O segredo é uma noção de grande relevância não só para a sociologia e a gnose, como para a filosofia do direito e para o estudo das culturas.
De maneira geral, o segredo é analisado de maneira valorativa, já que vê-lo como ocultação implica no reconhecimento de um espaço de sedição e de ilegitimidade. Equacionado à mentira, ver-se-ia reforçado esse lado oculto das coisas como um ato consciente de malversação ou de alteração da verdade dos fatos. Nessa medida, seria a contrapartida da publicidade, do direito à informação e à transparência, ideais constitutivos da democracia moderna (Almino, 1983).
Há muito que no âmbito da filosofia, do direito público e da sociologia, esta noção vem sendo estudada pela relevância que se lhe reconhece na sociedade (Simmel, 1906 e 1950; Tefft, 1980; Almino, 1983; Maldonado, 1994; Souza e Oëlze, 1998).
O formalismo kantiano constituiu o princípio transcendental e positivo de que todas as máximas que necessitem de publicidade para não fracassarem nos seus fins, estarão de acordo simultaneamente com o direito e a política (Kant, 1984). Para Kant, o segredo seria sempre contrário à causa dos dominados, cujo acesso a certas informações lhes seria negado ou objetivamente distribuído de maneira diferenciada. Este pensamento se aplica ao Ocidente individualista e socialmente complexo, em que os espaços de controle público e social da informação são apropriados em dinâmicas diferentes das que ocorrem em grupos ditos "simples". No seu "Tratado Sobre a Paz Perpétua"(1984), Kant termina por legitimar a afirmação de que tanto no domínio público como no privado, o segredo recobre algo inconveniente de manifestar-se abertamente, legitimando a sua representação como ocultação perniciosa pelo seu próprio conteúdo, implicitamente tido por sedicioso, imoral, antidemocrático e sobretudo indigno dos governantes.
Em fins do século XVIII, Benjamin Constant de Rebecque (1980), sem desmerecer das virtudes da verdade como princípio moral e sem negar o potencial danoso da mentira como ato consciente, afirmava que a obrigação ou o dever de ater-se a ela na sua inteireza, incondicionalmente e de maneira isolada, inviabilizaria qualquer tipo de sociedade.
Na visão de Constant, o segredo ao mesmo tempo que coloca uma barreira entre os indivíduos, traz em si também o desafio e a possibilidade de ser rompido, tendo inclusive, ao nível interpessoal, a função de elemento informador das relações sociais (que, aliás, é a perspectiva de Georg Simmel na sua sociologia do conflito e do segredo).
Além disso, estão implícitos na postura de Constant pressupostos que mais tarde seriam resgatados e sociologicamente analisados, quais sejam, os [fim da página 217] processos de diferenciação e de desigualdade no fato de haver segredo, havendo assim detentores e excluídos das informações ao nível societário.
Ao nível individual, a perspectiva é menos negativa e o segredo seria a medida dos níveis de ocultação e de revelação necessários e viáveis nas relações interpessoais. A relevância sociológica desta noção e das práticas que preside, emerge neste ponto no pensamento de Constant, como mais tarde na sociologia de Georg Simmel: a tensão entre o ideal da transparência a bem do pré-conhecimento das possibilidades de ação do outro e os níveis de ocultação que também fazem parte do processo interativo e da própria solidariedade social. O que marca a postura de Constant é a contraposição aberta aos pressupostos kantianos de que o segredo fosse unicamente danoso à democracia e à cidadania, negando também o senso comum que o equaciona à imoralidade, à perversão, à sedição.
Essa foi, por exemplo, a atitude adotada pela Igreja Católica, pelas monarquias e pelas corporações medievais diante das práticas secretas do "companheirismo" (compagnonnage) francês dos primórdios da Maçonaria. O fato dos "companheiros" (compagnons) se reunirem em segredo e de fazer circular informações e organizar-se no mundo do trabalho sob formas rituais diferentes, deu espaço aos Mestres, ao clero e aos soberanos para condenarem os primeiros maçons por heréticos diante da Igreja, infiéis aos mestres e traidores do trono (Benoist, 1975).
Para Constant, não é o caso de considerar o segredo um mal em si. O mal, o sedicioso, é que se fazem secretos por razões óbvias, o mesmo se aplicando à inconfidência e a práticas que inviabilizariam o indivíduo como ser social se fossem trazidas a público, mas que no entanto fazem parte das liberdades individuais. Neste aspecto, Constant defende o direito ao segredo individual e o reconhece como inalienável, sobretudo quando equacionado à privacidade, de vez que homem algum tem direito à verdade que prejudica os demais (Almino, 1983). Ao contrário de antidemocrático, o segredo seria uma das bases das liberdades individuais, na medida em que viabilizaria um espaço privado "onde possam florescer novas idéias e hábitos ainda não aceitos pela coletividade" (Almino, 1983) além de ser sempre parte do repertório de cada pessoa.
Na perspectiva desta reflexão, o ponto mais importante é justamente o caráter relacional e comunicativo da informação, sempre a ser pensada num contexto social, enquanto elemento organizador de relações e estilos de vida. As reflexões contidas neste texto se fizeram inspirar em grande medida pela leitura do livro O Segredo e a Informação, do jurista e diplomata brasileiro João Almino (1983) que se debruça sobre alguns dos mitos que recobrem o segredo nos limites do direito público. Dentre eles está o mito da transparência da sociedade em relação a ela mesma, que se apoia mais num ideal em favor da publicidade daquilo que possa ter interesse ou conseqüências públicas do que num outro direito que ele também reconhece e que diz respeito ao estritamente individual. Outro ponto a considerar é a crença, também moderna, de que a publicidade enquanto contrapartida do segredo estivesse sempre em favor dos dominados, enquanto a ocultação favoreceria os dominantes, ao recobrir de silêncio as suas intenções e as suas estratégias em detrimento daqueles. Almino [fim da página 218] lembra o potencial que a publicidade tem de ser mais um instrumento à alienação do que propriamente de esclarecer ou propiciar à consciência de todos elementos, como as implicações da situação de classe ou as desigualdades sociais.
Nos estudos feitos na perspectiva simmeliana do segredo (MacKenzie, 1973; Velho, 1973; Tefft, 1980; Arlacchi, 1980 e 1983; Maldonado, 1994; Velho, 1998) pode-se ver como as atitudes e os mecanismos relativos ao conhecimento, à informação e às estruturas de poder se entrelaçam ao espírito familiar e à honra, à cooperação e ao igualitarismo que as caracterizam. O interesse nessa temática fica mais evidente na ampla e variada literatura sobre os tipos de sociedade ou de grupo social, assim como nas polaridades que marcam práticas e análises sociais (tradição/ modernização; segredo/ revelação; confiança/ inconfidência; transparência/ sedição; hierarquia/ igualitarismo; competição/ cooperação).
Os estudos sociológicos do segredo se inauguram com os pressupostos e os estudos de Georg Simmel e se estendem no âmbito teórico e na pesquisa disciplinar. Tanto na sua vertente sociológica como na antropológica, os estudiosos das diferentes formas e ritmos que assume a disseminação da informação em quadraturas sociais diversas, partem do pressuposto básico de que a ocultação por meios considerados "positivos" ou "negativos" é um feito essencialmente humano, e um dos fundamentos da vida social. Sem o segredo, pressupondo-se a possibilidade da transparência absoluta nas relações interpessoais tanto ao nível individual quanto ao nível societário, estas seriam inviáveis (Simmel, 1950).
Simmel também situa o segredo como um conjunto de relações intrinsecamente ligado à sua contrapartida, a revelação, que pode assumir a forma de traição e cuja expressão é sempre muito complexa e significativa para a sociedade e para a cultura. Do ponto de vista sociológico, a importância e as tonalidades culturais que o binômio ocultação-revelação assume em cada configuração histórica e local, superam a valoração moral que delas se possa fazer. Sociologicamente, mais do que um conteúdo, um objeto unicamente de ocultação que uma vez revelado se esvaziasse e perdesse o sentido, o segredo é toda uma dinâmica comunicativa, feita de retóricas, de silêncios, de transparência, de opacidade e também de certas formas de revelação, estando entre seus possíveis mecanismos, a mentira e a malversação.
Não significando apenas ocultação, exclusão, distanciamento ou iniciação, o segredo implica também em atitudes como a habituação ao silêncio, a cooperação, a confiança, elementos sem os quais ficaria difícil viabilizar as relações sociais. Tais atitudes, não raro, são produto e objeto de processos educativos nos quais a sociedade se reproduz, estando imbricadas na ética e na moralidade sociais. Nessa perspectiva, que não deixa de ser relativizante, a forma social pura e a transparência total são ideais em princípio inatingíveis, devendo as pessoas conhecerem-se para que a confiança se construa e para que a interação se viabilize, mas essa relação pressupõe igualmente certos níveis de ignorância e de ocultação mútuos (Simmel, 1906).
O texto cuja tradução se segue a este comentário, é da autoria de Georg [fim da página 219] Simmel, fazendo parte da coletânea Trying Sociology, organizada por Kurt Wolff e datada de 1974.
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ARLACCHI, Pino. (1980). Mafia e tipi di società. Rassegna italiana di sociologia (1).
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BENOIST, Luc. (1975). Le compagnonnage et les métiers. Paris: PUF (Coll. "Que Sais-Je?").
CONSTANT, Benjamin. (1980). De la liberté chez les modernes. Paris: Pluriel.
KANT, Immanuel. (1984). Projet de paix perpétuelle. Paris: Librairie Philosophique/ J. Vrin.
MACKENZIE, M. (1973). Sociedades secretas. Barcelona: Alianza Editorial.
MALDONADO, Simone Carneiro (1994). Mestres e mares: espaço e indivisão na pesca marítima. São Paulo: Annablume.
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VELHO, Gilberto. (1973). A utopia urbana: um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar.
VELHO, Guilherme. (1998). Unidade e fragmentação em sociedades complexas. In: SOUZA, Jessé & OËLZE, Berthold (orgs.). (1998). Simmel e a Modernidade. Brasília: Editora UnB.
WOLFF, Kurt H. (org.). (1950). The sociology of Georg Simmel. New York: Free Press.
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1) Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).