Hélio Rebello Cardoso Jr. - "Conceitos onto-políticos no pensamento de Gilles Deleuze" - P & T 15 - set/1999

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Política e Trabalho 15 - Setembro / 1999 - pp. 21-28


CONCEITOS ONTO-POLÍTICOS NO PENSAMENTO DE GILLES DELEUZE: "MINORIA" COMO "DEVIR-MINORITÁRIO"

Hélio Rebello Cardoso Jr. (1)


No pensamento de Deleuze, a criação de uma noção política está sempre envolta por uma dimensão ontológica. A princípio, esta característica da reflexão política em Deleuze adquire um traço curiosamente clássico; no entanto, ao observarmos a definição dos conceitos que assim são criados, veremos que seu alcance renova determinadas noções políticas que tomamos por estabelecidas.

Procuraremos apresentar esse elo do pensamento deleuzeano através da caracterização do conceito de "minoria" que inclui, em sua consistência, problemas ontológicos referentes ao conceito de "acontecimento"/"devir". "Acontecimento" e "devir" são, dessa forma, componentes do conceito de "minoria" e determinam sua alçada onto-política.

CONCEITO DE "ACONTECIMENTO"

Destacaremos a noção de "acontecimento" em dois de seus aspectos, os quais serão importantes para os desdobramentos subsequentes. Em primeiro lugar, veremos como o acontecimento exige uma certa expressão da temporalidade. Em segundo lugar, trataremos do que Deleuze denomina a "estrutura dupla do acontecimento".

Segundo o sistema estóico, nos informa Deleuze, há dois tipos de tempo. Em primeiro lugar, o Cronos que diz respeito à mistura de corpos ou estados de coisa e por isso preside à ordem das causas; é caracterizado pela sucessão de instantes, ou seja, sua gênese deve-se à "forma cíclica do infinito" onde um eterno presente, que contrai todos os instantes, se descontrai em presentes pontuais que são passados ou futuros uns em relação aos outros. Em segundo lugar, há o Aion que diz respeito aos "incorpóreos", que são os efeitos dos encontros de corpos, e por isso é caracterizado pela fuga incessante do presente seja no sentido do passado seja no sentido do futuro, ou seja, sua gênese deve-se à "forma da linha reta ilimitada".

A partir dessas configurações relativas à temporalidade, o problema deleuzeano será o de acoplar o tempo cíclico infinito ao tempo retilíneo ilimitado, por este motivo o acontecimento será nomeado como a instância que participa de ambos os registros temporais, de modo que haja encarnação dos acontecimentos nos corpos e estados de coisa, bem como acontecimento puro (incorpóreo), caracterizado nas palavras de Deleuze como "sempre qualquer coisa que acabou de passar ou que vai se passar, simultaneamente, jamais qualquer coisa que se passa" (Deleuze, 1969: 79).

A versão temporal do acontecimento tem sua correspondente no problema da vontade.

Para cada acontecimento tomado em sua efetuação como indivíduo ou [fim da página 21] pessoa, é preciso atingir um instante pré-individual ou impessoal. Trata-se da "estrutura dupla de todo acontecimento", indica Deleuze (Deleuze, 1969: 176). O importante a este respeito é que ao mesmo tempo que se efetua um acontecimento se saiba operar nele uma contra-efetuação. Não contra-efetuar um acontecimento no momento mesmo em que ele acontece é perder o que de mais profícuo pode haver na efetuação.

Trata-se de surpreender no acontecimento efetuado, naquilo que acontece, a parte do acontecimento que permanece irredutivelmente pura, pois projeta-se no Aion. A contra-efetuação é uma vontade de que somos portadores desde que se reverte nossa posição em relação à ordem causal da mistura dos corpos ou estados de coisa. Quer dizer, se no momento de efetuação o incorpóreo ou acontecimento puro é um efeito com relação ao acontecimento efetuado, na contra-efetuação, uma vontade torna o acontecimento puro quasi-causa daquilo que nos acontece.

Aprofundemos esse quadro inicial do conceito de acontecimento, procurando interrelacionar os dois aspectos acima. Como veremos, a fusão entre o aspecto físico (temporal) e o aspecto ético (vontade) do acontecimento permitirá nos aproximarmos de uma idéia de "ação" que lhe seja pertinente.

O Cronos possui duas dimensões, a saber, uma formada por presentes relativos, isto é, passados e futuros relativos ao presente, como expressões dos encontros dos corpos entre si, pois desses encontros sempre se conserva algo como passado ou resta ainda algo como futuro; a outra dimensão do Cronos refere-se à reunião de todos esses presentes num presente cósmico, circular, onde o acontecimento se efetua. Aí, numa leitura estóica, o tempo é a relação das causas da mistura dos corpos, e o passado e o futuro, por vezes, parecem querer tornar desmesuradas essas relações, eles querem distorcê-las para se vingarem da sua relatividade em face do presente e para desestabilizar a circularidade em que o presente cósmico os prendeu. Contudo, esta desestabilização que sofre o tempo das causas e dos corpos ficaria mal compreendida, ou ainda, seria temida se não entrasse em jogo uma outra dimensão temporal que fornecesse uma salvaguarda ética aos corpos que se vêem acuados em seu presente.

O Aion também possui duas dimensões. Numa delas, de certa maneira, redime-se o presente dos corpos, os incorpóreos esgueiram-se por entre as causas de que são efeitos, fazendo com que o presente se subdivida automaticamente em passado e futuro, sem que tenha tempo de relativizar os encontros de corpos. Ou, para utilizar a linguagem estóica, o que se comunica nessa primeira dimensão do Aion são os efeitos dos encontros de corpos. Em sua segunda dimensão, essa temporalidade dos efeitos conta com o "instante" ou acontecimento puro, que quebra a circularidade do presente cósmico; como um raio ele remete o acontecimento efetuado ao acontecimento puro, onde é reencontrada a potência através da qual ele retira algo do que acontece.

Uma ação não se situa nem no presente do Cronos, em que a efetuação do acontecimento se encadearia na circularidade do presente cósmico, nem é ela o presente que se dissolve segundo a primeira dimensão do Aion.

Se a ação fosse identificada a essas dimensões da temporalidade, no primeiro caso, ela expressaria tão somente a relatividade dos presentes, [fim da página 22] necessitando de uma instância superior para que fosse possível representar a marcha do tempo. No segundo caso, se a ação estivesse imersa no próprio elemento de dissolução do presente, somente representaria o tempo corrosivo que desestabiliza o presente cósmico. Antes, no entanto, que o presente da relatividade e o presente da dissolução reverberem entre si, o instante ou acontecimento puro, um novo presente, exige que ação eqüivalha não ao acontecimento efetuado ou a subversão que ele impõe ao presente, mas a ele próprio e seu poder de desbloquear as singularidades e de apresentar o ponto aleatório que as une, ou seja, seu poder de problematizar o tempo.

O instante, esse presente acontecimental, é um ponto aleatório que faz com que o presente se abra à ação, liberando as singularidades que estavam distribuídas nos indivíduos, e, portanto, reencontra um acontecimento puro onde essas singularidades estão ligadas tão somente por relações diferenciais.

Quando, sob a ação do acontecimento, o instante esquiva o presente, este perde a oportunidade de opor o antes e o depois, a relatividade do passado e do presente se esvai, de modo que todo o tempo reflui para a realidade incorpórea ou virtual do acontecimento. Assim, todas as dimensões do tempo tornam-se simultâneas, o que significa, em última análise, que o acontecimento transforma o tempo em "devir" ou "forma pura do tempo" (2).

MINORIAS

O devir possui um caráter eminentemente político que está presente em todo tipo de ação, tão logo um acontecimento abra as coordenadas extensivas de espaço e tempo de um determinado fenômeno ou acontecimento efetuado (um indivíduo/sujeito, um alguém, um fato histórico) para um complexo de linhas, para toda uma geografia de espaços intensivos, de mapas de devires que desenham fluxos no campo dos acontecimentos, posto que "cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e toda a Natureza uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada", como afirmam Deleuze e Guattari (1980: 311). A liberação de uma singularidade é um acontecimento na ordem política. Vejamos por quê.

O princípio da democracia representativa pode ser ilustrativo sobre a maneira pela qual se pode entender a lição política dos devires. Uma maioria é definida politicamente pela quantidade, maioria simples ou proporcional. Antes, porém, de ser caracterizada por uma expressão numérica, uma maioria é um padrão, um "Alguém" onde o senso comum aprisionou determinadas singularidades/acontecimentos e no qual os indivíduos devem-se enquadrar através da exclusão ou submissão de outras singularidades. Contudo, como a base da maioria quantitativa é um padrão restrito, os indivíduos componentes dessa maioria tornam-se, por uma razão ou outra, mal acomodados a ela sempre que algumas dessas singularidades que não cabem no padrão estabelecido escapam. Quer dizer, toda maioria freme com a agitação em que essas singularidades/acontecimentos aprisionados fervilham.

Na verdade, como mostra Deleuze, o poder de uma maioria somente se [fim da página 23] sustenta pelo senso comum, pois os indivíduos que compõem sua supremacia numérica a submetem a uma variação intensiva contínua, pois cada um, potencialmente, é uma minoria que quer se libertar de seu jugo. Por isso, as minorias são muito mais numerosas que a maioria, pois aquelas detêm o segredo de sustentação desta última. As minorias são "multidões" cuja organização desestabiliza o consenso das maiorias e sua ordem política (3). Neste caso, minoria não representa apenas a expressão numérica daqueles grupos que não se enquadram no padrão estabelecido pelo senso comum da maioria, mas, intensivamente, minorias são a respiração vital da maioria, ou seja, elas formam um "devir-minoritário" que diz respeito a todos; até mesmo àqueles indivíduos que parecem encarnar o modelo de Alguém para a maioria e constróem sua variação em torno do padrão vigente. O devir-minoritário, em outras palavras, é um devir universal, enquanto o maioria representa apenas um estado determinado de aprisionamento de singularidades/acontecimentos, criando a ilusão de sua universalidade ao colocar-se como representante de uma vontade, de um poder.

Um devir-minoritário é um efeito dos encontros de corpos que caracterizam uma maioria e, como tal, torna-se a quasi-causa (incorpóreo) que a libera de sua relatividade numérica. Por isso, conclui Deleuze, com propriedade, analisando um determinado veio político do teatro contemporâneo, "minoria designa aqui a potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou impotência de um estado, de uma situação"; as mesmas observações são válidas com respeito às imagens do cinema, pois através delas uma minoria pode passar pelo devir universal de um povo do futuro (Deleuze & Bene, 1979: 129,123-125; Deleuze, 1983: 101; Deleuze, 1985: 282-286; ver tb. Deleuze & Guattari, 1980: 133-134; Deleuze, 1990: 235). O devir, independente da matéria que ele venha a percorrer, instaura uma política do acontecimento e não uma política baseada no estado reconhecido dos indivíduos num determinado tempo e espaço.

Um devir é sempre uma questão de velocidade, sempre se entra em um devir para experimentar que se é mais rápido que uma maioria, para saber que esta última sempre chega depois, atarantada que fica, lerda que é, em seu esforço contínuo de deter as singularidades que dela querem escapar a todo custo. Ou, para apresentar o problema em termos aritméticos, como faz Deleuze, diz-se que a maioria forma entre seus elementos conjuntos ligados por uma relação axiomática, e, por isso, são como números que podem ser contados e recombinados sempre que o conjunto e, portanto, o princípio axiomático se sente ameaçado. Pode-se mesmo romper com a organização inicial e se entrar em uma nova axiomática que supostamente inclua e faça valer a representação de uma minoria.

[fim da página 24]

Já a minoria, no devir-minoritário, é formada por elementos cujo único elo de ligação é a adição, lógica do "e", por isso eles formam "conjuntos fluidos", que não podem ser numerados, pois quando se tenta numerá-los, imediatamente sua natureza se transforma, isto é, as conexões entre seus elementos se distribuem de uma maneira completamente diversa, pois os encontros dos indivíduos/corpos que formam uma maioria sempre causam efeitos/incorpóreos que não se detêm a uma realidade numérica ou representacional. Por isso eles não são axiomatizáveis, não servem a nenhum tipo de representatividade, embora exerçam sua ação política. Numa minoria, então, "o que caracteriza o inumerável não é nem o conjunto nem os elementos; é antes a conexão, o «e», que se produz entre os elementos, entre os conjuntos, e que não pertence a nenhum dos dois, que lhes escapa e constitui uma linha de fuga", asseveram Deleuze e Guattari (1980: 587). Assim, por estar entre os conjuntos, por estabelecer relações em um meio que escapa à "elementarização" dos indivíduos, a minoria é anterior, e, portanto, mais universal que as relações entre os elementos de um conjunto.

Com efeito, minoria é uma "figura universal" que percorre, ou melhor, somente se deixa captar numa lógica cujas relações os conjuntos não podem dar conta, uma lógica do acontecimento, onde se desliza em "multiplicidades de fuga ou de fluxo", quando um grupo ou alguém "se torna todo mundo", pois "o próprio da minoria é fazer valer a potência do inumerável, mesmo quando ela é composta de um único membro. É a fórmula das multiplicidades", ou seja, onde "o devir e a multiplicidade são uma e a mesma coisa", pois na multiplicidade de devires, dizem Deleuze Guattari a respeito do cinema, "os personagens e as formas valem apenas como transformações de uns nos outros" (Deleuze & Guattari, 1980: 305, 588; Deleuze, 1985: 189).

Os próprios conjuntos e as relações axiomáticas ou numeráveis entre seus elementos têm sua gênese garantida pelo elemento inumerável das multiplicidades, de modo que o que diferencia definitivamente maioria e minoria não é a comparação numérica entre elas, mas uma relação interna ao número, relativa ao devir, que prova que as minorias, o devir-minoritário, convida todas as maiorias a se desfazerem em multiplicidades, a fim de que elas se tornem mais universais do que supõe a generalidade ou abstração de um espaço e tempo dados extensivamente e que garante o preenchimento dos valores de verdade de uma lógica axiomática ou dos conjuntos. A contra-efetuação como catalisador da lógica do acontecimento torna-se, assim, um agente genético das efetuações.

Mas, o que acontece entre uma minoria e uma maioria, tendo em vista as definições acima?

Deleuze e Parnet mostram que uma boa maneira de analisar situações políticas é mapeá-las, realizando uma cartografia de suas linhas. A maioria é uma "linha dura" ou "molar", assim como o são nossos papéis individuais ou sociais - família, escola, caserna, fábrica, profissão, são segmentos em que se subdivide essa linha. A linha segmentada é trabalhada por "linhas moles" ou "moleculares", sendo esta composta por devires que conduzem nossos papéis definidos a encontros não previstos em sua segmentaridade dura. Toda vida, todo papel, participa de intensidades não contidas em sua história, ou seja, [fim da página 25] numa biografia de família, numa memória da formação geral de um indivíduo ou grupo, no suposto consenso de uma maioria política.

Ambas as linhas são imanentes uma a outra. O mais importante para e realização dessa imanência, nessa cartografia, é que a linha molecular realiza importantes conexões de devires que não aparecem no nível da linha molar, ou seja, aquela atribui a esta última intensidades que sua segmentaridade dura não pode representar.

Por exemplo, há uma maioria em um indivíduo ou em grupo social que é trabalhado imperceptivelmente por minorias, devires moleculares, mesmo que os segmentos que formam a maioria permaneçam inalterados. Apesar da relativa inércia molar, a linha molecular de uma minoria pode estar cruzando "limiares" que magnetizam intensivamente a segmentaridade da maioria, estabelecendo conexões não previstas (Deleuze & Parnet, 1977: 151-152).

Por isso entre o molar e o molecular não há também uma oposição entre o coletivo e o individual/pessoal; a molecularidade também se define por seu aspecto 'populacional', multitudinário. Existem minorias em uma pessoa, assim como as minorias são as agitações moleculares das maiorias sociais e/ou políticas.

Maioria e minoria (devir-minoritário) atuam em planos diversos. A minoria não atua como um número, como um segmento; o que acontece em uma e em outra não pode ser avaliado pelo mesmo padrão de ocorrências.

No entanto, como se explica que a oposição minoria-maioria se coloque do ponto de vista político, tanto que um dos objetivos da representação democrática é estabelecer em seus mecanismos um contrapeso para a expressão das minorias? Se num confronto direto a maioria se sobreporia às minorias, cabe criar dispositivos que garantam a sobrevivência dessas últimas, assegurando-lhes representatividade apesar de sua menoridade quantitativa.

Essas oposições são possíveis apenas como expressões da linha segmentada, onde a maioria se coloca. Deleuze e Parnet, aprofundando sua cartografia ou "micropolítica", chamam a atenção para o fato de que a linha de segmentaridade possui três características (Deleuze & Parnet, 1977: 155-157).

Em primeiro lugar, há as "máquinas binárias" que, no caso, criam oposição entre maioria e minoria, como se ambos fossem segmentos de uma mesma linha; a binarização do conflito, pode-se adiantar, é uma maneira de cercear o caráter molecular das minorias. Naturalmente, a dicotomia entre minoria e maioria pode receber projeções de binarizações em outras oposições de segmentos, tornando complexos seus encontros; por exemplo, o problema que se coloca do ponto de vista da linha segmentada é: o que é maioria e minoria num modo se ser, numa sexualidade, numa família, entre duas classes sociais? Desta forma, a minoria é tomada como um segmento, onde o modo de expressão é a oposição.

Em segundo lugar, continuam Deleuze e Parnet, minoria e maioria como segmentos envolvem cada uma um "dispositivo de poder" que as codifica. Este é o padrão para todos as segmentos de uma dada linha dura, afinal somente na medida em que cada um deles constitui um "centro de poder" pode estabelecer com outro uma relação binária. O poder, portanto, não é central, não é uma privilégio da maioria, ele se dissemina pela linha segmentada. Além [fim da página 26] disso, há entre tais segmentos uma "máquina abstrata de sobrecodificação" que cria equivalências entre os códigos de segmentos; desta forma, por exemplo, a oposição entre minoria e maioria pode ser avaliada e fixada. Uma máquina abstrata, sobrecodificando todos os cortes entre segmentos, pode enfim 'traduzir' e coordenar as dicotomias criadas pelas máquinas binárias e oferecendo-lhes um meio de conversibilidade.

É através das máquinas de sobrecodificação, então, que o impasse minoria-maioria pode ser encaminhado por meio de uma solução que preserve a determinação de uma minoria em face de uma maioria; neste caso, estamos diante da efetivação da máquina abstrata, o que já caracteriza o aparelho de estado como terceiro elemento da segmentaridade dura. O estado é apenas a sobrecodificação efetiva de centros de poderes que dele não emanam.

Mas isso é apenas o que ocorre na linha de segmentaridade dura ou molar.

Na linhas mole ou molecular não há segmentos, apenas limiares; trata-se de uma linha não segmentada e não codificada, onde a relação entre seus elementos constituintes, que são os devires, dá-se, não através de binarizações que levam a uma sobrecodificação, mas entre ritmos. A linha molecular não anuncia apenas que o segmento dominante mudou ou que seria possível um terceiro termo que superasse a dualidade entre minoria e maioria. Pelo contrário, ela passa entre os segmentos, oferece-lhes um fluxo de descodificação, de modo que as máquinas que conduzem os devires são "máquinas mutantes" que desfazem as oposições molares. Neste caso, a minoria não é mais um segmento da linha molar, mas um fluxo (devir minoritário) que faz tanto a maioria quanto a minoria segmentarizadas fugirem de seus códigos e, portanto, de seus dispositivos de poder.

Eis a definição molecular de um conceito renovado de minoria.

Contudo, o fato de podermos observar a minoria sob o ponto de vista de duas linhas imanentes, não explica ainda porque a minoria, no sentido molecular, constitui a maioria como segmento da linha molar. Por que, afinal, a minoria teria a precedência?

Acontece que os fluxos de fuga proporcionados pela agitação da minoria não são uma passagem para fora do campo social, não são uma fuga do campo social. Ao contrário, as linha moleculares são constitutivas do campo social, isto é, de suas segmentaridades duras. São as minorias em seus movimentos de fuga que traçam os devires e as fronteiras do político em um campo social. São elas, enfim, que participam da lógica do acontecimento, contra-efetuando as oposições da linha segmentada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. (1969). Logique du sens. Paris: Minuit.
_______________. (1983). Cinéma 1: l'image-mouvement. Paris: Minuit.
_______________. (1985). Cinéma 2: l'image-temps. Paris: Minuit.
_______________. (1990). Pourparlers. Paris: Minuit.
DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. (1977). Dialogues. Paris: Flammarion.
DELEUZE, Gilles & BENE, Carmelo.(1979). Superpositions. Paris: Minuit.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (1980). Capitalisme et schizophrénie: mille plateaux. Paris: Minuit.

[fim da página 27]

GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. (1993). Micropolítica: cartografias do desejo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes.
HARDT, Michael. (1993). Gilles Deleuze : an apprenticeship in Philosophy. Minneapolis/ London: University of Minnesota Press.
MENGUE, Philippe. (1994). Gilles Deleuze ou le Système du Multiple. Paris: Kimé.

NOTAS

1) Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (PR).

2) Mengue (1994: 31-32) enfatizou essa ligação entre acontecimento e devir.

3) Hardt (1993) esclarece que "a multidão permanece contingente na medida em que está sempre aberta para o antagonismo e o conflito, mas em sua dinâmica de incremento de poder, ela atinge um plano de consistência, tem a capacidade de fazer da normatividade social o direito civil. A multidão é a multiplicidade que se torna poder"(p. 110); este mesmo autor acredita ter encontrado em Deleuze "algumas ferramentas para a constituição de uma democracia radical" (p. 119), por isso, "fazer a passagem da multiplicidade para a multidão permanece para nós o projeto central de uma prática política democrática" (p. 122). Sobre a articulação "minoria-devir" ver Guattari & Rolnik (1993: 73-76).

RESUMO
CONCEITOS ONTO-POLÍTICOS NO PENSAMENTO DE GILLES DELEUZE: "MINORIA" COMO "DEVIR-MINORITÁRIO"

Procuraremos apresentar um elo prático do pensamento deleuzeano através da caracterização do conceito de "minoria" que inclui, em sua consistência, problemas ontológicos referentes ao conceito de "acontecimento"/"devir". "Acontecimento" e "devir" são, dessa forma, componentes do conceito de "minoria" e determinam sua alçada onto-política: "devir-minoritário".
PALAVRAS-CHAVE: minoria; devir minoritário; Deleuze.

ABSTRACT
ONTO-POLITICAL CONCEPTS IN GILLES DELEUZE'S THOUGHT: "MINORITY" AS "MINORITY BECOMING"

We attempt to present a pratical chain in the Deleuze's thought through the definition of "minority" as a concept. This concept includes, in its consistency, ontological problems dues to its relations to the concept "happening" (événement) / "becoming" (devenir). "Happening" and "becoming" are components of the concept of "minority" and determine its onto-political sweep: "minority becoming".
KEYWORDS: minority; minority becoming; Deleuze.




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Número 15 - setembro de 1999  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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