questão em seu ideário de psicanálise e modo de organização. O paradoxal é que a IPA estava posta em questão por aquele que idealmente, como presidente da SPP, estaria em lugar de representá-la, de ser uma espécie de "soldado maior" no interior dessa organização e fora dela.
Como poderíamos ler esse ato de Lacan, já que há aí também um ato que lhe concerne? Será que o passo dado por ele com sua virada teórica se colocava apenas no sentido de se desmarcar da IPA? A troco de quê? De um modo diferente de pensar? De fazer valer um gênio insubordinado?
Para pensar estas questões é interessante voltar aos fatos. Lacan, segundo apurou Roudinesco (16), lutou até o último momento contra a cisão com a SPP, só se rendendo ao desligamento desta, e à fundação de uma sociedade paralela, diante de sua destituição da presidência. Além disso, como já foi dito, não tinha conhecimento de que seu desligamento o colocaria automaticamente excluído da IPA, tendo inclusive se empenhado para ser novamente integrado a IPA através da SFP.
Por isso, a meu ver, se Lacan firmava sua diferença, apontando o caráter ficcional de corpus da IPA, ele ratificava, ao mesmo tempo, sua dívida simbólica para com esta, sublinhando, assim, a não equivalência entre singularidade e autonomia, entre separação e descompromisso. Ao insistir em manter seu vínculo com a IPA, assinava um pacto com o estranho como algo dele e nele, e não como algo que lhe fosse puramente exterior. Ou seja, se desmarcava da IPA marcando-se dela. Afirmava, portanto, a não descontinuidade entre interior e exterior, entre o singular e o coletivo.
Quanto a fazer emergir a diferença do lugar da presidência da SPP, tendo a pensar que estava também em jogo um ato propriamente analítico. Não estaria Lacan colocando em xeque o próprio lugar da representação, isto é, trazendo à luz a consistência evanescente desse sustentáculo de garantia da IPA? Não estaria ele, com seu ato, antecipando sua proposição de "servir-se do pai para ir além do pai"?
Lacan, como pode ser lido em suas falas desde o Discurso de Roma, considerava que uma política de organização institucional de psicanalistas não está à margem do discurso psicanalítico. Ali, ele inclusive dissera que "para ascender às causas da deterioração do discurso [fim da página 85] analítico, é legítimo aplicar o método psicanalítico à coletividade que o suporta" (17).
Certamente, não foi por mera coincidência que a crise na e com a SPP tenha dado seus primeiros sinais logo após sua exposição, no Colégio Filosófico, sobre O Mito Individual do Neurótico(18). Foi nessa exposição - também nomeada de Poesia e Verdade e realizada em março de 1953 - que ele utilizou pela primeira vez o termo Nome-do-Pai.
Dizia ele ali que a histórica identificação que é feita entre a pessoa do pai e a lei está calcada na suposição de "uma relação simbólica simples, onde o simbólico recobriria o real. Para isso seria necessário", adverte Lacan, "que o pai não fosse somente o Nome do Pai, mas representasse em toda a sua plenitude o valor simbólico cristalizado na sua função...". E complementa: "...O pai é sempre, de algum modo, discordante relativamente à sua função. Existe sempre uma discordância extremamente nítida entre o que é percebido pelo sujeito no plano do real e a função simbólica" (19).
Com o Nome-do-Pai como lugar da lei, Lacan demarcava simultaneamente, portanto, o fora-da-lei, o real de um pai na sua função de separador. Dito de outro modo, demarcava a lei do pai como aquela que interdita o que, por condição da linguagem, já estava posto como impossível ao sujeito: o real enquanto tal.
Não terá sido o real, esse vazio de saber, que Lacan fazia entrar em jogo no interior da organização? Ao se desmarcar do lugar simbólico da representação, Lacan operava aí um corte: o corte entre pai real e pai simbólico. Demarcava na SPP aquilo que emerge como insuportável na formação grupal: o real na sua função de separação, de desaglutinador da coalescência do imaginário coletivo.
Ele diria mais tarde no seminário d'O Ato Analítico:
E, já no Discurso de Roma, ele dissera:
Esse ato de expor seu julgamento - não importa se consciente ou não por parte de Lacan - certamente exerceu para alguns a função de interpretação, mas o que apareceu sobretudo, como efeito, foi a cobertura do real com uma vestimenta imaginária e a conseqüente expulsão de Lacan. Esse efeito de banimento, que não é nem um pouco incomum no interior dos grupos, é pelo menos paradoxal: afasta-se do coletivo o que de antemão já estava dele apartado.
O que se faz entrar aí em jogo, Lacan já antecipara n'O Mito Individual do Neurótico. Dizia ele ali: "em todas as relações imaginárias o que se manifesta é uma experiência de morte" (22). Retomando as idéias expostas no Estádio do Espelho, Lacan chamava ali a atenção para o aspecto de que o mundo especular imaginário se expressa pela negatividade. A presença do outro surge como uma sombra que se agiganta sobre o eu, que o arrebata, desencadeando uma luta de morte, onde bem está o eu ou bem está o outro.
No entanto, como adverte Lacan, "para que a dialética da luta de morte, da luta de puro prestígio, possa simplesmente iniciar-se, é necessário que a morte não seja realizada, é necessário que ela seja uma morte imaginada, porque o movimento dialético cessaria por falta de combatentes" (23).
Penso que é dessa interrupção no movimento dialético que se trata, no caso do afastamento de Lacan da cena do combate. Onde emergiu o real, onde o vazio de saber veio à tona, houve falência na invenção de um significante novo, com a conseqüente atuação.
Só que uma atuação - não podendo escapar do que ela deve à ordem simbólica - implica em novas conseqüências. Se a morte não é simplesmente imaginada, se ela não toma a forma de uma versão criativa de sujeito - como a do mito do Herói-poeta proposto por Freud em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (24) - o que é extirpado em um canto retorna no outro como fantasma, cujo poder persecutório e de fascinação é ainda maior.
Assim, embora Lacan tenha sido vetado em expor suas idéias em Roma, seu trabalho ganhou a cena, sendo o de que mais se falou no Congresso. Quanto à IPA, será que é possível dizer que o fantasma de Lacan a abandonou, mesmo após a sua definitiva excomunhão, 10 anos [fim da página 87] depois? Isso seria diferente em outras instituições, inclusive nomeadas lacanianas, que tiveram com ele, ou com seus supostos representantes, uma relação semelhante?
O interessante é que, até seus últimos dias, Lacan não só sublinhou reiteradas vezes da radical distinção entre o imaginário e o real, como se esquivou de ser destinado à condição de Outro simbólico, daquele que deteria um saber constituído. Aos que tentaram tomar literalmente suas falas, ele os comparou ao "âmbar que guarda a mosca por nada saber de seu vôo" (25).
Para ele, seu destino era o do objeto a. O objeto a em Lacan, como me referi anteriormente, é algo que, se não sofre a metamorfose destrutiva da encarnação, é puro resto inconsistente, cuja função é a de causa do desejo, sustentáculo de enodamento do discurso analítico.
Conforme se tornou público, foram estas as suas últimas palavras: "...sou obstinado... eu desapareço" (26).
O fenômeno contemporâneo, quer de endeusamento de Lacan - com tentativas inescapavelmente frustradas de obturar o vazio deixado por seu efetivo desaparecimento - quer de caça ao seu fantasma e ao de seus supostos representantes, parece querer jogar sempre, para mais adiante, o que ele anunciava em seu leito de morte.
Paradoxalmente, que Lacan descanse em paz, parece ser a condição que torna possível o prolongamento da obra freudiana dentro do espírito que Lacan concebeu. Ou seja, que a psicanálise se transmita para além do ponto onde ele a levou, do ponto em que, para Lacan, algo se instituiu como seu próprio limite. Se o seu ensino convoca à continuidade da produção e à transmissão de saber, não é por ele ser insuperável no que diz, mas é justo porque compele a confrontar com a situação paradoxal de que nenhum ensino fala do que é a experiência psicanalítica, de que esta não se dissolverá no saber que a propaga.
Meus votos são os de que esta Jornada constitua-se mais uma vez num espaço de produção acerca desta experiência. Se o dizer desta experiência só pode ser um meio-dizer, por isso mesmo é necessário dizê-lo. Obrigada.
LAÇO SOCIAL E SEGREGAÇÃO: OS PRIMÓRDIOS DA EXCOMUNHÃO DE LACAN
Trabalho apresentado na IV Jornada do Ato Analítico, sobre os conflitos que a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), instituição filiada à Associação Internacional de Psicanálise (IPA), atravessa em 1953 e que implicam na destituição de Jacques Lacan da presidência da SPP e no seu conseqüente desligamento daquela instituição. A questão central tratada na exposição refere-se aos paradoxos e impasses da relação entre o discurso psicanalítico e as ações institucionais do coletivo organizado que sustente este discurso.
ABSTRACT
SOCIAL BOND AND SEGREGATION: THE BEGINNINGS OF LACAN'S EXCOMMUNICATION
This article was presented at the IV Study Day of Analytical Act, focusing on the conflicts which the Société Psychanalytique de Paris (SPP), a member institution of the International Psychoanalytic Association (IPA), lived Through in 1953 and which resulted in the destitution of Jacques Lacan from the presidency of SPP and, consequently, in his leaving that institution. The central question which this article deals with are the paradoxes and impasses in the relation between the psychoanalytical discourse and the institutional actions of the organized body which gives sustenance to this discourse.
1) Versão modificada do texto A Relação de Objeto na Relação Institucional, apresentado na abertura da "IV Jornada do Ato Analítico - Transmissão Freudiana: A Angústia", realizada nos dias 14 e 15 de junho de 1996, em João Pessoa, Paraíba.
2) Membro do Ato Analítico - Transmissão Freudiana e pesquisadora do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade Federal da Paraíba.
3) LACAN, J. (1988). Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, In Escritos. São Paulo: Perspectiva.
4) LACAN, J. (1990). O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu, tradução de ELIA, L. F. (do texto publicado nos Écrit. Editions du Seuil: Paris, 1966), xerox.
5) LACAN, J. Seminário X: A Angústia, inédito, xerox de transcrição.
6) LACAN, J. Função e Campo..., op. cit., p. 102.
7) LACAN, J. Função e Campo..., op. cit., pp. 185-186.
8) LACAN, J. (s.d.). Proposição de 9 de Outubro de 1967, in Documentos para uma Escola - Rev. Letra Freudiana, ano 1, no 0, Rio de Janeiro: Letra Freudiana, s.d.
9) LACAN, J. Conferência: O Imaginário, o Simbólico e o Real, realizada em 8 de julho de 1953, na Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP).
10) FREUD, S. (1976). Psicologia de Grupo e Análise do Ego, in Obras Completas - vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.
11) LACAN, J. (1992). Seminário VIII: A Transferência. Rio de Janeiro: Zahar.
12) LACAN, J. (1992). Seminário XVII: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
13) Op. cit.
14) LACAN, J. Função e Campo..., op. cit., p. 102.
15) Op. cit., Lição 4, p. 2.
16) ROUDINESCO, E. (1986). A Grande Divisão. In História da Psicanálise na França - A Batalha dos Cem Anos - vol. 2 (1925-1985). Rio de Janeiro: Zahar, pp. 242-296.
17) LACAN, J. Função e Campo..., op. cit., p. 109.
18) LACAN, J. (1987). O Mito Individual do Neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim.
19) Op. cit., pp. 72-73.
20) LACAN, J. Seminário XV: O Ato Psicanalítico. s. r., p. 8.
21) LACAN, J. Função e Campo..., op. cit., p. 103.
22) LACAN, J. O Mito Individual..., op. cit., p. 74.
23) Op. cit., pp. 75-76.
24) FREUD, S. Psicologia de Grupo..., op. cit., pp. 170-172.
25) LACAN, J. (1989). Prefácio, in LAMAIRE, A. Jacques Lacan: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Campus.
26) ROUDINESCO, E. (1994). Jacques Lacan - Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento. São Paulo: Cia. das Letras, p. 406.