SANTOS, Boaventura de Sousa. (1997). Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 4ª ed. São Paulo: Cortez.
A leitura do livro Pela mão de Alice: o político e o social na pós-modernidade, do professor Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), nos traz de início uma estranha sensação de familiaridade explícita e surpresa repentina. Tratando de temas de extrema contemporaneidade, que fazem parte das manchetes dos jornais e saltam aos olhos do que se lê nas ruas e casas de [fim da página 238] todos os dias, Boaventura surpreende pelo que repassa de evidente e pela maneira como enriquece interpreta-tivamente tais dados, trazendo aquela estranha sensação do "isso está ali, mas como eu não havia pensado nisso?".
Tal interpretação demonstra incrível acuidade, e seu percurso de construção vai sendo exposto também no livro, pelo arcabouço (sociológico, histórico, filosófico) que permite operar tal interpretação e visar suas balizas epistemológicas.
A coletânea de ensaios começa com elenco de perplexidades ante um mundo que vem dos (alegres e esperançosos...) anos 80, com suas aberturas políticas e seu agravamento do social. Quando - se assustem - morreram mais pessoas de fome que em todas as décadas anteriores do século. Século de grandes clivagens em seu início e de um discurso unívoco, monológico em seu final. Final de localismos em meio a globalismos vorazes, de regresso do indivíduo, de valorização das questões micro, de presença ostensiva do Estado, do Estado em extinção Já no capítulo 2 do livro, Santos assinala a mudança paradigmática entre moderno/pós-moderno e estabelece as diferenças necessárias entre o que seria um pós-modernismo inquietante ou de oposição e o pós-modernismo reconfortante ou de celebração (p. 35). Ele também experimenta a tensão sobre determinismos sociais e as possibilidades de interferência pela ação, nas quais aposta em todos os momentos de suas análises. Nesse momento, Santos aponta a insustentabilidade de alguns pontos do marxismo, sobretudo nas questões de reducionismo econômico e sua tendência em transformar fenômenos culturais e políticos em epifenômenos sem dinâmica própria quando, "cada vez mais os fenômenos culturais são simultaneamente econômicos, políticos, culturais" (p. 38). Isso sem que venha a negar a importância crucial do econômico.
O autor também mostra como o marxismo se ateve apenas às lutas de classe, ignorando outras formas de opressão para além das questões de classe, como as opressões étnicas e de sexo. Além disso, Boaventura assinala como a utopia de Marx, produto da modernidade, do sonho de uma sociedade de abundância e exploração sem limites da natureza, hoje se mostra inviabilizada. E as lutas ecológicas, sabidos os limites da exploração dos recursos do planeta, são uma das linhas de força das discussões do livro, num cenário consumista, onde a sobrevivência da Terra se vê ameaçada e à espera por uma das tantas mu-danças de atitude agendadas no texto.
Pela mão de Alice propõe uma visada pela modernidade como superação e obsolência, pela percepção das promessas de felicidade que ela não realizou, repassando seu déficit de acenos não cumpridos ao longo de sua associação com o capitalismo, que é visto em três etapas, sendo a primeira a do (1) capitalismo liberal e das utopias que lhe foram contemporâneas ("românticas e marxistas"), o (2) capitalismo organizado, que trouxe o Estado-providência e o (3) capitalismo desorganizado, com avanço neo-liberal (embora ele não use este termo), de desmonte do Estado-providência.
Vendo o cenário semi-periférico de Portugal, o autor repassa essas três etapas mostrando suas diferenças em relação ao capitalismo central, num cenário que lembra muito o nosso, brasileiro. Laços relacionais de parentesco e vizinhança, promessas da mo-[fim da página 239]dernidade do Estado-providência não tendo chegado a se configurar, aparatos legais mais avançados que práticas sociais, pré-modernidades a conviver com pós-modernidades, num constante choque entre reinvidicações materiais ("salários decentes e segurança social") e pós-materiais ("a ecologia, o anti-nuclear, a igualdade sexual e racial, todas elas, aliás, misto de materiais e pós-materiais") (p. 100).
Vendo todo esse hibridismo, o autor se propõe a pensá-lo como tal, enfrentando questões a que tantos se esquivam, os que insinuam ser ocioso e fútil discutir pós-modernismo num país "pré-moderno" (como o Brasil também), ignorando comodamente o universo complexo que se lhe passa na frente do nariz. Por outro lado, repassa promessas de modernidade ainda a serem cumpridas em Portugal - e que o sejam em curto-circuito com promessas da pós-modernidade. Percebendo ainda que "o que quer que falte concluir da modernidade não pode ser concluído em termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros da mega-armadilha que a modernidade nos preparou: a transformação incessante das energias emancipatórias em energias regulatórias. Daí a necessidade de pensar em descontinuidades, em mudanças paradigmáticas e não meramente subparadigmá-ticas" (p. 35).
Descontinuidades preservadoras de diversidades. E vem ao caso a citação que o autor faz de A. Hirschman, quando ele assinala que "o capitalismo realizou precisamente o que se esperava dele, ou seja, reprimir a variedade humana e produzir uma personalidade humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais unidimensional" (p.102).
Nesse sentido, o autor estabelece balizas estratégicas. Dentre elas estão dados como a discussão de como a ciência moderna se estabeleceu rompendo com o senso comum e como, nesse momento, seria interessante romper com essa ruptura, ou "contra o saber, criar saberes e contra os saberes, contra-saberes" (p.104). Outra estratégia seria uma fuga à objetivi-dade distante proposta pelo conhecimento moderno, ou uma tentativa de reaproximação das pessoas, quando a ciência moderna teria se formado num movimento de nos por à vontade apenas com as coisas (p. 109).
Nas suas investidas Boaventura, algo sartrianamente, nos propõe o gesto de determinar sentidos, pois "tudo nos está entregue" e "o reencantamento do mundo pressupõe a inserção criativa da novidade no que está mais próximo" (p. 106). Apostando em subjetividades plurais, assinala a importância de aprendermos a ser polifônicos: "É evidente que a polifonia é contra as verdades fortes. E ainda bem, pois mais vale uma verdade na mão da retórica prudente e democrática que duas a voar no vazio da apodíctica imprudente e autoritária" (p. 109). Plurais serão tam-bém as mini-racionalidades estrategi-camente postas nas lutas locais.
No quinto capítulo, "Estado e os modos de produção do poder social", Boaventura Santos mostra o erro de usar quadros conceituais do século XIX para ler o século XX. Nessa linha, defende que a separação Estado/ Sociedade Civil não passaria de uma ortodoxia conceitual, vinda do fato dos senhores feudais não deterem a propriedade privada dos meios de produção no feudalismo, e daí que seu poder teria estado estreitamente ligado à propriedade privada do Estado. No capitalismo, trabalho e sobre-trabalho [fim da página 240] se dão na esfera da fábrica, o Estado se posta fora, só garante a lei. Então, a exterioridade do Estado e da política, relativamente às relações da produção, derivaria da concepção das relações de produção como uma questão econô-mica e privada entre indivíduos privados dentro da sociedade civil (p.117).
Mas Boaventura faz ver como, dentro da fábrica, também ocorrem processos políticos e jurídicos e a separação político/econômico só faz neutralizar o potencial revolucionário. Ele mostra ainda como os maiores avanços civilizacionais do capitalismo teriam ocorrido. justamente. nas relações políticas, nas relações da esfera pública, com ganhos de cidadania - enquanto nas relações de produção teriam advindo poucos avanços (p. 122). O autor lembra a disseminação, no século XVIII, de formas de poder ocultas, partindo da normatização das subjetividades. Boaventura irá acompanhar Foucault em várias das suas teses sobre a dispersão de poderes nas várias esferas da sociedade ressaltando, no entanto, o quanto a categoria de poder se torna inoperante se lhe é dado caráter ubíquo, afinal "o que está em toda a parte não está em lugar nenhum" (p. 125).
Ao discutir a questão das identidades, Pela mão de Alice aponta o quanto estas são instáveis, estratégicas, criadas, escondendo "negociações de sentido". Como mostra Boaventura, o perguntar a própria identidade questiona posições hegemômicas, mas reforça subordina-ção ao se colocar na posição de outro (2). Mas ele vê a questão da pergunta como uma ficção necessária.
O primeiro nome moderno da identidade seria subjetividade e a proposta hegemônica do liberalismo teria dado primazia à subjetividade individual e subjetividade universal (abstrata), em detrimento de subjeti-vidades coletivas e contextuais. Seriam as derrotas de Rousseau e Montaigne por Descartes.
Ele recupera a queda de Granada, com o fim do iluminismo mouro e judeu como ocaso de riquíssimo processo histórico, onde prevaleceu a tolerância. Em contraponto, o etnocídio seria o ensaio europeu da guerra ao outro, onde a subjeti-vidade do outro é negada, por não corresponder às subjetividades hegemônicas da modernidade, a do indivíduo e a do Estado: "O outro não é um verdadeiro indivíduo porque o seu comportamento se desvia abissalmente das normas da fé e do mercado" (p. 139). No texto é assinalado o caráter biológico do racismo de colonização e o caráter imposto de insuperáveis diferenças culturais a vincar um presente racismo de descolonização (p. 145).
Na luta por identidades, Boaventura Santos termina por declarar o interesse pela antropofagia de Oswald de Andrade como forma de entrelaçamento ritual com a cultura hegemônica, sem submissões.
Um dos melhores capítulos do livro é o que discute a universidade. Remontando suas primeiras motiva-ções, o ensaio vai ao centro de proble-mas atuais da questão univer-sitária. A atualidade da argumentação e sua abrangência são impressionantes e mesmo indispensáveis, para quem quiser entender tais questões que [fim da página 241] trazem extrema semelhança entre o que se passa no plano geral internacional e o que ocorre no quadro da universidade brasileira.
O texto historia e discute as oscilações da universidade em suas funções e usos de criadora de conhecimento especializado e desinteressado, na sua função de formadora de mão-de-obra; no seu empenho na formação de elites; nos seus possíveis usos para o mercado e a indústria ou nas inadequações desses usos; na perda de centralidade da universidade frente à cultura de massas; ou mesmo na formação da mão de obra, etc.
Boa parte da discussão mostra as fortíssimas tensões a que vem sendo exposta a universidade pública, cobrada, às vezes, para tarefas frente às quais não está preparada ou que fogem à sua especificidade. Dois pontos bem discutidos são as pressões por serviços à comunidade e, sobretudo, as relações com o mercado, interessado não só em mão-de-obra mas na pesquisa.
O autor vai mostrando os perigos no incitamento à procura de recursos externos, o perigo no privilegiamento da pesquisa aplicada, com interferência nas prioridades cientí-ficas e éticas. Tal tensão vem fortemen-te vincada pelas diferenças entre critérios da comunidade científica em relação à pesquisa - como liberdade, autonomia, publicidade - e "comunidade industrial" - secretismo, mutismo e patentes. A diferenciação de remuneração aos pesquisadores, baseada em lucros, também poderia causar fortes distorções.
Poderíamos, aqui, ilustrar contando o que circula como lenda em importante universidade brasileira na qual, em um de seus departamentos, pesquisadores teriam se empenhado na descoberta de uma lâmpada com menor tempo de duração - dado de obsolência planificada apenas interessante aos objetivos mais rasos do comercialismo mais vil. Boaventura, ouvindo a lenda, chamaria isso de resultado de um pacto fáustico.
Para se opor a coisas desse tipo, o autor resgataria dados que fazem parte integrante do universo simbólico universitário, muito embora possam não encontrar correspondência na realidade barra-pesada da concorrência acadêmica, nem sempre leal, nem mesmo sempre honesta. Mas, ainda que uma meia-ficção, valores como comunismo, desinteresse, universalismo e ceticismo organizado seriam alguns desses mitos a serem observados com respeito. Pelo menos aqui o autor talvez invocasse Fernando Pessoa, no seu emblemático "o mito é o nada que é tudo".
Nas três fases do capitalismo observadas por Boaventura Santos (capitalismo liberal, organizado, desorganizado) ele perceberia, na primeira, a hipertrofia do mercado, seguida de um equilíbrio entre princípios do mercado e do Estado sob pressão do princípio da comunidade. Na terceira fase viria a re-hegemonização, a qual chamamos neo-liberalismo. Na fase de equilíbrio, a do capitalismo organizado, haveria um alargamento da subjetividade pela segurança quotidiana ampliada pelos direitos sociais. Por outro lado, teria ocorrido expansão nefasta de burocracia, vigilância, consumismo e lazer programado nessa fase, que é a do Estado-providência. Nela, ainda, haveria a desradicalização de reivindicações operárias e progresso de uma social-democacia, que ataria as [fim da página 242] pessoas à obsessão por rotinas de produção e consumo.
Porém, vendo essa segunda fase do capitalismo, o autor lembra como não se configurou uma proletarização das populações e homogeneização dos trabalhadores, nos termos previstos por Marx, que também teria errado ao reduzir a subjetividade individual à subjetividade coletiva. Por outro lado ele mostra como Marx "oferece a melhor contestação dos processos de naturalização e de reificação do social de que se alimentam os excessos de regulação em que se veio a traduzir a modernidade nas sociedades capitalistas" (p. 243).
Pela Mão de Alice ainda aponta o movimento estudantil dos 60 como grande articulador da crise político-cultural do fordismo, articulando uma ideologia anti-produtivista e pós-materialista, identificando opressões do cotidiano e acabando com a hegemonia operária nas lutas pela emancipação, trazendo para a arena de luta novos sujeitos sociais de bases transclassistas. Isso percebido que os ganhos em cidadania proporcionados pelo Estado-providência teriam desaguado em perdas de subjetividade.
No terceiro momento, o de re-hegemonização liberal, o que se tem é a precarização da relação salarial chamada flexibilização, com a escassez de trabalho e os trabalhos temporários geradores de insegurança e concorrência encarniçada. Por outro lado, o autor percebe que as várias formas de opressão miradas pelas lutas locais não atingem especificamente uma classe social e percebe também uma crescente e indesejável interpenetração de tempo vital e tempo de trabalho.
Assim, anota que as lutas promovidas pelos NMS's - novos movimentos sociais - locais que sejam, podem ser a luz que nos "réstia", e com potencialidade universalizável.
No último capítulo do livro, Santos revela como os elevados padrões de vida do Norte mundial rico tendem a não ser partilhados com os do Sul. O que, aliás, seria impossível, dado às questões ecológicas e crescente consciência da esgotabilidade dos recursos naturais.
O autor aponta, ainda, a utilização das descobertas relacionadas ao DNA como novo recurso industrial das grandes empresas e o uso de patentes criando novo escoadouro de riquezas do Sul pobre em direção ao Norte. Transferências "que ocorrem desde logo na própria engenharia dos produtos (...) dado que a maioria das dos recursos se encontram no Sul"(p. 292).
Tais desequilíbrios Norte-Sul são mostrados também em levantamento de dados de programas de ajuda alimentar para o mundo, iniciado na década de 40. O livro vai mostrando um quadro assustador. Tais ajudas serviram quase nada para minorar a fome e muito para criar mercados para os EUA, livrar o país de excedentes agrícolas, criando, de quebra, desemprego nos países "favorecidos". O apoio à agricultura em certos países, o Brasil incluído, serviu para sufocar culturas agrícolas locais, privilegiando culturas de exportação, cujas rendimentos terminariam servindo para pagar o massacrante serviço da dívida externa.
A fome continuou e até se expandiu para os países centrais, onde taxas de má nutrição vem aumentando. Disso o autor vai deduzindo o centro do problema como verdadeiramente situado na má distribuição e concentração de riquezas. Tão Brasil.
[fim da página 243]
Em relação à questão ecológica, Santos vai mostrando dificuldade de pensar o futuro, em meio a lógicas imediatistas de lucros. Lembra estudos recentes sobre a época medieval européia, que desmentem libertação do trabalho assumida pelo capitalismo; assinala concessões, como o Estado-providência tocando pequeno período do capitalismo, pequeno número de países, pequena porcentagem da força do trabalho global; percebe semelhança de tempo produtivo com tempo prisional; vê globalização e atuação das multis eliminando pretensões de autonomia de países periféricos e as classifica "como único sujeito com condições para pensar estrategicamente" amarrando, ainda por cima, boa parte do mundo à compulsão do consumo e imediatismo da luta pela sobrevivência (p. 320).
O autor termina seu livro reforçando a sinalização em direção à utopia, entendida como parte silenciada do que existe, como "(...) metáfora de uma hipercarência formulada ao nível a que não pode ser satisfeita. O que é importante nela não é o que diz sobre o futuro, mas a arqueologia virtual do presente que a torna possível" (p. 324).
A expansão européia e suas práticas genocidas são vistas também como epistemicidas, eliminadoras do conhecimento de povos estranhos, por seus conhecimentos outros, produzidos por práticas sociais estranhas. A ciência moderna também é criticada em seu movimento de autoproclamar-se contemporânea de si mesma, descontemporaneizando outras formas de conhecimentos.
Boaventura Santos propõe um novo paradigma, cujo conhecimento seja um conhecimento retórico, com atenção à constituição de comunidades interpretativas plurais. Se tudo nos está entregue, armar, toldar, forjar, interferir. Domar, dobrar, corpo a corpo, sem derramar em formas já sabidas. Desrecalcar vozes silenciadas, desreprimir o estranho, pronunciar silêncios, desviar do traçado cursos óbvios, fluxos unívocos, forjar leitos. Ligar gente, lançar sentidos, desenhar uma outra flor possível, pequena e miúda flor, mas bem mais flor que uma flor já sabida (3).
NOTAS
1) Doutorando em Teoria Literária pela UNICAMP, bolsista da FAPESP.
2) Assim, artistas europeus, por exemplo, não precisariam perguntar sua identidade, conforme sugere o autor.
3) Cf. NETO, João Cabral de Melo. (1994). O ferrageiro de Carmona. In: Obra completa: volume único (Organização de Marly de Oliveira). Rio de Janeiro: Nova Aguilar,p.596; VELOSO, Caetano. A outra banda da terra, álbum Uns.