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Política e Trabalho 15 - Setembro / 1999 - pp. 235-238


UMA DELÍCIA DE DEVANEIO AOS OLHOS
QUE BUSCAM EXPERIENCIAR O SONHO

Mauro Guilherme Pinheiro Koury (1)


ACHUTTI, Luís Eduardo Robinson. (1997). Fotografia. Porto Alegre: Tomo Editorial.


Me comove, de início, a dedicatória de um pai fotógrafo ao nascimento de sua filha Júlia, nascimento esse todo registrado, posando em foto única de recém entrada no mundo. O mundo da fotografia do pai Achutti é introduzido ao pequeno ser no momento de sua chegada ao mundo que o espera, ou o mundo da Júlia invade o mundo da fotografia do pai Achutti. Pai que um dia teve um avô, também fotógrafo, de nome Bartolo Achutti, que seduziu o neto para o mundo da imagem não através de suas fotografias mas, como revela o encantado neto seduzido, "por uma imagem que tinha emoldurada pela janela do seu sótão oferecida a toda humanidade: a imagem da lua".

O Fotografia de Achutti, assim, coloca o olhar do observador numa ambigüidade que revela e enovela o fato fotográfico com o ato fotográfico. O fato e o ato se fundem e se transmudam ao mesmo tempo como mundos que se complementam pela apresentação do olhar do fotógrafo, da escolha do fotógrafo sobre os recortes escolhidos no real, da seleção do fotógrafo - que apesar de achar que toda fotografia deve ser mostrada, "que uma fotografia guardada não é nada", cria uma instância entre as que irão ser vistas e [fim da página 235] as que nunca sairão do arquivo de fotografias mortas - e pelas leituras dos olhares que contemplam a arte final apresentada.

Ato e fato fotográfico revelando a ação do fotógrafo, sua sensibilidade, seu mundo possível elaborado num álbum, como uma mostra do constructo apresentado como produção. Produção como fato, sobre olhares observadores que se informarão não só de mensagens contidas nas angulações e representações de cada foto, mas como apresentação ao universo particular do fotógrafo. Posto ao exercício público do olhar o ato fotográfico, e remetido como fato a novas interpretações. Como um diálogo travado em dois momentos entre diversos mundos possíveis. Onde o mundo possível apresentado como produção, como atos produzidos se enovelam com os mundos possíveis das construções dos olhares observadores, que vêem o resultado como fato, possíveis de sedução, possíveis de apresentação e até possíveis de devaneios, onde as fotos como fato apresentadas são a ponte para aquela da janela do sótão, que ilumina nas combinações do enovelamento e revelação evocadas no livro Fotografia.

Autor e leitores dialogam, em entendimentos variados da narrativa proposta. Isso depois, como ensina Umberto Eco, do olhar atento que lê as fotos em sua individualidade e em seu conjunto, invadir o mundo possível do autor para compreensão da narrativa proposta. E só depois sonhar, no estranho e necessário diálogo entre a proposta enredada e os diversos enredos possíveis de serem propostos, no constructo simultâneo de vários fatos sobre os mesmos atos que se não são seus, observadores, mas a eles foram oferecidos como produção em ato que gerou o fato enredado enquanto mostra fotográfica de autor.

Essa conjugação do ato fato, na construção do autor e nas leituras dos olhares que observam, navegam por um plano comum, proposto à organização do livro: um apanhado estético dos vinte e dois anos de fotografia. Materialização de um sonho do autor.

Essa informação leva os olhares a um mergulho estético e histórico sobre a construção e disposição das fotografias no álbum. Os olhares podem querer navegar sobre o burilamento estético do autor, através do acompanhamento do apanhado fotográfico nesses vinte e dois anos de uso do instrumento. Outros olhares podem querer discorrer sobre o acompanhamento histórico factual e cronológico do material escolhido para compor o livro. Ambos se perdendo na primeira impressão da observação disciplinada. O Fotografia explode o disciplinamento proposto como rota de navegação e aparece como um roteiro sentimental de viagens do autor, que as situa para que também possam evocar bons pensamentos nas viagens dos olhares.

O autor propõe tocar evocativamente os leitores através das sensações suas, sentidas em cada momento de sua navegação fotográfica. É aí que a Julinha entra de novo. Ela não só entra como forma de sedução do pai, ao registrar as cenas do seu nascimento, como para influenciar com o seu mundo o mundo fotográfico do pai. Ela entra como sentimento. Como mais uma emoção de um fotógrafo em vida de fotografia, sentimentalmente registrada. O Fotografia, assim, é um passeio no cotidiano emocional e sentimental de Achutti. Revela cada momento de [fim da página 236] expressão intensa de ternura, de compromisso, de ideologia, de beleza, de arte, de solidão, de esvaziamento, de preenchimento, que atravessaram o autor nos diversos instantâneos sentimentalmente escolhidos, esteticamente realçados por sua câmara, e depois por sua escolha na revelação e na seleção para a mostra.

O olhar do leitor passa, assim, a debruçar-se no devaneio do autor, para só então entender e sonhar também com os pensamentos expressos no sonho do Achutti de Fotografia. A cronologia, os recortes temáticos possíveis, a estética em refinamento são, assim, secundarizados pelo olhar que vê mais uma vez, e são retomados através das evocações sentimentais provocadas no autor e na viagem junto do autor a que o leitor se submete, com prazer, também evocando para si os mundos mostrados pelo autor. Não mais para contraporem-se aos seus também mundos internos, mas para deliciarem-se no elogio à emoção que abunda no Fotografia.

De Porto Alegre para o mundo, sem esquecer Macapá, no seu retorno a Porto Alegre, seu pequeno Brasil. O Parque Farroupilha, com seus brinquedos esquecidos na areia pela criança que por ali passou, talvez fascinada pela roda gigante (que também fascina como fotografia esse que aqui escreve), o Gasômetro, o Guariba, o pôr-do-sol como nenhum outro, a lua com sol, e chega-se a Havana, para cair de novo em Porto Alegre com uma belíssima imagem de menina monumento, pobre e bela, como pobres e não tão belos os infelizes urbanos nas ruas de Porto Alegre, para voltar-se para Berlim, num auto-retrato de uma pintora na Alemanha ainda Oriental, e cair nos braços de Porto Alegre com a imagem e os pincéis de Iberê Camargo.

Daí se invade Montevidéu, com suas pandorgas, volta-se a Porto Alegre, sem deixar de visitar Ouro Preto em duas ontológicas fotografias de um músico em descanso e de uma pequena bailarina que espera o baile na rua recomeçar. A volta a Porto Alegre é política: papéis esvoaçantes soltos ao vento pelas mulheres que ocuparam a casa de estudantes da Universidade Federal, mas não resiste, talvez com as lembranças ainda quentes do descanso da música e da dança de Ouro Preto, e mostra uma belíssima imagem de uma lona cujo sol ilumina em todos os seus remendos uma arquibancada de um circo de periferia.

Mais uma vez no mundo, visita o Ford apodrecido na garagem de uma casa ou de uma oficina qualquer de Montevidéu, e corre de volta para Porto Alegre, na Rede Ferroviária, com suas máquinas paradas, madeiras e latarias apodrecendo, formando texturas de uma beleza rara nas lentes do autor, e continua militante no registro das cenas finais da ferrovia no Brasil, via Porto Alegre, numa série de rostos profissionais de mecânicos até uma última fotografia, que evoca um movimento de greve, que evoca o fim da linha, que evoca homens em ação.

Mais uma vez Havana, com os coloridos, velhos e com jeito irônico de viver cubano, das fotos dos carros, do velho em Trinidad com o seu charuto e sua cesta de vime, passando pelo El Malecon, com suas garotas e garotos que olham fascinados para a câmara do Achutti, talvez a preço de banana. Daí à militância com Camilo Cienfuegos, que emoldura uma sala de recepção burocrática decadente, mas de cores fascinantes, nas suas paredes de azul e verde descascados e uma [fim da página 237] mesa onde se lê "información", junto a um vaso de flores de papel e uma bolsa de fazer tricô.

Ainda militante desce para a (então) recém revolução sandinista. Se está na Nicarágua, com o soldado com seu fuzil e seu papagaio, um lambe-lambe, crianças em exercício militar pela paz. E um belíssimo cartaz onde o povo parece caminhar com a cruz, com a viola, com o instrumento de trabalho, pela reconstrução do país, e um menino militar que posa em frente a ele, parecendo dele sair em vida. E la Nicaragua va, a procissão, meninas que olham algo em cima dos pilares da Catedral da Manágua, a Central de Ação Sindical, com as fotos de Marx, Engels e Lenin. E a arte na Nicarágua, com suas pintoras primitivas. E a volta ao sul do Brasil, em uma quase bela aquarela de um mar sem cor, e do silêncio evocado pelos barcos na areia, ou prisioneiros da vegetação, ou emoldurando o vermelho do entardecer na Lagoa Mangueira. E do Rio Grande do Sul pula-se para o Oiapoque, o extremo norte do Brasil, saindo do extremo sul, e se volta correndo para lá, com paisagem belíssima de um gavião ao entardecer em um poste de fios de alta tensão.

Salta-se para Londres, visita-se Paris, volta-se à Alemanha Oriental, ao estúdio da pintora Dina, chega-se a Berlim e ao dia da reunificação alemã. O povo na praça, o muro destruído, Marx relembrando o tempo de vivo, tomando cerveja dada por um jovem na sua rebeldia jovem, que talvez não pensasse que aquele ser-estátua também era um cervejeiro de vida.

De novo no Norte do país, Macapá, numa foto estranha de uma casa com apenas a frente, sua cerca e um verde estranho que invade toda a foto, dando um ar de não-sei-o-quê de peça montada, talvez.

Mais uma vez, a viagem de Achutti termina em Porto Alegre. Aí temos um Achutti acadêmico, que busca um caminho na antropologia visual, onde a fotografia seja a cena mestra. O Fotografia termina com a proposta de uma fotoetnografia, no universo pesquisado do lixão da Vila Dique em Porto Alegre. Belas imagens da seleção de papéis para a venda, e do cotidiano de um barbeiro que vive de fazer a barba de coletores de lixo, no próprio lixão.

O mundo de imagens registrado em Fotografia é um mundo de sensações de um fotógrafo engajado com a vida, e com a arte. Uma delícia de devaneio aos olhos interessados no sonho revelado nas fotos de Achutti. Um aprendizado para os olhos atentos da arte de fotografar de um fotógrafo mais do que profissional, amante.

NOTA

1) Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).


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Número 15 - setembro de 1999  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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