Durante longos anos, lutou-se no Brasil pela democracia, tout court, como oposta ao regime de ditadura militar. Uma vez finda a ditadura e restabelecido, pelo menos formalmente, um regime democrático de corte liberal, hoje o debate e as lutas políticas dão-se em grande parte em torno do fato de que não existe, na prática, a democracia tout court, mas sim diferentes compreensões e práticas da democracia. A derrota praticamente universal do "socialismo real" de inspiração marxista e com ele de qualquer concepção de uma "ditadura do proletariado" ou outra semelhante, eliminou praticamente da cena política brasileira qualquer grupo ou tendência significativa que não tenha (ou pelo menos que não declare ter) a democracia, no mínimo a democracia liberal representativa, como opção tática e estratégica. As críticas da esquerda à democracia liberal representativa dirigem-se agora à sua insuficiência e propõem aprofundá-la, estendê-la, complementá-la, mas não sua abolição ou sua substituição. Por outro lado, já não há manifestações explícitas e significativas de tendências fascistas. Da parte de todas as forças políticas, o que há são declarações e uma prática concreta, pelo menos aparente, de fidelidade à democracia, enquanto respeito formal às "regras do jogo", como a definiu Norberto Bobbio (1988).
A luta contra a ditadura, a proliferação de movimentos e organizações populares na última década do regime militar e de inúmeras iniciativas de educação política desenvolvidas nesse mesmo âmbito e período, o entusiasmo suscitado pela campanha popular por eleições diretas e pela primeira eleição presidencial pós-ditadura e posteriormente pela experiência da destituição do presidente eleito, entre outros fatos, despertaram um novo e amplo interesse popular pela política e colocaram a questão da democracia na ordem do dia.
Uma nova atenção e vigilância popular quanto ao funcionamento das instituições democráticas, especialmente dos parlamentos (nacional, [fim da página 23] estaduais e municipais), permitiu a percepção e a crítica popular, fortemente estimulada pelos meios de comunicação social, a velhas práticas políticas tradicionais no Brasil, como a gestão "patrimonialista" das coisas públicas, o "fisiologismo" e a corrupção. Nesse contexto, a crítica às insuficiências da democracia representativa e o interesse por uma forma de democracia que vem sendo chamada "participativa" ganharam grande relevo e talvez mesmo uma hegemonia no ideário político brasileiro, de tal modo que propostas como as dos conselhos populares ou paritários de gestão e fiscalização dos serviços e políticas públicas, dos "orçamentos participativos", e outras semelhantes lançadas pela esquerda e, em alguns casos, postas em prática a nível local tornaram-se lugar comum no discurso de propaganda política e no rol das promessas de todos os partidos e candidatos, praticamente sem exceção.
Os movimentos sociais populares, que muitos cientistas sociais consideram em profunda crise ou até em vias de desaparição, na realidade estão vivos e atuantes, como observam todos aqueles que se relacionam direta e regularmente com esses movimentos, embora muito menos visíveis do que o eram até à década de 80. A razão dessa pouca visibilidade está numa mudança profunda em sua maneira de situar-se e atuar, em suas perspectivas, estratégias e formas de ação. Aqui, também, os procedimentos democráticos passaram a fazer parte integrante não somente de suas finalidades, mas também de seu método de ação, e as passeatas ruidosas e reivindicativas que enchiam as ruas deram lugar a um paciente esforço de conquistar espaço nas instituições mais ou menos participativas (Conselhos, câmaras, etc..) que se estabeleceram a partir da Constituição promulgada em 1988. Trata-se de um esforço de aprender a relacionar-se e a fazer valer seus direitos de cidadãos frente aos representantes políticos eleitos ou aos burocratas do Estado, de exercer alguma forma de controle sobre as instâncias governamentais, de construir propostas políticas setoriais capazes de ser imediatamente negociadas com o poder público, enfim, de passar de uma política meramente reivindicativa ao que eles chamam uma política "propositiva". Enfim, os movimentos e organizações sociais populares hoje no Brasil, salvo raras exceções, já não apostam na "tomada do poder", pela força ou através de eleições, como um evento com data marcada que tudo mudaria, e nem no confronto puro e simples com o poder, mas sim numa penetração paulatina e progressiva nos espaços de poder político a fim de aí lutar, através da negociação segundo "as regras do jogo" (apoiada, é certo, pela pressão popular nas ruas quando necessário), pela imposição dos interesses populares e públicos sobre os interesses privados das "elites" atualmente no poder. "Desprivatizar o [fim da página 24] que é público", "cidadania ativa" e "luta institucional" são palavras de ordem fundamentais dos movimentos sociais populares hoje (2).
Ao enfrentar concretamente essa tarefa, uma vez tendo conquistado assento nos diversos tipos de conselhos, por exemplo, os membros dos movimentos populares deparam-se com uma série de dificuldades, entre as quais a mais comumente apontada é o que eles mesmos consideram sua falta de preparo para a negociação, em outros termos, sua carência de capacidade de argumentação, sobretudo frente aos burocratas, técnicos governamentais e intelectuais em geral que se encontram, muitas vezes, do lado oposto da mesa de negociação. Mesmo quando detêm considerável volume de informação técnica sobre as questões em pauta e têm convicção da justeza e da viabilidade de suas propostas, os representantes populares sentem-se muitas vezes incapazes de defendê-las eficazmente, obter o apoio dos indecisos, enfim, ganhar a disputa ou pelo menos intervir na discussão com segurança e intensidade. Significativamente, essa dificuldade não tem produzido, de maneira geral, um abandono dessa via de ação política, mas, pelo contrário, uma persistência e uma enorme demanda de educação, de formação específica que possa suprir aquela carência. Essa demanda têm provocado uma série de iniciativas da parte de algumas organizações não governamentais (ONG's) dedicadas à educação popular e mesmo de departamentos de extensão de algumas universidades brasileiras, no sentido de oferecer oportunidades de formação para a "participação em políticas públicas" para os movimentos sociais populares. Provavelmente os interesses desses educadores em manter um papel de importância junto aos movimentos populares retroagem sobre essa demanda, impulsionando-a e contribuindo para evitar que os movimentos desistam da via democrático-participativa. Mas isso não torna menos real a persistência dos movimentos nesse caminho e sua demanda de formação.
Está implícita nesta atitude, tanto dos movimentos populares quanto dos educadores que se comprometem com esse projeto, a convicção de que qualquer cidadã ou cidadão adulto normal é basicamente competente para participar satisfatoriamente de processos decisórios, desde que tenha a possibilidade de atualizar essa competência, através de algum tipo de treinamento, para ser capaz de apresentar um desempenho (performance) adequado.
[fim da página 25]
De fato, como diz André Berten (1997), não há nenhum sentido em propor-se uma democracia participativa ou deliberativa se esta não estiver baseada numa competência fundamental de todos os indivíduos que compõe a sociedade e se não se puder fundamentar em alguma medida a convicção dessa competência. A existência de competências cognitivas básicas, comuns a todos os indivíduos, é uma condição de possibilidade para a proposta de uma democracia deliberativa que, sem isso, não seria mais do que uma utopia idealista:
Como já dissemos, parece haver hoje no Brasil, nos meios que se interessam pela questão da democracia, uma unanimidade implícita quanto à existência dessas competências em todos os cidadãos, ao menos como possibilidade a ser desenvolvida. Cremos, porém, que essa unanimidade é apenas aparente, pois, apesar de quase ninguém ousar negá-la explicitamente, podem-se observar práticas que a negam tacitamente, mesmo entre aqueles que fazem profissão de fé democrática, especialmente em grupos de intelectuais reunidos em algumas ONG's que se auto-constituem como "legítimos representantes dos interesses populares" e reivindicam para si mesmos, em nome de sua competência exclusiva ou superior, o lugar de representantes desses interesses nas instâncias deliberativas. Ouvem-se da parte destes agentes freqüentes referências ao "imediatismo" popular, à sua "estreiteza de vistas", "ambigüidade" e outros "defeitos" semelhantes, e a alegação de que estas são características inseparáveis da mentalidade popular, que só podem ser superadas através de uma formação científica, o que equivale a dizer, nesse contexto, que só podem ser superadas pela eliminação justamente do que é "popular" e que os indivíduos "populares" não têm, por definição, competência para a democracia deliberativa, a menos que o deixem de ser.
Nossa posição, ao escrever este artigo, é uma posição interessada: acreditamos que a democracia participativa, abrangendo todas as [fim da página 26] camadas populares, é o melhor caminho para promover justiça na sociedade em que vivemos e, portanto, cremos em suas condições de possibilidade como as que foram acima definidas. No entanto, se a simples convicção interior, na verdade muito mais uma opção de caráter ético, pode ser suficiente para impulsionar-nos a um tipo de prática política e pedagógica, ela não é suficiente para se assegurar algum êxito nessa prática, já que o próprio debate sobre essas condições de possibilidade, ou seja, sobre a existência de uma competência popular fundamental para o debate democrático-deliberativo, é parte da própria luta política democrática. Convencer a sociedade e, sobretudo, os que detém poder nela, principalmente poder ideológico (como os intelectuais de toda espécie...), do direito/possibilidade de todos os cidadãos participarem (não pode ser um direito se não for efetiva e praticamente possível) é parte da própria luta política democrática e, para essa luta, a simples convicção pessoal é uma arma, ainda que necessária, insuficiente. É uma necessidade para os que defendem a competência popular o poder usar em sua defesa justamente o tipo de argumentos próprios daqueles que se opõem a ela: argumentos científicos.
A questão que se coloca, então, para aqueles que crêem na competência popular, tanto para que possam fundamentar métodos de educação capazes de implementar o seu desempenho na participação democrática, quanto para argumentar em favor da competência popular para a democracia deliberativa frente aos que a negam, é a de saber se a convicção de que existe uma competência popular fundamental é puramente ideológica, ou se ela pode ter uma defesa em termos científicos.
Aqueles que defendem a participação crêem na capacidade de cada cidadão, justamente por sua posição diferente no mundo social, de compreender e expressar pontos de vista próprios, com coerência e racionalidade, a partir de uma experiência da realidade do mundo social que é própria à sua posição. A posição e experiência do mundo dos "populares" é certamente diferente daquela dos portadores de formação científica (o que implica não somente diferenças de "saber", mas de poder e de posição na estrutura de classes da sociedade). Assim, além da justificativa ética para a participação, pesa o fato de que uma interpretação correta da realidade e uma resposta decisória adequada dependem justamente da consideração desses diferentes pontos de vista. A proposta da participação implica em que não somente aqueles que têm uma formação científica mas também os "populares' são capazes de observar (e "sentir") a realidade social e pensar e expressar-se sobre ela de maneira racional, desde que não se aprisione a [fim da página 27] "racionalidade" nos estreitos limites da "norma" representada pelo saber científico. Implica ainda que sejam capazes de compreender também, de algum modo, o ponto de vista expresso pelos outros e engajar com eles uma discussão "racional" em vistas a uma decisão também racional. O saber popular seria capaz de contribuir para a correta interpretação da realidade de maneiras que o saber científico sozinho não pode:
Está incluída aqui a idéia de que o saber popular não se diferencia do saber científico em termos de grau (o saber popular seria como uma forma incipiente, rudimentar do saber...) mas sim de qualidade, é diferente, por resultar de um sujeito que se encontra no mundo social numa posição - ou ponto de vista - outro que o do cientista, e por isso a relação entre eles seria de complementaridade. Idéias como estas têm estado na base do trabalho de educação popular desenvolvido por vários agentes, nas últimas décadas na América Latina, e importa demonstrar que elas são defensáveis. É provável que os processos e as expressões do saber popular quase nunca resistam a uma crítica que tome por critério um modelo de racionalidade puramente formal. Porém, existe a tese, com base em pesquisas empíricas, de que a definição da racionalidade não pode estar apenas no seu aspecto formal e de que a racionalidade de um pensamento depende do domínio e do contexto em que aplica. Isto quer dizer que há várias racionalidades possíveis ou uma "pluralidade de modelos de competência" (Berten, 1997: 24) . Esta tese evidentemente joga a favor da convicção da competência popular.
A favor da posição contrária, está a idéia de que há uma diferença radical, entre o saber popular e o saber científico - um "corte epistemológico" nos termos de Bachelard, retomados por Althusser e pelo Bourdieu de Le métier de Sociologue (1968) ou uma "demarcação" nítida nos termos de Popper (Berten, 1997) - caracterizando-se o saber popular como necessariamente confuso, ambíguo, impreciso, particularista, irracional, ideológico, etc. e, portanto, equivocado ou demasiadamente imperfeito quanto a dar conta da realidade. Contrariamente, o saber científico, na sua característica de formalização, [fim da página 28] seria o modelo da racionalidade e o único verdadeiramente adequado ao conhecimento do real. Uma democracia participativa na qual ambas as palavras, a científica e a popular, tivessem os mesmos direitos de expressão e seus portadores os mesmos direitos deliberativos seria absurda, perigosa para a sociedade (inclusive para os populares) ou, no mínimo, uma perda de tempo. Essa idéia de uma total descontinuidade ou hierarquia estrita entre saber popular e saber científico, evidentemente, não serve para fundamentar uma democracia participativa e, portanto, não interessa ao objetivo deste texto desenvolver aqui seus argumentos.
No entanto, não se trata de negar que existam, "no tecido do saber, soluções de continuidade. (...) Que há efetivamente tais discordâncias, ninguém o negará. Mas estas não implicam necessariamente em diferenças radicais ao nível das competências cognitivas ou racionais" (Berten, 1997: 126). Tais diferenças, porém, "poderiam ser compreendidas como diferenças de desempenho" e, por outro lado, poderiam justamente indicar a existência de uma continuidade em termos de competência básica, pois "se a aprendizagem permite a certos indivíduos o acesso a saberes muito sofisticados e muito distanciados dos saberes intuitivos comuns, não é exatamente porque essa aprendizagem se apoia sobre competências prévias...?" (Berten, 1997:16). Aliás, basta, para fortalecer esta tese, a observação de fatos freqüentes como, por exemplo, o procedimento perfeitamente racional e sistemático do mecânico prático, quando levamos nosso carro à oficina e lhe dizemos que tem um ruído estranho ou que perde a força nas ladeiras; o mecânico, certamente um exemplar da categoria dos "populares", antes de empunhar uma ferramenta, pensa, levanta uma série de hipóteses, baseadas em suas observações anteriores ou informações que detém, e então age praticamente segundo suas hipóteses, testando-as na prática, a começar pela mais provável ou mais comum, descarta-a em caso de falha no teste, passa à hipótese seguinte, e assim sucessivamente, num procedimento análogo, ainda que muito menos complexo e sobretudo menos formal, ao do cientista que levanta e testa (no seu laboratório físico ou no seu "laboratório mental") suas hipóteses construídas também pela reflexão informada pela observação. Podemos ser altamente racionais, ter formação científica e filosófica sólidas e, talvez por isso mesmo, ser incapazes de um saber racional sobre o problema que tem nosso automóvel, incapazes de levantar hipóteses racionais nesse caso ou até mesmo de descrever com clareza o fenômeno mecânico que nos aflige. Há bons e maus mecânicos (nosso velho Volkswagen que o diga...), dotados de mais ou menos informação, experiência ou capacidade de observação, capazes de levantar hipóteses mais ou menos complexas, etc.. ou seja, capazes de melhor ou pior desempenho, mas o procedimento é basicamente o mesmo, e certamente [fim da página 29] dotado de racionalidade. As práticas do mundo popular estão cheias de exemplos semelhantes, de procedimento que implicam em uma reflexão sistemática e racional, presentes mesmo em sujeitos que, em outros aspectos de sua mentalidade, como no aspecto religioso ou em suas relações familiares e afetivas, poderiam ser caracterizados como não-racionais - aliás, como acontece também freqüentemente com intelectuais e cientistas.
Um modo corrente de fundamentar teoricamente a tese da continuidade entre o saber popular e o saber científico é o que recorre à uma filosofia da história, segundo a qual o próprio processo histórico se constitui num processo de aprendizagem social, que resulta numa progressiva racionalização ou num contínuo progresso da razão, ou melhor, da Razão com maiúscula, essencialmente a tese iluminista, que implica na idéia de que o saber científico vigente em nossa sociedade é expressão superior da racionalidade, resulta do desabrochar histórico necessário - ou de um desenvolvimento lógico irreversível, nos termos de Habermas - de uma racionalidade humana "natural", inata, e implica em que os conhecimentos assim produzidos estejam disponíveis para todos os indivíduos, de tal modo que a sociedade no seu conjunto se vai tornando cada vez mais capaz de compreender, discutir e decidir racionalmente sobre a realidade (Berten,1997; Habermas,1995). As teses deste tipo, porém, que implicam num concepção finalista ou evolucionista da história, são hoje dificilmente defensáveis.
Há outras teorias, no campo da lingüística e da psicologia cognitiva, que também fundamentariam a tese da continuidade em competências inatas em todos os indivíduos, de competências que estariam inscritas na "natureza humana", apesar das diferenças de desempenho (performance) observadas, sejam elas lingüísticas ou gramaticais - que fazem com que ao começar a falar as crianças empreguem naturalmente as regras gramaticais básicas e universais, presentes em todos os idiomas - como as defendidas por Noam Chomsky, ou as faculdades racionais e disposições cognitivas mais amplas que, segundo Jerry Fodor, por exemplo, devem ser consideradas inatas, pois já se encontram, apenas de modo mais simples, nas crianças pequenas, em cujo caso não podem ser explicadas por aprendizagem de origem externa (Berten,1977; Wellman,1990).
Mas não é a afirmação do inatismo de tais competências que mais nos interessa. As teses que buscam determinar quais são as competências inatas, como a de Chomsky, tem sido muito refutadas e, por outro lado, tomado como idéia geral, o inatismo é uma obviedade, "se se quer simplesmente dizer que deve haver qualquer coisa de inato e que deve haver qualquer coisa de aprendido (...) Mas é inutilizável se ele pretender [fim da página 30] determinar o que é aprendido e o que é inato"(Berten,1997:10-11). É o fato de que as teses inatistas buscam explicar justamente competências "universais" que seus autores encontram nos indivíduos o que nos interessa aqui, uma vez que "deve haver competências prévias - quer elas sejam inatas ou não - à instauração de procedimentos deliberativos de instituição de normas" ou seja, não se pode instituir a democracia, através da definição das "regras do jogo" ou da procedimentalização (procéduraliasation) dos processos decisórios, "se as competências cognitivas dos atores tornam os desempenhos exigidos pela atuação procedimental radicalmente fictícias ou irrealizáveis". (Berten, 1997:10)
Uma competência cognitiva amplamente reconhecida como presente em todos os indivíduos e alvo de intensos debates na filosofia contemporânea e de pesquisas empíricas na psicologia do desenvolvimento cognitivo é a chamada "psicologia popular" (folk psychology). "Psicologia popular" aqui se refere à capacidade que têm todas as pessoas normais de compreender sua própria mente, ou seus estados mentais, distinguindo suas crenças de seus desejos, reconhecendo falsas crenças quando confrontadas com fatos percebidos, distinguindo os pensamentos que são fruto da imaginação daqueles que tem origem na percepção, distinguindo comportamentos acidentais de comportamentos intencionais e projetos de resultados, de agir de acordo com essa compreensão e, por outro lado, de compreender do mesmo modo a mente dos outros, atribuindo-lhes estados mentais e sendo capaz de prever suas ações, etc. Em resumo, "psicologia popular é o conhecimento que nós usamos na vida diária para compreender um ao outro e nós próprios, e para coordenar nossas ações com as dos outros" (Kusch, 1997:1), é "o conhecimento mais freqüentemente empregado, é a mais ubíqua forma de conhecimento nas sociedades humanas" (1997:2), sem o qual a vida social seria praticamente impossível.
Até aqui parece haver um amplo acordo entre filósofos e cientistas dos mais variados ramos que estudam a psicologia popular. Quando se trata porém de compreender sua natureza e origem ou gênese, os pontos de vista e teorias propostas dão lugar a muitas controvérsias que têm sido especialmente intensas desde o final dos anos 80 e têm motivado grande número de pesquisas empíricas no campo da psicologia do conhecimento.
Uma das teorias vigentes sobre a psicologia popular é aquela (por alguns chamada de "teoria da teoria da mente") de que a psicologia popular se constituiria numa "teoria da mente" presente nos indivíduos desde a primeira infância (ainda que inicialmente de maneira simples e desenvolvendo-se aos poucos ao longo dos primeiros anos de vida) que lhes permite estabelecer todas aquelas distinções e prever e explicar seu [fim da página 31] próprio comportamento e os dos outros. Segundo esta perspectiva, a psicologia popular merece ser considerada como uma "teoria" porque faz distinções ontológicas, é coerente no sentido de que seus termos estão encaixados numa teia integrada de constructos e constitui um sistema explicativo causal constituído de leis, leis essas que tomam a forma das "banalidades" em que se baseia o comportamento cotidiano das pessoas como, por exemplo, "quem chora tem dor ou está triste". Tal "lei" é que permitiria, diante de alguém que chora, levantar a hipótese de que está triste e agir de acordo com a hipótese, por exemplo, consolando o outro. O funcionamento ou uso da "teoria da mente", para alguns autores, seria semelhante ao das teorias científicas (Berten, 1997; Wellman, 1990; Gopnik, 1997; Kusch, 1997; Baker, 1997).
Mas entre os próprios autores que assumem a "teoria da teoria", há também controvérsias. Há uma controvérsia quanto à sua origem, se inata, como propõem Fodor e outros, se adquirida nos primeiros anos de vida através de um processo semelhante ao da constituição das teorias científicas, como crê Wellman, etc. Controvertida também é a resposta à questão de se a teoria popular da mente é correta ou não: Fodor e os que, como ele, assumem o realismo intencional, apostam em que o avanço das ciências cognitivas confirmará ou não poderá refutar a psicologia popular; já os materialistas eliminativistas crêem que, assim como uma física ou uma biologia populares foram superadas e demonstrada errôneas pela física e a biologia científicas, também a psicologia popular será certamente revelada errônea e substituída por uma teoria científica, superada pela psicologia científica ou pela neurociência (Berten,1997; Baker, 1997).
Mas a própria idéia de que o que se chama psicologia popular (folk psychology) é uma teoria, ou se constrói como uma teoria, é também contestada pela "teoria da simulação mental", surgida na segunda metade dos anos 80, segundo a qual os seres humanos têm a capacidade de simular em sua própria mente o que pode estar se passando na mente do outro, a partir do comportamento que nele percebe, ou seja, a capacidade de "por-se no lugar do outro" e, então, com base nessa vivência simulada do estado mental do outro, decidir de que forma agir. A idéia da simulação, no entanto, mesmo entre seus partidário, também por sua vez dá início a inúmeras discussões. (Berten,1997; Gordon, 1997)
Podemos mencionar, ainda, quanto à psicologia popular, a crítica feita por Martin Kusch (1997) a todas as teorias já mencionadas, a partir da perspectiva da sociologia do conhecimento. Kusch alega que todas aquelas teorias pecam pelo seu enfoque individualista e que somente premissas coletivistas podem dar conta da natureza da psicologia popular que, como ele trata de demonstrar, é uma instituição social pois [fim da página 32] é coletivamente criada, mantida e reproduzida, convencional e aprendida, e historicamente variável.
Independentemente das inúmeras controvérsias quanto à natureza e a origem ou gênese da "psicologia popular", parece-nos que praticamente todas as correntes que a discutem, no âmbito da filosofia, da psicologia do desenvolvimento ou da sociologia do conhecimento, com exceção talvez do materialismo eliminativista, contribuem de certo modo para a defesa da tese da continuidade entre saber popular e saber científico, ou da tese da existência de competências cognitivas "universais" nos indivíduos, pelo menos naqueles que pertencem a uma mesma sociedade.
Certamente muitas outras linhas teóricas poderiam ser exploradas para servir aos objetivos a que nos propomos, mas não dentro dos limites deste texto.
O que tentamos fazer no presente trabalho não foi defender uma determinada teoria como correta e suficiente para fundamentar a convicção da competência popular para a participação na democracia deliberativa, e nem ao menos expor de maneira completa uma ou mais dessas teorias, mas apenas mostrar, na linha do que faz André Berten (1997) (4), que, a partir de debates científicos e filosóficos hoje plenamente vigentes, os partidários da plena participação popular nos processos de decisão política e os educadores populares teriam como defender e fundamentar ou, pelo menos, mostrar a plausibilidade de suas pretensões de maneira pelo menos tão "científica" quanto a de seus adversários. Resta-nos sugerir que, sob várias dessas óticas, se poderia defender a educabilidade da capacidade de participação democrática com todas as suas exigências de racionalidade.
BERTEN, André. (1997). Compétences cognitives et procéduralisation. Louvain: Université Catholique de Louvain (Les carnets du Centre de Philosophie du Droit, no 29).
BOBBIO, Norberto. (1988). O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
BOURDIEU, Pierre et al, (1968). Le métier de sociologue. Paris: Mouton-Bordas.
GOPNIK, Alison. (1997). Theory of Mind. In: Work in Progress, MITECS: http://mitpress.mit.edu/MITECS/work
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HABERMAS, Jürgen. (1995). Sociologie et théorie du language. Paris: Armand Colin.
HAMPTON, Jean. (1994). The common faith of liberalism. Pacific Philosofical Quarterly 75.
KUSCH, Martin. (1997). The Sociophilosophy of Folk Psychology. Studies in History and Philosophy of Sciences 28 (1): 1-15.
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WELLMAN, H. (1990). The Child's Theory of Mind. Cambridge: MIT Press.
DEMOCRACIA, SABER POPULAR E EDUCAÇÃO
Este artigo explora a questão das competências cognitivas básicas necessárias a todos cidadãos para que a proposta de democracia participativa tenha sentido. Em relação a essa questão, trata do saber popular e da educação popular.
SAVOIR POPULAIRE ET DÉMOCRATIE
Cet article examine la question des compétences cognitives nécessaires à tous les citoyens pour que la proposition d'une démocratie participative ait du sens. Par rapport à cette question, l'article traite aussi du savoir populaire et de l'éducation populaire
2) Os arquivos da EQUIP - Escola de Formação Quilombo dos Palmares (Recife - PE) contém uma ampla coleção de documentos produzidos pelos movimentos sociais populares do Nordeste brasileiros, nos últimos dez anos, que confirmam nossa própria observação e a descrição que aqui fazemos.
3)Tradução nossa, como todas as demais citações do mesmo autor neste trabalho.
4)Baseamo-nos não apenas no texto de Berten publicado nos Carnets du Centre de Philosophie du Droit, mas também nossas anotações (não revistas pelo professor) das aulas que ministrou na Universidade Federal da Paraíba em agosto de 1997.