"...a metáfora é o fenômeno da alma poética. É ainda um fenômeno da natureza, uma projeção da natureza humana sobre a natureza universal."
Gaston Bachelard, A água e os sonhos.
"Quando os prestígios da sombra e do duplo se fundem na tela branca de uma sala noturna, perante o espectador, enfiado no seu alvéolo, (...) quando os canais da ação se fecham, abrem-se então as comportas do mito, do sonho e da magia."
Edgar Morin, O cinema ou o homem imaginário.
As concepções filosófico-poéticas de Gaston Bachelard sobre o imaginário a partir da materialidade dos elementos da natureza e a extensão das idéias contidas nas suas Poética do Espaço e Poética do Devaneio fundamentaram uma pesquisa estética na linguagem do cinema e do vídeo, que deu nascimento a dois vídeos: "Espaços Poéticos de Gaston Bachelard" e "Fragmentos de uma Poética dos Elementos" (2).
O principal elo entre as idéias de Bachelard e o processo de criação dos vídeos realizados situa-se em relação ao imaginário poético, no qual uma poética visual se entrelaça aos fundamentos que o filósofo empreende sobre os diversos textos literários.
De antemão, desejaríamos destacar que não pretendemos desenvolver ou mesmo propor nenhuma teoria, mas apenas relatarmos as nossas motivações de trabalho, em torno das principais idéias que inspiraram a realização dos vídeos. E quando evocamos as concepções teóricas de Bachelard, o fazemos como resultado de uma espécie de "identificação profunda", de uma imersão na dimensão poética. E para melhor exprimirmos esses momentos de poesia não podemos nos distanciar deste estado poético, mas sim vivenciá-lo em toda [fim da página 141] a sua intensidade, com toda plenitude da "ressonância" e da "repercussão" (3) dos poemas, na vibração de seus instantes.
Existem assim leituras de poemas que fazem com que mergulhemos através de profundidades tão intensas que ficamos como que "contagiados" de modo a retransmití-los, a repetir a experiência poética como uma espécie de "re-vivenciação", presentificação, num nível em que parecemos mesmo interagir com os autores, no plano de uma participação subjetiva, entre subjetividades, inter-subjetividades, como nos situa o filósofo:
"Admitindo uma imagem poética nova, experimentamos seu valor de intersubjetividade. Sabemos que repetiremos para comunicar nosso entusiasmo. Considerada na transmissão de uma alma para a outra, vê-se que a imagem poética escapa às pesquisas de causalidade." (Bachelard, 1988 a: 100)
Da mesma forma que Bachelard experimenta um grande entusiasmo na leitura dos textos poéticos, para nós, apontar as concepções bachelardianas é comunicar o "valor de intersubjetividade" que experimentamos através das leituras dos textos do filósofo, que se situam como se fossem propriamente "imagens poéticas novas". Os trechos lidos, carregados de poeticidade, apresentam o dinamismo próprio das imagens com seu poder de "presentificação", com sua força que equivale a uma "explosão de imagens", que nos incita, dentro de uma ressonância de ecos longínquos, à repercussão no plano de transmissão de um leitor a outro. E esse processo atinge nossa alma de maneira simples, sem que seja necessária uma bagagem teórica ou uma explanação de conceitos, como afirma o filósofo:
"A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta, na novidade das suas imagens, é sempre origem de linguagem." (Bachelard, 1988 a: 97)
Esta simplicidade das imagens poéticas nos indica por outro lado um plano oposto de uma complexidade complementar, no que se refere aos "Instantes Metafísicos" relativos à poesia, dentro de uma experiência sensível onde são rompidas as dimensões de espaço e tempo. O leitor se identifica assim com momentos atemporais, numa experimentação intersubjetiva de caráter transcendente, pois, de acordo com a concepção bachelardiana "a poesia é uma metafísica instantânea...Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista a unidade" (Bachelard, 1986: 183).
Esta dimensão metafísica do Instante Poético se aproxima do plano das "correspondências baudelaireanas". Ponto de encontro das simultaneidades sensíveis, onde confluem as correspondências interpoéticas. Nesta instância somos arrastados para um plano onde atua a dinâmica das verticalidades. A tendência predominante é a ruptura com um tempo horizontal, em que prevalecem as sucessões, pois "(...) o tempo não corre mais. Jorra (...)" (Bachelard, 1986: 185).
[fim da página 142]
A partir dessa concepção de "corte" temporal, iniciamos propriamente nossas considerações sobre a linguagem do cinema e do vídeo.
Apontamos dentro desta perspectiva uma "ruptura" com a concepção mais comum da linguagem do cinema que se apoia na duração temporal, na articulação dos planos, no jogo das sucessivas metonímias (mais particularmente as sinédoques) que se concatenam para completar as "seqüências fílmicas". Não se trata aqui de negarmos a existência temporal da expressão da linguagem do cinema, mas sim de destacarmos dentro de uma poética visual, em sua correspondência com a poesia verbal, a predominância do emprego da metáfora, tendo em vista todo o dinamismo verticalizante da dimensão metafórica.
Remarcamos assim a importância da metáfora dentro das concepções de Bachelard, numa dimensão em que a própria "(...) imagem literária pode ser caracterizada pela ligação da imagem (visual) e da metáfora, no plano onde a palavra não é uma mera evocação de imagens visuais mas é insinuação de fusão de imagens...todas as matérias imaginárias, todos os elementos poéticos vêm trocar suas riquezas, alimentar um pelo outro suas metáforas" (Bachelard, 1990: 97).
Desta forma, nosso desafio no tratamento visual das imagens na lingua-gem experimental do vídeo é de justamente procurar uma dimensão metafórica das imagens que se aproxime de uma polissemia mais abrangente, característica das imagens literárias. A polissemia aproxima-se de uma verticalização das imagens, de uma explosão de imagens.
A metáfora em Bachelard, tal como destacamos em sua função poética dinamizante, tem um poder de ambivalência, de reversibilidade com a própria natureza, num nível em que as imagens são realidades psíquicas primárias, arquétipicas, onde elas chegam mesmo a assumir um caráter verdadeiro, de metáforas verdadeiras:
"...quando as imagens advêm de uma meditação alquimica, de uma substância sempre colhida na Natureza, alcançamos essa convicção da imagem que é poeticamente salutar, que nos prova que a poesia não é um passatempo, mas sim uma força da natureza . Ela elucida o sonho das coisas. Compreende-se então que é a metáfora verdadeira , a metáfora duas vezes verdadeira: verdadeira em sua experiência e verdadeira em seu impulso onírico." (Bachelard, 1991: 250)
Com o filósofo aprendemos assim a seguir a "raiz" das imagens, em seu contínuo caráter de equivalências, como arquétipos enraizados no inconsciente de todas as raças e como uma potência de metáforas múltiplas presentificada nos instantes poéticos vivenciados pela relação entre as substâncias materiais e as múltiplas intersubjetividades.
Na dimensão de um poder mítico-poético primordial das imagens, projeta-se a própria potência originária, a alma do cinema, apontada nas concepções de Edgar Morin:
"Metamorfose mecânica do espetáculo de sombra e luz, surge o cinema no decurso de um processo milenário de interiorização da velha magia das origens. O seu nascimento numa nova labareda mágica, processa-se com os sobressaltos de um vulcanismo em vias de extinção." (Morin, 1956: 118)
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Os princípios do cinema já estão presentes nos primeiros traços de representação do movimento dos seres no ventre das cavernas, em cujas paredes projetam-se "sombras cintilantes", no limiar da escuridão e da luz, dos claros-obscuros da alma humana. O domínio do fogo, a manipulação das chamas é o primeiro elo, o primeiro plano, de um carretel de projeções imaginárias, de inúmeras "reflexões" que integram esta arte de "labaredas mágicas" que é o cinema.
A base da linguagem do cinema reside na concepção de montagem da junção-articulação de partes, de cenas ou de fotogramas. O cineasta e teórico Eisenstein indica, no processo de montagem, a idéia de que na colisão de duas tomadas independentes se cria um "terceiro termo" (Einsenstein, 1990: 14), que seria propriamente a "imagem" ou a produção de significados. A associação de dois elementos cria um campo semântico novo. Este princípio aproxima o processo de montagem do processo metafórico.
Carone Neto, em seu trabalho Metáfora e Montagem: um estudo sobre a poesia de Georg Trakl, nos aponta que "o conceito de montagem como uma modalidade específica de articulação de signos é tão valido para o cinema como para a poesia" (Carone Neto, 1974: 108), e sua concepção se pauta, na mesma de Eisenstein, na "idéia" que nasce da junção de fragmentos.
A partir destas concepções sobre montagem cinematográfica, associadas às idéias de Bachelard, podemos delinear nossos fundamentos de pesquisa de linguagem de vídeo.
No atual mundo pleno de imagens fragmentadas, alienantes, dentro de um cinematismo multifacetado, o filósofo nos aponta brechas, fendas, passagens, janelas abertas à compreensão de um dinamismo potencial próprio das imagens, onde "as metáforas se aglomeram para dar realidades espirituais" (Bachelard, 1990: 119). Essa perspectiva nos conduz ao aprofundamento do ser, numa dimensão em que "as imagens já não seriam simples metáforas; não se apresentariam meramente para suprir as insuficiências da linguagem conceptual. As imagens da vida se integrariam à própria vida" (Bachelard, 1990: 264).
Acompanhando-se as várias referências de Bachelard às metáforas chegamos a um nível cósmico, total, onde a dinâmica da imaginação constitui-se em um verdadeiro jogo de inversão entre o homem e o universo. "Com este jogo, nosso psiquismo se anima. Ele constitui uma espécie de Metáfora Total que transpõe os dois termos filosóficos do sujeito e do universo" (Bachelard, 1991: 152).
É neste sentido que a leitura estimulante de Bachelard nos conduz, nesta viagem através do imaginário, ao encontro de raras metáforas esquecidas.
A partir das "identificações" apontadas, começamos a seleção de vários textos das obras onde o filósofo faz referências às suas lembranças pessoais, aos seus devaneios mais íntimos. Estes se constituíram como elementos básicos para a realização deste vídeo. As pistas iniciais para uma articulação do trabalho de criação do vídeo se lançaram na via de uma fenomenologia poética ditada pelo próprio Bachelard.
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"...escolhi a fenomenologia na esperança de reexaminar com um olhar mais novo as imagens fielmente amadas, tão solidamente fixadas na minha memória que já não sei se estou a recordar ou a imaginar quando as reencontro em meus devaneios (...) A exigência fenomenológica com relação às imagens poéticas, aliás, é simples: resume-se em acentuar-lhe a virtude de origem, em apreender o próprio ser de sua originalidade e em beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a da imaginação (...) A sutileza de uma novidade reanima origens, renova e recobra a alegria de maravilhar-se." (Bachelard, 1988 b: 02-03)
O exercício poético apontado seria o de "acentuar as virtudes de origens" das imagens, no encontro das "cosmicidades primordiais", das metáforas iniciais que ligam o homem à natureza e ao universo. E nosso vídeo se inicia a partir de um fragmento de texto que nos remete diretamente a uma imagem que se vincula tanto aos devaneios mais íntimos de Bachelard quanto ao princípio mágico originário do cinema: "toda minha solidão esta contida numa imagem primeira..no claro-escuro dos sonhos e da lembrança" (Bachelard, 1989 a: 58).
Este fragmento, extraído do livro A chama de uma vela, dá início a uma cena proposta pelo filósofo, onde "o sonhador esta à sua mesa..., acende uma vela...". Para Bachelard, como para o cinema:
"(...) a chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores operadores de imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonha, o que se percebe não é nada, comparado com o que se imagina. Ela traz consigo um valor seu, de metáforas e imagens, nos domínios das mais diversas meditações." (Bachelard, 1989 a: 09)
A chama de Bachelard vem se situar propriamente como uma abertura, como um "operador de imagens", como uma "labareda mágica" reascendida no sentido da projeção das imagens. A chama se apresenta assim como um "elo catalisador", um princípio dinâmico à operação das imagens.
Quando nós pensamos na dinâmica das imagens cinematográficas segundo antigas concepções, podemos encontrar o termo ideogramático chinês para designar o cinema: <Diàngyîng>=<sombras elétricas>, onde podemos já perceber a proximidade semântica do termo <yîng> para designar tanto <imagem> como <sombra> (La Presse Comerciale & Larousse, 1994).
Observa-se assim que, desde os tempos antediluvianos, o princípio da luz, da chama, é o que nos remete à projeção das imagens, através do jogo de oposição complementar de "luzes e sombras". Re-a-presentação contínua da "cena da caverna" de Platão.
Pela referência ao simples ato de acender uma vela, pela simplicidade desta imagem poética, pretendemos aludir a uma centelha no acendimento dos princípios míticos relativos as "luzes do cinema", dando assim início à projeção de nossas imagens metafóricas, em torno dos sonhos e das lembranças do filósofo.
O roteiro de edição foi se estruturando pela experimentação do jogo alquímico contrapontual dos elementos capturados em imagens de vídeo, em [fim da página 145] torno das metáforas arquetípicas sugeridas por Bachelard:
"Não posso sentar perto de um riacho sem cair num devaneio profundo, sem rever a minha ventura...Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes." (Bachelard, 1989 b: 08-09)
A imagem das águas é um elemento constante nas lembranças do filósofo, esta água anônima, como uma matriz arquetípica aquática, vem escoar por toda a seqüência temporal de nossa "edição de imagens". As águas marcam, por assim dizer, a transição das cenas e dos fluxos das emoções de Bachelard:
"A infância é uma água humana, uma água que sai da sombra...Quantos seres teríamos começado, quantas fontes perdidas que entretanto ainda correm." (Bachelard, 1988 b: 106)
Conduzidas pelas imagens das águas, revelam-se as transições metafóricas, entre a "palavra humana" e a própria "palavra d'água", através de "uma poesia que escoa da fonte".
O imaginário relativo à água, apesar de se apresentar associado ao elemento feminino e mais uniforme, com um caráter horizontal em seu movimento temporal, se situa, em relação à imaginação material, como uma metáfora total, no sentido de uma verticalização dos instantes poéticos, que nos indica uma metamorfose incessante em relação à transição e à profundidade do ser, em contínuas projeções no encontro de eixos horizontais e verticais, no cruzamento dos inúmeros ciclos de mortes e renascimentos (4).
O elemento água se presta assim a dar existência às metáforas totais, dando sentido as transformações, às transmutações do ser e do universo. A água se apresenta também narcisicamente, como um espelho que se vincula aos ecos universais, além se ser um elemento que, associado aos outros elementos, nos indica dinamismos específicos nos trabalhos sobre a natureza.
Ao nos iniciarmos na dinâmica da criação da natureza, escolhemos a matriz arquetípica mais universal, que se apresenta como a mais "verdadeira" das metáforas: a árvore. A imagem da árvore, com sua força simbólica, nos possibilitou a articulação de inúmeras outras imagens, em pleno exercício metafórico, dando sentido à "materialidade" dos elementos. Precisamente com este intuito escolhemos a árvore para ser objeto de modelagem em argila, no sentido de podermos ir "mais profundamente" na terra e, ao mesmo tempo, atingirmos a uma concepção verticalizante, de uma plena instância poética total.
Sabemos através do filósofo que, dentre as virtudes integrantes da árvore, "a raiz é a árvore misteriosa, a árvore subterrânea, a árvore invertida" (Bachelard, 1991: 225). Dentro de uma visão panorâmica através dos elementos da natureza, conduzida pela imagem da árvore em sua concepção dinâmica, pudemos ir, [fim da página 146] desde da profundidade de suas raízes, até alcançarmos as alturas celestes, através da própria força condutora de sua seiva. A seiva é a representação da alquimia da água e do fogo, na condução das metamorfoses que transitam entre a terra e o ar, na dinâmica dos ciclos de criações, contínuas florescências.
A imagem da árvore se presta mesmo a uma equivalência com as concepções bachelardianas sobre o arquétipo da casa, onde "a grande planta de pedra que é a casa pulsaria mal se não tivesse a água dos subterrâneos na sua base" (Bachelard, 1988 a: 124). Seguindo assim os desejos metafóricos, entre os homens e os elementos, atravessamos em meio aos arcos, pilares, "janela-olhos" projetados sobre um céu longínquo, rumo aos sonhos, em suas grandezas sem limites.
As luzes da "chama de uma vela" nos indicam ainda um processo de renascimento, diante dos impasses provocados pela "página branca", dentro do percurso de criação poética, a partir do qual decidimos elaborar os traços de um desenho do próprio Bachelard, visando reforçar o "jogo de sombras" criado pela oposição entre as novas imagens-traços que surgem do branco do papel e a negritude proveniente das cinzas das folhas das árvores de outono sendo queimadas, situado em um plano de semi-fusão destas imagens em contraste. Pois, em conformidade com as próprias idéias do filósofo-poeta, "seria necessário, para renascer diante da página branca, colocar um pouco mais de sombra no claro-escuro das antigas imagens" (Bachelard,1989 a: 110).
Na continuidade da busca das "metáforas perdidas" uma nova articulação foi empreendida em torno da "Poética dos Elementos", onde pretendemos ilustrar as concepções da fenomenologia poética que Bachelard situa em relação a sua trajetória de análise dos quatro elementos, particularmente em sua obra A Poética do Devaneio. Em seu capítulo "Devaneio e Cosmos", o filósofo busca uma "unidade mais estável" em relação aos elementos, onde "o sonhador de matéria" seja capaz de "ir ao fundo das coisas".
Neste vídeo evidenciamos o aspecto plástico das imagens convidando o espectador a um mergulho na materialidade poética dos quatro elementos, destacando-se os devaneios que vinculam as substâncias ao universo, "onde o homem sonha, por exemplo, diante do fogo e a imaginação descobre que o fogo é o motor do mundo; ou sonha-se diante de uma fonte, e a imaginação descobre que a água é o sangue da terra; que a terra tem uma profundidade viva" (Bachelard, 1988 c: 169).
O desafio seria, nesta nova realização, o de ir ao encontro das metáforas que pudessem expressar a essência mesma do devaneio como uma "abertura ao mundo dos mundos", que pudesse ter uma correspondência na configuração da própria abertura ao mundo das imagens do cinema e do vídeo.
Pretendemos dar um destaque especial a visualização de uma dimensão mítico-poética em relação as "aberturas primeiras", na busca da essência mesma dos "devaneios cósmicos" que nos situam além do tempo cronológico, e mais propriamente nos transportam a um "estado de alma". Segundo Bachelard "a alma não vive ao fio do tempo. Ela encontra o seu repouso nos universos imaginados pelo devaneio (...) o devaneio nos põe em estado de alma nascente" (Bachelard, 1988 c: 15). O devaneio nos situa assim numa pré-disposição às aberturas polissêmicas, [fim da página 147] em termos de múltiplas significações.
Retomando a dimensão da metáfora em relação às concepções mítico-poéticas, destacamos, junto com Bachelard, a percepção de que uma metáfora já constitui, por si só, uma espécie de síntese relacional que traz, dentro de si, todo o potencial "narrativo" do mito:
"Vico dizia: 'Toda metáfora é um mito em ponto pequeno'. Vê-se que uma metáfora pode também ser uma física, (...). A imaginação material é realmente o mediador plástico que une as imagens literárias e as substâncias." (Bachelard, 1990: 38)
Metáforas múltiplas se associam para 'revelar' o 'estado de devaneio' propiciando às almas uma abertura às significações mais amplas. Foram escolhidos vários fragmentos de textos configurados sobre metáforas, que se situam como se eles formassem pequenos mitos ou ainda como se fossem os curtos poemas japoneses, os 'haicais' (5) - cada um com sua forma particular de significação - que se unem na articulação do vídeo através de um fio do imaginário mítico.
Na intenção de fazer não somente uma "ligação" entre esses diferentes elementos mítico-poéticos, mas também de atingir uma própria comunhão entre sons e imagens visuais, nós elaboramos uma composição musical para este vídeo.
Os princípios musicais, em consonância com uma estética oriental, se pautam por uma não distinção entre ruídos e sons, entre o tonal e o atonal, dando-se uma primazia aos timbres e a uma busca das "vozes da natureza".
O elemento aéreo, condutor das matérias sonoras, permeia a totalidade do vídeo, através da imaginação de "vozes profundas", desde os elementos sonoro-musicais até uma consciência visual em torno das "palavras naturais": "Se existem 'gargantas' na montanha, não será porque o vento, outrora, ali falou?" (Bachelard, 1988 b: 181).
Nos "princípios poéticos", os "verbos" falam o mundo em "imagens primeiras". Os "gritos do trovão", os ecos da bigorna, os sinos das aldeias se somam numa sinfonia cósmica dos elementos da natureza, como uma articulação sonora primordial.
Em relação à dinâmica das imagens da Terra e os devaneios da vontade e da Terra e os devaneios do repouso, tivemos a oportunidade de registrar as atividades de um velho ferreiro, e pudemos assim observar os elementos míticos que se encontram nas considerações bachelardianas sobre "o lirismo dinâmico do ferreiro", onde exprime-se a alquimia dos elementos, conduzida pelos ecos do martelo sobre a bigorna.
Procuramos ainda atingir a própria essência da concepção metafórica da Imagem como "uma planta que tem necessidade de terra e de céu, de substância e de forma" (Bachelard, 1989 b: 03) e pretendemos revelar um tempo onde "os mitos [fim da página 148] saiam da terra, abriam a terra para que com o olho de seus lagos ela olhasse o céu" (Bachelard, 1988 b: 180).
Um jogo contínuo de fusões de planos se presentifica ao nível das imagens do vídeo, para ressaltar o caráter de equivalência entre o homem e a natureza, em seu sentido mítico-cosmológico: "O sol é um olho aberto sobre o mundo(...), a imaginação afirma que o que ilumina vê". A luz que vem do céu, em forma de raio e relâmpago, tem o poder de gerar "olhos d'água" na terra, sendo que "as fontes, nas lendas, nascem freqüentemente de um raio" (Bachelard, 1989 b: 104).
Dentro da dimensão de uma materialidade dinâmica, pretendemos destacar as velhas raízes da imaginação, dentro de uma percepção poética que nos propicia uma presentificação, um nascimento contínuo, de novas imagens. A condução deste vídeo concentra-se no elemento fogo, onde a verticalidade ascética das chamas nos convida a uma nova síntese, em torno dos últimos escritos de Bachelard Fragmentos de uma poética do fogo (1988 c), através das concepções míticas de uma "Poética da Fênix". Na introdução desta última obra, compilada por sua filha Suzane Bachelard, o filósofo nos aponta o sentido mais amplo de uma Poética da linguagem, que nos remete diretamente a um plano de interação entre várias linguagens:
"...eu desejaria esboçar uma Poética da linguagem, mostrar que a Poesia constitui uma linguagem autônoma e que existe um sentido em se falar de uma estética da linguagem.. Para bem situar o lugar de uma estética da linguagem numa estética geral; seria preciso determinar as ligações que ela guarda -que se acredita que ela guarda- com a estética dos pintores; dos escultores; dos músicos. A palavra imagem esta tão intensamente enraizada no sentido de uma imagem que se vê, que se desenha, que se pinta que precisaríamos fazer grandes esforços para conquistar a realidade nova que a palavra imagem recebe pela adjunção do adjetivo literário." (Bachelard, 1988 c: 36) (6)
Este parênteses do filósofo nos remete a um destaque sobre a vocação da sétima arte, o cinema, para sintetizar várias linguagens, o que, a nosso ver, situa este meio de expressão, juntamente com o vídeo, dentre os que melhores se prestam ao estudo de uma "estética da linguagem", sendo que particularmente a "expressão da linguagem escrita", mais propriamente literária, está marcadamente presente na "sétima arte", seja através da elaboração dos argumentos e roteiros dos filmes ou da expressão de seus "textos" narrativos ou de natureza de uma "poética visual". E a linguagem experimental característica do vídeo, apresenta um poder maior de interpenetração de todas as outras linguagens, incorporando uma liberdade de expressão plástica que se coaduna com a dimensão mítico-poética dos fragmentos bachelardianos apontados.
Ao finalizarmos nosso vídeo com a imagem metafórica Bachelard-Fênix, pretendemos sintetizar o fenômeno estético da linguagem poética, em seu fluxo de ciclos contínuos de morte e renascimento incorporados neste mito: "Em realidade, a Fênix não cessa de viver, de morrer e de renascer em poesia, pela poesia, para a poesia" (Bachelard, 1988 c: 55).
[fim da página 149]
Tanto para o cinema quanto para a linguagem do vídeo, o elemento poético é a base de um processo de criação e re-criação de imagens, que serão sempre novas.
Fotogramas intercalados, Bachelard-pássaro que renasce das cinzas, num movimento progressivo, através da dinâmica das asas (7), em simples fragmentos, vêm revelar um desejo de vôo, rumo à própria essência do instante poético metafísico.
BACHELARD, Gaston. (1986). O direito de sonhar. Rio de Janeiro: Difel.
____________________. (1988 a). A poética do espaço. In: Bachelard. São Paulo: Nova Cultural (Col. "Os Pensadores").
____________________. (1988 b). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.
____________________. (1988 c). Fragments d'une poétique du feu. Paris: PUF.
____________________. (1989 a). A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
____________________. (1989 b). A água e os sonhos.São Paulo: Martins Fontes.
____________________. (1990). O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes.
____________________. (1991). A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes.
CARONE NETO, Modesto. (1974). Metáfora e montagem: um estudo sobre a poesia de Georg Trakl. São Paulo: Perspectiva.
EISENSTEIN, Sergei. (1990). O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar.
LA PRESSE COMERCIALE/ LAROUSSE. (1994). Dictionnaire Français-Chinois/Chinois-Français. Paris: La Presse Comerciale/ Larousse.
MAREY, Etienne-Jules. (1894). Le mouvement. Nîmes: Editions Jacqueline Chambon, 1994.
MORIN, Edgar. (1956). Le cinéma ou l'homme imaginaire.Paris: Les Editions de Minuit.
SHIBATA, Mimiko. (1993). 'L'eau court et...': Quelques aspects de l'esthetique japonaise. In: PERROT, Maryvonne (org.). L'eau, mythes et réalités. Dijon: Centre Gaston Bachelard/ Editions Universitaires de Dijon.
RESUMO
EM BUSCA DAS METÁFORAS PERDIDAS: UMA EXPERIÊNCIA DE REALIZAÇÃO DE VÍDEOS
A PARTIR DA OBRA DE GASTON BACHELARD
Relato das motivações de trabalho em torno das principais idéias que inspiraram a realização de dois vídeos, "Espaços Poéticos de Gaston Bachelard" e "Fragmentos de uma Poética dos Elementos", produzidos junto ao Centro de Pesquisas Gaston Bachelard, Universidade de Bourgogne, Dijon-França, 1998.
PALAVRAS-CHAVE: imaginário poético; poesia visual; linguagem de cinema e vídeo.
RÉSUMÉ
A LA RECHERCHE DES METAPHORES PERDUES: UNE EXPERIENCE DE REALISATION DES VIDÉOS
À PARTIR DE L'OEUVRE DE GASTON BACHELARD
Le récit des enthousiasmes de travail, autour des idées principales que ont inspiré la realisation de deux vidéos, "Espaces Poétiques de Gaston Bachelard" et "Fragments d'une Poétique des Élements", que ont été produits auprès du Centre de Recherches Gaston Bachelard, Université de Bourgogne, Dijon-France, 1998.
MOTS-CLEFS: imaginaire poétique; poesie visuelle; langage du cinéma et de la vidéo.