BRUMANA, Fernando Giobellina. (1997). La metáfora rota. Cádiz: Servicio de Publicaciones Universidad de Cádiz, 183p.
O autor é um antropólogo espanhol que esteve recentemente entre nós, numa rápida visita acadêmica dentro do convênio existente entre a UFPb e a Universidade de Cádiz, quando nos brindou com seus últimos livros publicados. O livro escolhido para ser objeto desta resenha atende a dois requisitos: 1) é a publicação mais recente; 2) trata de campos de interesse variados, o que dá uma dimensão mais ampla de sua produção científica. O livro em questão apresenta-se composto por oito ensaios independentes entre si, escritos ao longo da década de 80, durante a qual o autor realizou pesquisas no Brasil, em cultos de Umbanda e de Candomblé situados em São Paulo. A leitura de seus trabalhos possibilitou o conhecimento dos percursos empíricos e teórico-metodológicos efetuados por este pesquisador das religiões afro-brasileiras, até então desconhecido para nós, cuja contribuição a esse campo aponta para novas possibilidades de interpretação.
Apesar da fragmentação do livro, foi possível detectar alguns elementos que indicam uma unidade em seus estudos. Aliás, nosso empreendimento visa encontrar o fio condutor que permeia as diferentes áreas de investigação abordadas na seqüência de ensaios reunidos no livro. [fim da página 231] O primeiro e fundamental elemento de unidade diz respeito à sua dimensão teórica, que tem como principal inspiração o pensamento de Marcel Mauss e seus desdobramentos em Durkheim e Lévi-Strauss. A sua fidelidade maior a Mauss pode ser comprovada através do livro que Giobellina dedicaria à obra desse autor, publicado em português com o título Antropologia dos sentidos: introdução à obra de Marcel Mauss. Com esse referencial teórico Giobellina define seu propósito, ao longo dos ensaios de La Metáfora Rota, como uma tentativa de desmontar os mecanismos de linguagem que emprestam eficácia à terapêutica do símbolo (p. 140).
Quanto às pesquisas empíricas que subsidiaram esses ensaios, a primeira abordou a Umbanda e veio a ser sua Tese de Doutorado (Universidade de Uppsala), publicada mais tarde pela Editora da UnB com o sugestivo título A marginália sagrada. A segunda pesquisa enfocou o Candomblé e resultou na publicação de um grosso volume com copiosos registros etnográficos de rituais de uma casa de Candomblé de São Paulo, com o título Las formas de los dioses: categorias y classificaciones en el Candomblé.
Para dar uma idéia geral das temáticas abordadas nos ensaios, podemos dizer que dois deles tratam da religiosidade popular, três referem-se à Umbanda, um ao Candomblé, e os dois últimos têm um viés eminentemente teórico. A ausência de um capítulo introdutório, e a substituição por uma apresentação sucinta em que o autor limitou-se a situar os ensaios no tempo e no espaço, foi suprida com o primeiro ensaio, que representa o esforço mais visível do autor na busca da unidade do trabalho. Nesse ensaio ele procura delimitar o campo da religiosidade popular brasileira como o campo ampliado de sua reflexão, onde estão situadas as religiões afro-brasileiras ao lado do Catolicismo popular, do Pentecostalismo e do Espiritismo Kardecista.
Esta religiosidade popular tem afinidades que resultam do contraste com as religiões oficiais, que deixando vazios espaços de ação religiosa incompatíveis com a postura secular assumida por elas, favorecem as religiões populares que em resposta às demandas populares ocupam esses espaços. A religiosidade popular é, assim, associada à marginalidade, que corresponde ao lugar social ocupado pela população que encontra nessas religiões uma espécie de sociologia marginal, que propõe teorias da realidade formuladas a partir da experiência e da visão dos que se situam na periferia. O fenômeno de "flutuação" de fiéis, clientes e agentes que transitam pelas diferentes modalidades religiosas seria, para ele, decorrente do fato de que a clientela dessas modalidades se preocupa menos pelo aspecto doutrinário do que pela ação terapêutica que elas são capazes de produzir. Com isso, o que a religiosidade popular apresenta de comum é sua relação íntima com o corpo, que torna-se objeto direto da ação religiosa, daí a tendência dessas religiões populares a converterem-se em agências de cura. É essa dimensão terapêutica das religiões populares o aspecto dominante da análise do autor na maior parte dos ensaios.
O ensaio seguinte trata especificamente da função terapêutica da Umbanda, e parte da constatação de que a doença constitui o principal motivo de atração de clientes e fiéis, não só para a Umbanda como para as Igrejas pentecostais. De fato, ambas as [fim da página 232] modalidades religiosas concebem a doença segundo duas etiologias: material e espiritual. Desse modo, a doença espiritual seria o alvo das terapias místicas. No plano físico, a doença, assim como qualquer tipo de aflição ou infortúnio teria, não apenas, origens comuns a esses outros males, como seria entendida como sintoma de desordem, de modo que a cura representa o retorno à ordem, dependendo da atribuição de um sentido à realidade que se mostra carente. Para interpretar o processo de cura, Fernando Giobellina recorre a Lévi-Strauss para explicar a magia como uma linguagem capaz de decifrar estados que não poderiam ser formulados de outra maneira. Essa operação de reorganização simbólica produziria o efeito de desbloquear o processo fisiológico. O autor, porém, se contrapõe a Lévi-Strauss, por negar a semelhança entre cura mística e cura psicanalítica, como se ambas se produzissem ao nível mental, sem qualquer vínculo com o corpo. Considerando que a doença é, muitas vezes, diagnosticada como agressão mística provocada por ação de feitiçaria praticada por um desafeto da vítima, o autor propõe a seguinte interpretação: "(...) o conflito se condensa no corpo do cliente ou se expande em suas redes de relações; este vínculo entre sociedade e corpo é o que permite tanto a enfermidade como sua resolução" (p. 43).
O terceiro ensaio representa, de alguma forma, a continuidade dessa temática, ao enfocar a presença de entidades espirituais indígenas na Umbanda - os caboclos - possuidores de um papel destacado como curandeiros, fruto da tradição indígena dos pajés e seus rituais de cura. O quarto ensaio retoma a problemática da agressão mística, apenas esboçada no segundo capítulo, concebendo-a como uma forma de violência que se associa de alguma forma à violência urbana, tal como a praticada no âmbito das milícias de extermínio de bandidos. A agressão mística e suas respostas consistem na manipulação do poder de forças espirituais, particularmente através do culto a Exu e às chamadas entidades de "esquerda" da Umbanda (espíritos de delinqüentes e prostitutas), os quais são acionados com intenção deliberada de provocar ou de responder a uma agressão mística. Usualmente, ela é justificada como o revide de uma violência mística sofrida, e atribuída a algum inimigo, que deverá sofrer com acréscimo o mal que teria praticado com a ajuda de espíritos, conforme a lei do retorno na magia. Em sua reflexão final, Giobellina atribui à visão umbandista a potencialização da violência, através da legitimação do ilícito de práticas de autoritarismo do Estado e da sociedade civil. Os resultados da terapia umbandista implicam a dependência, do cliente, a mecanismos de proteção que geram, ao mesmo tempo, proteção e perigo, uma vez que sendo ele identificado com essas práticas passa a ser visado como inimigo potencial, arriscando-se a ser alvo também de uma represália a uma agressão mística.
O quinto ensaio realiza uma análise de discurso, a partir de pequenos relatos contidos em uma série de entrevistas realizadas com fiéis de diferentes religiões populares, colocando em evidência certas tensões e diferenças entre elas. Duas categorias de análise foram adotadas pelo autor - o poder e o coletivo - como pólos centrais para entender o discurso umbandista. O primeiro, sendo entendido como aquele que provém da manipulação de duas forças - Deus e o diabo; o segun-[fim da página 233]do resulta da oposição individual/ coletivo que se dá com a permanente ameaça de ruptura de reciprocidade, habitualmente presente no espaço religioso, embora haja o risco constante das relações entre os membros do culto se deteriorarem a qualquer momento.
O sexto ensaio aborda um dos elementos fundamentais do Candomblé: a comida de santo, que ao lado do sacrifício de animais faz parte de um sistema complexo de oferendas. No texto, o autor busca alguns princípios do seu funcionamento, partindo inicialmente da diferenciação entre a comida-de-santo e a oferenda. Ele observa que raramente o animal dado em sacrifício é consumido como comida de santo, uma vez que é utilizado para fazer limpeza no fiel. Nessa, o princípio empregado é o da eletricidade, cujo objetivo é dissipar energias negativas e maus fluidos. Assim, a importância do sacrifício situa-se na manipulação da essência do animal abatido, a qual encontra-se no sangue e nas vísceras.
A comida de santo é, porém, a oferenda que está mais sujeita a um sistema de regras, como as relativas à maneira do preparo - onde se destaca a proibição do uso do alho - ou ao espaço da preparação que, em certos casos, exige o uso de uma cozinha especial, não profana. Há, por outro lado, comidas que após serem consumidas pelo santo podem ser consumidas pelos fiéis, enquanto outras não. O princípio que rege tais regras está ligado à idéia de contaminação, conceito que regula todo o sistema de oferendas, com o objetivo de evitar que os males expulsos retornem. Por último, o sistema está articulado de tal forma que cada divindade possui um cardápio próprio, também regulado pelo princípio da identidade, não somente referente às divindades, mas também, à identidade correspondente dos filhos de santo. Essa correspondência deve ser apropriada sob risco de influenciar negativamente a eficácia simbólica do culto.
O penúltimo ensaio trata do aspecto que mais tem impressionado os pesquisadores dos cultos de possessão: a própria experiência do transe ou possessão, alvo de inúmeras tentativas de formulações teóricas. O autor começa estabelecendo um diálogo com essas teorias para lidar com o fenômeno, de onde extraímos alguns elementos que irão esclarecer a visão construída ao final do texto.
Na síntese realizada pelo autor para exprimir as diferentes tentativas de explicação do fenômeno, se destaca o papel atribuído à possessão como instrumento social, ora voltado para obtenção de status ou benefícios pessoais e grupais, ora para a manutenção da identidade, ou ainda como instância domesticadora da rebelião individual e erótica (p. 124). Para Giobellina, todas essas tentativas estariam equivocadas, na medida em que não aprofundam a análise dos marcos sociais desses cultos. Exceção feita à análise de Mary Douglas, quando procura estabelecer uma relação simbólica entre o corpo e as estruturas sociais. Para tanto, o transe é definido como um instruem-to religioso que só ocorre em certos lugares sociais onde há baixo controle social e, conseqüentemente, baixo controle corporal. Contudo, a possessão não é vista por Giobellina como um espelho do lugar social ocupado pelos fiéis do culto, como propõe a citada autora, mas constitui uma "reação que pretende restruturar conceitualmente a realidade" (p. 127). Tal compreensão parte da noção de que a religião "é um instrumento de ordem e sentido", sendo que [fim da página 234] nas religiões "marginais" o sentido se revela na carne, através da enfermidade ou das frustrações e perdas, em que a incorporação de entidades espirituais representa a resolução do problema ao nível do corpo, seja ele físico ou não.
O último ensaio, cujo título coincide com o livro, constitui o maior esforço teórico do autor na tentativa de compreender a dimensão terapêutica da religiosidade popular brasileira, a partir de uma incursão crítica na concepção de eficácia simbólica de Lévi-Strauss, em que identifica inúmeras inconsistências. A noção de "metáfora rota" construída por Giobellina é fruto dessa crítica, e expressa um corte de sentido que se dá ao nível do rito ou da prática discursiva, no momento em que a ação é realizada pela entidade mística, e não mais pelo agente religioso ou o cliente. O sentido torna-se hermético, através do reconhecimento de que a ação mística está envolta no segredo e no mistério, próprios do mundo dos espíritos, sendo eles uma condição de garantia da eficácia simbólica. A hipótese formulada pelo autor ao final do seu trabalho revela que não é a apreensão literal da narrativa ou sua inteligibilidade que conduz à eficácia mas, ao contrário, é sua carga de incompreensibilidade - onde a metáfora produzida se encontra ocultada em campos semânticos distintos - o que a torna eficaz.
Para finalizar, recomendamos a leitura desse livro, especialmente aos pesquisadores interessados pela religiosidade popular e pelas religiões afro-brasileiras, que encontrarão nele reflexões teóricas e sugestões empíricas surpreendentes para lidar com esse fenômeno. Em La Metáfora Rota o autor procura captar uma nova dimensão de sentido a partir das práticas e dos discursos dos agentes fiéis e clientes que se encontram nesse campo religioso.
NOTA
1) Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).