"A Sociologia é uma ciência como as outras; tem apenas maior dificuldade do que as outras em ser ciência como as outras."
Pierre Bourdieu
A discussão a que este ensaio se propõe tem por base a polêmica, levantada por vários autores, da possibilidade da Sociologia existir enquanto ciência. Partindo-se da premissa que os estudos epistemológicos sobre o que se denomina hoje Pós-Modernidade têm enfrentado a questão dos objetos, domínios e possibilidade das Ciências Humanas, visamos aqui traçar os rumos deste debate no que diz respeito à construção teórico-metodológica de tais ciências, com enfoque maior sobre a Sociologia.
As Ciências Sociais são uma empreitada do mundo moderno. Suas origens refletem o imaginário setecentista que consistia em desenvolver um saber sistemático e secular sobre a realidade, como base no modelo simétrico - temporal newtoniano, no dualismo cartesiano e num olhar evolucionista sobre o modo de vida ocidental. A construção das Ciências Sociais se dá, pois, a partir de uma totalidade, a realidade social, o fenômeno social total, e por isso a distinção das Ciências Sociais provém delas mesmas (Santos, 1989) (2).
Faz-se necessário apontar que o novo domínio do saber construído pelas Ciências Sociais é uma invenção teórica que toma por base o empirismo naturalista das Ciências Naturais e o sistema de metrificação das Ciências Matemáticas. Se por um lado temos a tentativa de configuração de um objeto claro para cada uma das Ciências Sociais, por outro temos inúmeras teorias que tentam dar conta de problemas da vida de grupos humanos na nova realidade da cidade moderna. Em se tratando de construir um modelo universal, as Ciências Sociais já se encontram numa via de mão dupla: a fragmentação entre objetos e teses sobre este; a vã tentativa de tornar objetiva a subjetividade do social.
Estes modelos teóricos do século XIX têm por base a dualidade entre o conhecimento certo - a ciência - em oposição ao conhecimento imaginado ou imaginário (3).
Basicamente os termos do debate ora proposto têm por lastro a [fim da página 205] apresentação do quadro das Ciências Humanas feito por Michel Foucault em As Palavras e as Coisas. O traçado epistemológico de Foucault inicia a temática básica deste ensaio. Não se pretende, entretanto, um combate teórico entre os autores citados e os sociólogos clássicos, pois este seria infrutífero, uma vez que o processo arqueológico é exterior ao saber que se analisa. O discurso final da Sociologia é um emaranhado de outros tantos discursos provenientes das mais diversas fontes.
Seqüencialmente o tema é tratado no que diz respeito a um fundamento racional possivelmente presente no discurso sociológico. Esta razão possível está conectada à formulação de conceitos e categorias que, porventura, possam conferir os limites de uma ciência formalizada. Pode-se falar em razão instrumental, claro. Contudo, seria possível a existência de uma razão semântica própria à Sociologia ?
A instituição da sociedade é marcada pela definição dos espaços da cidade moderna e pelo tempo que se consagrou às atividades desenvolvidas neste espaço. A apresentação do espaço e do tempo numa teoria é feita a partir de considerações de Foucault, Michel de Certeau e Gaston Bachelard. Tais escritores tentam desconstruir os conceitos de espaço/tempo como fixos, redefinindo-os a partir de noções como corpo, cidade e casa.
As elucubrações finais tentam responder à questão um pouco shakespeareana de a Sociologia ser ou não ser ciência. Para tanto, denomina-se ciência neste ensaio a atribuição de um padrão de confiabilidade derivado dos dados experimentais, obtidos de maneira rigorosa via observação, de caráter objetivo, impessoal e sujeito à provas irrefutáveis. Portanto, o que se pretende não é traçar um debate sobre o que seria ciência, mas se a Sociologia pode ser ou não considerada ciência dentro do quadro anteriormente exposto.
No capítulo X de As Palavras e as Coisas, Michel Foucault (1990) traça um perfil do que seriam as Ciências Humanas no plano geral dos saberes, principalmente do século XIX em diante. Nesta obra, Foucault lida com dois conceitos básicos: domínios epistemológicos (épistemês) e modos do discurso (discours). Os domínios epistemológicos funcionam mais ou menos como os paradigmas de Kuhn: não se sucedem uns aos outros dialeticamente, nem se agregam; surgem caoticamente uns ao lado dos outros, configurando vários domínios do saber científico, o que não implica necessariamente numa superação ou no surgimento de uma nova ciência como uma revolução no pensamento ou na consciência, pois cada surgimento preenche um espaço deixado pelo discurso das ciências anteriores.
Para o autor, as Ciências Humanas não receberam por herança um domínio de saber já delineado, domínio este dimensionado previamente, embora ainda não desbravado. A química, por exemplo, toma da alquimia um arcabouço com um referencial básico, tratando apenas de reconfigurar conhecimentos empíricos e mágicos em teses científicas validadas. Desta maneira, a tarefa das Ciências Humanas seria, antes de mais nada, elaborar um domínio de saberes a partir de conceitos científicos e métodos positivos.
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O aparecimento das Ciências Humanas coincide com o aparecimento do conceito de homem na cultura ocidental. Este conceito só foi possível no século XIX com o surgimento de conceitos como vida, linguagem e trabalho (Foucault, 1990: 362). O homem é, pois, uma invenção da Modernidade. É um organismo vivo que modifica a natureza e a representa. O mundo dos signos, um mundo dado pela Natureza, passa a ser o mundo construído pelo homem, este ser que, nas palavras de Foucault, torna possível todo o conhecimento.
Não se trata de considerar a inexistência real do homem nos séculos XVII e XVIII, tampouco de refutar outros saberes que a este se ligavam. A proposta do autor na sua arqueologia é, sobremaneira, advogar a tese que estes saberes não se adaptavam no engradamento conceitual da ciência, que implica em observação, teste e repetição. Ao afirmar que o senso comum contém saberes que podem ser considerados científicos, a lógica de construção destes saberes implica em algum tipo de mérito ou num grau especial de confiabilidade.
Foucault (1990: 363) coloca em xeque o aparecimento das Ciências Humanas. Duplo xeque. Se de um lado este aparecimento implicou no debate perpétuo entre Ciências Humanas e Ciências propriamente ditas, por outro também reflete a tentativa das Ciências Humanas de fugirem do vasto domínio da filosofia. No tocante ao primeiro debate, faz-se logo perceber que o próprio conceito de humano é já uma tentativa de abarcar quaisquer outros conceitos, uma vez que os domínios da exatidão, da reflexão e da gênese da vida são conceitos do homem e sua natureza ou campo de ação. Quanto ao segundo ponto, a busca a um domínio próprio das Ciências Humanas, diferente do domínio filosófico, significa a apreensão de teorias e métodos de investigação do real, bem como uma procura a uma certa praxeologia necessária na intervenção da realidade que ora se desnudava enquanto um problema.
No sentido de situar as Ciências Humanas no quadro geral dos saberes, Foucault estabelece três planos do saber (4):
- sua forma é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições evidentes e verificáveis;
Ciências matemáticas e físicas:
- seu fundamento é estabelecer relações entre elementos descontínuos, porém análogos, de modo que se possa vir a estabelecer nestes elementos vínculos de efeito-causa;
Ciências da causalidade (biologia, língua e economia):
- estas se desenvolvem como pensamento do si-mesmo dentro de um domínio comum, ou seja, o campo da formalização do pensamento.
Ciências da reflexão filosófica:
A etapa seguinte do autor é encaixar as Ciências Humanas neste quadro de saberes. Caso as incluíssem, estaria o autor necessariamente delimitando o campo de ação das mesmas, o que as tornaria insuficientes, sob o ponto de vista epistemológico, da denominação de ciências particulares. Se as excluíssem, o autor encerraria o capítulo ao fechar a questão da possível existência das ditas Ciências Humanas. Depois de escavá-las, Foucault, como bom arqueólogo, as recompõem criando para tal fim o que ele denomina complexidade epistemológica das Ciências Humanas. O efeito é inusitado: as Ciências Humanas estariam, ao mesmo tempo, nos domínios do triedro de saberes e fora deste. [fim da página 207] Poderíamos compará-las com o princípio incerto da luz: vez é onda, vez é partícula, dependendo da ótica observada.
Esse domínio encontrado em todos e em nenhum dos planos de saberes é possível, pois que as Ciências Humanas tomam conceitos e métodos oriundos dos três planos: a exatidão, a causalidade e a reflexão.
No que possa a ser considerado como feições das Ciências Humanas, há que se perceber que a inclusão de um destes três planos confere um padrão teórico-metodológico a estas. Em se tratando da Sociologia, cada um destes planos gerou um certo padrão teórico, criando assim o que se chama corrente teórica. Isto não implica na inclusão de um só método em vários planos, nem também na busca de uma metodologia específica para um destes três planos em particular. Assim, a Sociologia pode tentar se revestir de exatidão com a estatística, pode estabelecer fins e laços entre fins com o organicismo, ou mesmo vir a refletir sobre as bases onde se firma num plano mais geral a partir da reflexão filosófica.
A Sociologia, ela própria, tem travado um debate particular quanto aos seus domínios. Há, principalmente, duas vertentes que, apesar de nem sempre contradizerem-se, procuram travar um debate entre exatidão, de um lado, e causalidade, por outro. O campo da exatidão possível recorre a um método unificado de proposições empiricamente verificáveis dentro de um plano racional e objetivo (5).
A vertente oposta apanha seu material no cotidiano do trabalho, da vida e da linguagem, suportada pelo princípio da incomensurabilidade de Feyerabend (1982) (6), e numa certa liberdade de escolha que teriam os indivíduos de uma sociedade. Esta última vertente tem sido responsável por um certo grau de transcendência da Sociologia, bem como das Ciências Humanas como um todo, pelo fato de estabelecer novas construções teórico-metodológicas sobre temas antes considerados exatos.
A forma objetiva das ciências exatas, não obstante o uso que delas foi feito no intuito de conferir às Ciências Humanas um certo grau de confiabilidade, foi importante na configuração de resultados que podem ser formalizados. No entanto, não foi o avanço da exatidão matemática que conferiu feição ao homem enquanto objeto da ciência. Antes, foi o seu retraimento (Foucault, 1990: 367 e segs.).
Ao retrair-se, a exatidão descortina um ser que vive, produz e se comunica. Desta feita, a ciência do homem torna-se possível pelas representações que indivíduos ou sociedades têm de suas relações de produção, dos modos como se processa tal produção, bem como dos mecanismos que detêm ou implementam tal produção. É objeto das Ciências Humanas o simbolizado pelo homem, mas não o próprio homem. Daí advêm os conflitos e vicissitudes da Sociologia, da Psicologia, da História etc., em enxergar o homem corpo de funções e formas, ao invés de observar seus sinais e criações; não a fala, e sim o sentido que esta confere ao mundo.
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Para Foucault, pois, o espaço das Ciências Humanas não se acha na natureza do homem ou na sua forma, ação ou linguagem. Ademais, as Ciências Humanas, em relação às ciências da causalidade não se encontram carentes de vigor ou exatidão. São as Ciências Humanas ciências da reduplicação, ocupando uma posição metaepistemológica no quadro geral das ciências.
Em verdade, a reduplicação (7) das Ciências Humanas é dupla. Ao mesmo tempo em que reduplicam métodos e práticas de análises das ciências propriamente ditas, as Ciências Humanas também reduplicam os conceitos que elas mesmas construíram ao redor do homem e seu mundo. O interessante é que as Ciências Humanas conferem perspectivas e cortes verticais neste amplo campo epistemológico, o que não nos permite distinguir se estas estão trabalhando na profundeza ou na superfície, no centro ou na periferia, o que, por vezes, pejorativamente, dá a falsa impressão de fluidez teórica e inconsistência metodológica.
Ao particularizar a Sociologia como exemplo disto, Foucault diz estar a região sociológica nos limites dos conceitos como trabalho, produção e destino do produzido e o simbolismo que faz da sociedade o palco de todas as representações que o indivíduo tem de si e de tudo. Deste caldo fértil emergem regras, literaturas, mitos, enfim a cultura.
Em se adentrando aos conceitos que a Sociologia reformulou de outros domínios, pode-se destacar o seguinte grupo: função, norma, conflito, regra, significação e sistema, segundo Foucault (1990: 375).
A arqueologia destes conceitos é feita a partir de uma clivagem da Sociologia com seus domínios conexos. É de se perceber que advém da biologia o sentido de função oriunda de estímulos exteriores aos quais o homem se adapta, harmoniza-se e encontra condições de sobrevivência. O sentido da norma, também de origem biológica, tem a ver com o ajuste necessário que um organismo deve fazer para se adaptar otimamente ao meio circundante. Da economia afloram as noções de conflito e regra. A primeira é gerada do embate entre necessidades e oposição à satisfação destas, enquanto que o segundo origina-se da limitação geral imposta à consolidação destes conflitos. Com o fim de conferir significação às coisas, o querer-dizer humano aparece na linguagem conferindo sentido ao mundo. A acumulação destes sinais constitui um conjunto inteligível, o que se chama sistema. Não tendo um domínio próprio no quadro geral das ciências, estes conceitos vagueiam ilimitadamente entre os diversos objetos, os métodos e as teorias de cada ciência em particular. Não que sejam tomados aleatoriamente, mas são flexíveis dentro de um todo comum às Ciências Humanas. Esta particularidade faz com que todas as ciências possam se intercruzar sem fronteiras definidas e objetos próprios.
Foucault intervém no debate epistemológico a que se propõe este ensaio na medida em que discute as Ciências Humanas sob a lógica do espaço e do tempo. Nestas ciências há uma certa resistência em se tratando do registro da continuidade espaço-temporal. Não que isto seja regra presente nos vários textos [fim da página 209] destas ciências (muito pelo contrário), mas sob o contexto epistemológico o descontínuo sempre se opõe ao contínuo (Foucault, 1990: 377). Ora, isto tem a ver com os pré-requisitos requeridos pela continuidade para que se solidifique na lógica das Ciências Humanas. Estas últimas são dotadas de um caráter bipolar de modelos, o que significa que uma análise contínua requer funções permanentes, conflitos perfeitamente interligados e uma trama de significações previamente estabelecida. Muito ao contrário, a análise das descontinuidades, própria das Ciências Humanas, indica a pouca estabilidade de um dado sistema de significações à medida em que este cria e recria situações de conflitos. As Ciências Humanas, enfim, trabalham com a inexistência de um continuum dado no espaço/tempo.
Além deste descontinuum, as Ciências Humanas, desde o século XIX têm lidado com três modelos. O homem da sociedade orgânica e funcional é o tema do modelo biológico. O homem dos desejos e conflitos é enfocado no modelo econômico. Com Comte, Marx e Freud, a priori, dá-se o reino do modelo filológico, o qual interpreta o homem dentro de um sistema estrutural. A partir destes três modelos várias categorias são criadas na tentativa de localizar e interpretar as representações do homem, indo do espectro do consciente até o inconsciente. Que se reafirme constantemente este grau de descontinuidade: as Ciências Humanas são parte do momento moderno do conhecimento, estando, portanto, suas condições de existência à deriva deste campo epistemológico, o qual também se desvanecerá tal qual a magia, a alquimia e a gramática.
Retomando um pouco a discussão sobre o espaço/tempo, é de se perceber que a unidade que se impõe a qualquer análise epistemológica da Sociologia se atém à especificação espaço-temporal de suas teses mais gerais. Os fenômenos sociais têm, geralmente, uma perspectiva futura dentro de um mundo histórico. Deste modo, a análise destes fenômenos, mesmo que meticulosamente organizados, não indicam mais que uma aproximação do método experimental, pois que seus resultados permanecem indexados a um tempo e um lugar (8). Por exemplo, para as ciências da natureza um acontecimento singular como um eclipse se encontra apoiado sob um corpus de leis físico-astronômicas válidas, independentes das coordenadas espaço-temporais. Para as Ciências Humanas um mesmo fato, o êxodo rural a exemplo, pode ser visto sob a ótica da demografia, da etnografia ou da semiologia, desde que "tudo está ligado a tudo" conforme Mauss (1981) propôs.
A formação de uma linha racional de pensamento sociológico tem referencial no controle de uma linguagem sociológica de enunciados conceituais inteligíveis (9). Com efeito, a formação dos conceitos na Sociologia se dá nos domínios da pesquisa sociológica, a qual está sempre produzindo uma série de conhecimentos empíricos futuramente interpretados através destes conceitos quase sempre reformulados. Trata-se, pois, de um conhecimento seqüencial obtido graças a diversidade dos métodos de comparação da análise sociológica.
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Se há razão sociológica esta é de caráter virtual. Isto porque a Sociologia não se deixa totalizar em nenhum discurso atual, sem, entretanto, deixar de impor a sua existência como reguladora de métodos e enunciados propriamente sociológicos. Nas palavras de Passeron:
"Os conceitos sociológicos são, portanto, polimorfos e estenográficos: são conjuntos tipológicos construídos a partir de um material conceitual que justapõe na abstração o muito e o muito pouco."
A heterogeneidade dos conceitos se percebe em situações de pesquisa onde o valor categorial destes conceitos empalidece pela sua generalidade. Só através da análise é que tais conceitos reencontram seu potencial heurístico de descrição e categorização. É este polimorfismo que permite ao sociólogo uma busca constante de teorias via reduplicação de conceitos.
Esta possível razão sociológica se comporta como um pêndulo entre a contextualização de conceitos e o raciocínio experimental (10). Seu movimento varia de um deslocamento a fatos datados e localizados a um tratamento experimental destes fatos. Assim é que a Sociologia é capaz de suspender um conjunto de questões históricas para tratá-lo dentro de um raciocínio experimental rigoroso (11). Para escapar do experimentalismo pleno, o raciocínio sociológico convoca os fatos à contextualização histórica, obtendo assim um objeto previamente definido e, sobretudo, real. Relativamente, a Sociologia é capaz de "desestoricizar" seu objeto na medida em que o reveste de um tratamento puramente experimental a partir de mensurações e formulações de leis gerais.
A necessidade do empirismo na Sociologia é percebida na medida em que a prova empírica se torna um critério de avaliação das suas proposições teóricas. Para Bachelard (1995: 33) os fatos sociais só são possíveis porque há um acordo teórico sobre uma linguagem descritiva do mundo. Estes protocolos lingüísticos supõem convenções sobre os fatos e seus enunciados (12). A vulnerabilidade da Sociologia repousa, portanto, na descrição histórica de seus conceitos e não na situação empírica destes. Um experimento sociológico pode ser refeito n vezes sob as mesmas condições iniciais deste. Não obstante, as categorias advindas deste primeiro experimento são completamente insuficientes para explicar uma realidade que não seja oriunda do experimento que as concebeu. Ao enfocarmos uma outra realidade há que se reformular as categorias analíticas que possivelmente interpretarão esta nova condição do real.
Sendo espaço e tempo categorias básicas da existência humana, raramente discutimos o seu sentido, tendendo a tê-los por fixos.
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Na sociedade moderna, entretanto, muitos sentidos distintos sobre o tempo se entrecruzaram. Os movimentos cíclicos e repetitivos - a rotina do cotidiano - oferecem sensação de segurança num mundo que pensa o tempo como tempo do progresso. Mesmo quando este sentido de progresso é ameaçado pela depressão, recessão, guerra ou distúrbios sociais afins, a sociedade ainda se sustenta a partir da idéia de um tempo cíclico, de longas ondas de acontecimentos, as quais atingirão seu pico e voltarão ao normal. Tais ondas são consideradas fenômenos naturais aos quais devemos nos adaptar forçosamente para uma volta à estabilidade universal (Harvey, 1990: 78).
A teoria social, neste sentido, enfoca os processos de mudança social, de modernização e revolução. O progresso é seu universo teórico e o tempo histórico sua dimensão primária. A Modernidade, por sua vez, trata o progresso a partir dos processos de modernização com lastro numa semântica de futuro, padronizando a espacialidade como fixa e o tempo como senhor da dialética. Bourdieu (1983: 104) afirma que a escrita retira a prática e o dito do fluxo do tempo, em corroboração com o anteriormente dito.
No intuito de colocar na arena as categorias de espaço e tempo Michel Foucault, Gaston Bachelard e Michel de Certeau têm sido responsáveis por abordagens que implicam na desconstrução destes conceitos. Foucault (1991) vê no corpo o elemento irredutível do espaço social, uma vez que é sobre o corpo que as forças de repressão e controle se exercem. Sendo o corpo humano limitado espacialmente, o espaço exterior é apenas uma metáfora para um dado lugar que ora restringe o corpo a ele mesmo, ora o libera completamente. Corroborando com Foucault, Michel de Certeau (1994: 48 e segs.) toma os espaços sociais como palcos abertos de realização da criatividade humana. Para ele a cidade é este espaço multifacetado com espaços singulares frutos de uma ampla gama de ações. Os ritmos, as pulsações da cidade são aquilo que define o espaço simbólico por meio de práticas sociais de vários grupos. Para Bachelard (1995: 103) o espaço é considerado um elemento imaginário. Segundo este autor, o tempo é apenas uma seqüência de pontos fixos nos espaços por onde circula o homem. O espaço é um tempo comprimido. Seu local de apropriação é a casa, pois é neste espaço onde aprendemos a imaginar. Ainda mais, Bachelard considera os espaços como invenção que confere um sentido novo para a realização das práticas sociais.
Para os fins a que se propõe este ensaio, esta apresentação das categorias espaço e tempo como fundantes para as Ciências Humanas em geral conduz a algumas considerações sobre a possibilidade da Sociologia ser considerada uma ciência na acepção comum deste termo.
Certo é que a Sociologia é tida como incerta dentro do quadro geral das ciências em se tratando da presença de um foco claro na epistéme moderna. Isto significa uma precariedade teórica pela sua proximidade com outros ramos do conhecimento, principalmente com a filosofia. Contudo, este fato não implica num demérito para a Sociologia, nem a sua transposição para um esteio metafísico. Antes, este pseudo-dilema aqui apresentado é fruto da extrema complexidade epistemológica onde se localiza a Sociologia, bem como de sua nata interdisciplinaridade. Os conflitos oriundos desta rede de saberes num mesmo ramo do conhecimento têm sido o motivo principal dos debates teóricos [fim da página 212] travados entre modernos e pós-modernos, cada qual advogando a tese, por vezes infundada, que o saber sociológico é próprio, portanto eficaz em si, ou que este é fluido, portanto agregado a outros tantos saberes e metodologias.
A situação da Sociologia no domínio das ciências é uma via de mão dupla. À primeira vista ela enquadra-se nos arcanos da ciência pelo seu procedimento instrumental originado do empirismo de Bacon, do positivismo de Comte e das regras de Durkheim. Assim, assemelha-se a uma lente que busca a ordem orgânica dos grupos e comunidades. A outra faceta a desloca dos enunciados da ciência situando a mesma em espaços projetivos das outras ciências. Por tudo isto a Sociologia é um complexo enorme de saberes arranjados em uma semântica que almeja ser única, definida por categorias próprias as quais instituem o tempo como tempo do trabalho, da vida e da linguagem.
Com efeito, a semântica sociológica propõe um conjunto virtual, pois que jamais se concretizará como integral e universal, formado de séries de conhecimentos inteligíveis e creditáveis de análise.
A Sociologia, seguindo esta linha de raciocínio, não foi instituída pela sociedade do século XIX, através das visões de Saint-Simon, Tocqueville, Comte, Durkheim, entre outros, e sim é ela responsável pela invenção desta sociedade como objeto de estudo e como realização espaço-temporal da cidade moderna.
No quadro dos saberes do século XIX, ela surge como um discurso fundador da sociedade. De acordo com H. White (1994: 16), o intuito de qualquer discurso é constituir o terreno onde ele pode decidir o que contará como fato na matéria em consideração e determinar qual o modo de compreensão mais adequado ao entendimento dos fatos assim constituídos. A Sociologia é, antes de mais nada, um jogo de linguagens técnicas, teóricas e metodológicas.
Escapar da miséria teórica - a qual se propõe o título deste artigo - significa escapar do mito newtoniano, o qual reduz o mundo a uma simplicidade reduzida à leis universais. Significa uma derrocada geral no que diz respeito às metodologias dos modernos, responsável pelos métodos determinísticos e apriorísticos tão presentes nas metanarrativas do século XIX.
Sociologia é invenção. Teorias e métodos adaptados. Com efeito, deve ter tais métodos e teorias analisados no jogo de valores da época em que foram concebidos. Este é o primeiro passo para a valorização do saber sociológico, e também a primeira etapa para a crítica e superação deste discurso totalizante. Mundos novos. Novas aproximações teórico-metodológicas. Abrir as fronteiras do conhecimento, fugir aos grilhões da disciplinaridade, desmantelar idéias e construir outras tantas. Eis a magia que se está por fazer.
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RESUMO
A MISÉRIA DA SOCIOLOGIA:
RUMO A UMA ARQUEOLOGIA DO SABER SOCIOLÓGICO
A Sociologia, como qualquer outra Ciência Humana, tem se preocupado em descrever cientificamente a sociedade. Para tal, usa mecanismos oriundos dos domínios epistemológicos das ciências da exatidão, da causalidade e da reflexão. A partir das idéias da arqueologia dos saberes de Michel Foucault, este artigo pretende descrever os limites da Sociologia enquanto ciência, bem como perscrutar seus novos desafios.
PALAVRAS-CHAVE: sociologia; arqueologia; discurso.
ABSTRACT
THE SOCIOLOGY'S MISERY:
GOING TO A SOCIOLOGICAL KNOWLEDGE'S ARCHAEOLOGY
Sociology, as other Human Science, has been focused on scientific descriptions of society. For this purpose, it uses methods from the sciences of exactitude, causality, and reflection. Based on Michel Foucault's archaeology, this paper intends to describe the limits of Sociology as a science, as well as pursuing its new challenges.
KEYWORDS: sociology; archaeology; discourse.